Imagine a seguinte situação
hipotética:
Viviane estava grávida de
aproximadamente 16 semanas.
Desejando pôr fim à gestação, ela
tomou um medicamento abortivo em sua casa.
Viviane passou mal e foi encaminhada
ao serviço de emergência de um hospital, sendo atendida por Ricardo, médico
plantonista.
Ao examinar a paciente, Ricardo percebeu
que Viviane havia praticado um aborto. Ele então comunicou essa sua percepção à
Polícia, que instaurou inquérito policial.
Ao final, Viviane foi denunciada
pela prática do crime de aborto (art. 124 do CP) figurando o médico como
testemunha.
A Defensoria Pública impetrou habeas
corpus perante o TJ/MG, visando o trancamento da ação penal originária, sob o
fundamento de que seriam nulas as provas da materialidade do crime, uma vez que
foram coletadas por meio da quebra do sigilo profissional entre médico e
paciente.
O TJ/MG, por maioria, denegou a
ordem.
O voto vencido concedia a ordem em razão dos seguintes
fundamentos, dentre outros (obs: leitura deste trecho não é indispensável):
“Conforme
Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/18), é vedado ao médico ‘revelar
fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão’. Não
obstante existam exceções à mencionada regra, nos casos de ‘motivo justo, dever
legal ou consentimento, por escrito, do paciente’, o art. 73, parágrafo único,
da citada Resolução, prevê, de forma expressa, que a vedação em questão
permanece ‘na investigação de suspeita de crime’, contexto em que o médico ‘estará
impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal’ (art.
73, parágrafo único, “c”, da Resolução CFM nº 2.217/18). Com efeito, o médico
não possui, via de regra, o dever legal de comunicar a ocorrência de fato
criminoso ou mesmo de efetuar prisão de qualquer indivíduo que se encontre em
situação de flagrante delito. (...)
Válido
destacar que a citada resolução também registra que ‘na investigação da
hipótese de cometimento de crime o médico está impedido de revelar segredo que
possa expor o paciente a processo criminal” (art. 3º). Ou seja, o profissional
da saúde não pode, com as informações adquiridas a partir de atendimento
médico, e em contexto abarcado pelo sigilo, dar causa a investigação criminal
do paciente, comunicando fato à polícia, por exemplo, ou mesmo contribuir, com
tais informações, para a produção probatória em processo já em curso’. (...)
Deve-se
destacar, também, que a paciente procurou atendimento médico, e chegou ao local
se ‘queixando de muitas dores e aos gritos’ (fl. 39 –doc. único), conforme
relatado pelo próprio profissional, havendo registro, inclusive, de necessidade
de internação. Ora, evidente que (...) se
dirigiu ao pronto-socorro em contexto de extrema fragilidade, em que sua
integridade física, quiçá até mesmo sua vida, encontrava-se em risco. Assim,
utilizar as informações por ela repassadas ao médico nessa situação para processá-la
criminalmente não me parece minimamente razoável, ou compatível com balizas
constitucionais”. (...)
‘Não bastasse,
em razão de solicitação da autoridade policial, a administração do hospital
encaminhou à delegacia de polícia o prontuário médico da paciente, contendo
informações também sigilosas (fl. 50 –doc. único). Com isso, todo o acervo
probatório advindo das citadas condutas deve ser considerado ilícito e,
consequentemente, desentranhado dos autos, nos termos do art. 157 do CPP”.
A DPE/MG, então, impetrou habeas
corpus perante o STJ. Reiterou a alegação de que seriam nulas as provas da
materialidade do crime, uma vez que foram coletadas por meio da quebra do
sigilo profissional entre médico e paciente.
O STJ concordou com os
argumentos da Defensoria Pública?
SIM.
O modo como ocorreu a descoberta
do crime invalidou a persecução penal.
O próprio médico que realizou o
atendimento da paciente acionou a autoridade policial, figurando, inclusive,
como testemunha da ação penal que resultou na pronúncia da acusada.
O art. 207 do Código de Processo Penal dispõe que:
Art. 207. São proibidas de depor
as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam
guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o
seu testemunho.
O médico que atendeu a paciente
se encaixa na proibição legal, uma vez que se mostra como confidente
necessário, estando proibido de revelar segredo de que tem conhecimento em
razão da profissão intelectual, bem como de depor sobre o fato como testemunha.
O STJ assim já se manifestou a
respeito do sigilo profissional:
O interesse público do sigilo profissional decorre do fato de se
constituir em um elemento essencial à existência e à dignidade de certas
categorias, e à necessidade de se tutelar a confiança nelas depositada, sem o
que seria inviável o desempenho de suas funções, bem como por se revelar em uma
exigência da vida e da paz social.
STJ. 4ª Turma. RMS 9.612/SP, Min. Cesar Asfor Rocha, DJ
9/11/1998.
Ademais, o Código de Ética Médica
(Resolução CFM nº 2.217/2018) enuncia que é vedado ao médico “revelar fato de
que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão”.
Não obstante existam exceções à
mencionada regra, nos casos de “motivo justo, dever legal ou consentimento, por
escrito, do paciente”, o art. 73, parágrafo único, da citada Resolução, prevê,
de forma expressa, que a vedação em questão permanece “na investigação de
suspeita de crime”, contexto em que o médico “estará impedido de revelar
segredo que possa expor o paciente a processo penal” (art. 73, parágrafo único,
‘c’, da Resolução CFM nº 2.217/2018).
Com efeito, o médico não possui,
via de regra, o dever legal de comunicar a ocorrência de fato criminoso ou
mesmo de efetuar prisão de qualquer indivíduo que se encontre em situação de
flagrante delito.
Mesmo nos casos em que o médico
possui o dever legal de comunicar determinado fato à autoridade competente,
como no contexto de doença cuja notificação seja compulsória (art. 269 do CP),
ainda assim é vedada a remessa do prontuário médico do paciente (art. 2º da
Resolução nº 1.605/2000 do CFM).
Dessa forma, considerando que a
instauração do inquérito policial decorreu de provocação da autoridade policial
por parte do próprio médico que, além de ter sido indevidamente arrolado como
testemunha, encaminhou o prontuário médico da paciente para a comprovação das
afirmações, encontra-se contaminada a ação penal pelos elementos de informação
coletados de forma ilícita, devendo ser trancada.
Em suma:
Médico não pode acionar a polícia para investigar
paciente que procurou atendimento médico-hospitalar por ter praticado manobras
abortivas, uma vez que se mostra como confidente necessário, estando proibido
de revelar segredo do qual tem conhecimento, bem como de depor a respeito do
fato como testemunha.
STJ. 6ª Turma. HC 783.927/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
julgado em 14/3/2023 (Info 767).
O acórdão determinou, ainda, que
o juízo de origem encaminhe os autos do inquérito policial e da ação penal para
o Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, bem como ao Ministério Público
local, para a tomada das medidas que entenderem pertinentes quanto à conduta do
médico que atendeu a paciente e realizou a notícia do crime.