Imagine a seguinte situação
hipotética:
João ajuizou
reclamação trabalhista contra sua antiga empregadora, a empresa Alfa Ltda,
cobrando horas extras, férias e verbas rescisórias não pagas.
O Juiz da
2ª Vara do Trabalho julgou o pedido procedente, sentença confirmada pelo TRT. Houve
o trânsito em julgado.
João
iniciou o cumprimento de sentença cobrando a quantia fixada na sentença.
Depois de algum
tempo, foi noticiado nos autos que João fez a cessão do seu crédito trabalhista
em favor da Beta Ativos, uma empresa especializada em comprar créditos
judiciais.
A Beta
Ativos requereu ao juízo trabalhista a substituição no polo ativo da execução.
Sairia João e entraria a Beta no cumprimento de sentença.
O Juiz da
2ª Vara do Trabalho disse que, diante da cessão a terceiro da titularidade do
crédito trabalhista, a Justiça do Trabalho teria perdido competência para continuar
o processamento da execução. Logo, o magistrado declinou da competência para
uma das Varas Cíveis da Capital.
Para o Juiz
do Trabalho, a competência da Justiça do Trabalho, sedimentada no art. 114 da
Constituição Federal, alcança apenas as ações decorrentes da relação de
trabalho. No caso concreto, a empresa busca o adimplemento de dívida reconhecida
em contrato de cessão de crédito, de natureza cível, não se coadunando com os
fundamentos essenciais da Justiça do Trabalho, de modo que a competência para
dirimir o conflito passa a ser da Justiça Comum.
O Juízo da
3ª Vara Cível, que recebeu o processo, entendeu que não seria competente para
julgar a lida, já que é competência da Justiça do Trabalho processar e julgar a
execução de seus julgados, sendo irrelevante a alteração da titularidade do
crédito trabalhista. Logo, suscitou conflito negativo de competência.
Quem deverá
dirimir esse conflito de competência?
O STJ, considerando que se trata de conflito envolvendo
juízes vinculados a tribunais diversos, nos termos do art. 105, I, “d”, da CF:
Art. 105. Compete ao Superior
Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar,
originariamente:
(...)
d) os conflitos de competência
entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, “o”, bem como
entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a
tribunais diversos;
O que o STJ
decidiu? A competência é da Justiça Comum ou da Justiça do Trabalho?
Justiça do
Trabalho.
Para o STF,
a cessão de crédito não implica alteração da natureza
O STF, recentemente, decidiu que,
se um precatório de natureza alimentar é cedido, ele permanece sendo crédito de
natureza alimentar e, portanto, deverá ser pago de forma preferencial. Na
oportunidade, foi fixada a seguinte tese de repercussão geral:
A cessão de crédito não implica alteração da natureza.
STF. Plenário. RE 631537, Rel. Marco Aurélio, julgado em
22/05/2020 (Repercussão Geral – Tema 361) (Info 980).
O mesmo raciocínio utilizado pelo
STF pode ser aplicado ao presente caso. Isso porque ubi eadem ratio ibi
eadem jus (onde há a mesma razão aplica-se o mesmo direito).
O principal fundamento invocado
para deslocar a competência da Justiça do Trabalho para a Justiça Comum seria o
fato de que, ao realizar a cessão para uma empresa, o crédito teria perdido a sua
natureza trabalhista. Ocorre que, como vimos acima, o STF decidiu que “a cessão
de crédito não implica alteração da natureza”.
A Lei nº 14.112/2020
afirmou que os créditos trabalhistas cedidos na falência, mantêm a sua natureza
e classificação
Em favor da coerência do sistema jurídico, relevante anotar,
ainda, que a Lei nº 14.112/2020 revogou o § 4º do art. 83 da Lei nº 11.101/2005
(Lei de Falências), que estabelecia o rebaixamento do crédito trabalhista
cedido à qualidade de quirografário, e incluiu o § 5º, com a seguinte redação: “para
fins do disposto nesta lei, os créditos cedidos a qualquer título manterão sua
natureza e classificação.” Veja:
LEI DE FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO JUDICIAL (LEI 11.101/2005) |
|
Antes da Lei 14.112/2020 |
Depois da Lei 14.112/2020 |
Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece
à seguinte ordem: (...) |
|
§ 4º Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão
considerados quirografários. |
§ 4º (Revogado). |
Não havia § 5º do art. 83. |
§ 5º Para os fins do disposto nesta Lei, os créditos cedidos
a qualquer título manterão sua natureza e classificação. |
Por força do princípio da perpetuatio
jurisdictionis, a substituição processual não tem repercussão na competência
material já fixada
O art. 43 do CPC prevê o princípio da perpetuatio
jurisdictionis, nos seguintes termos:
Art. 43. Determina-se a
competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo
irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas
posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a
competência absoluta.
No presente caso, a competência
da Justiça do Trabalho já foi firmada quando da distribuição do feito e a mera substituição
processual da parte exequente não altera a competência estabelecida
considerando que o conteúdo trabalhista do crédito permanece incólume.
Aplica-se o art. 778, III,
do CPC
A hipótese em tela é expressamente regulada pelo art. 778, §
1º, III, do CPC, aplicável subsidiária e supletivamente ao processo trabalhista.
Esse dispositivo afirma que:
Art. 778. Pode promover a
execução forçada o credor a quem a lei confere título executivo.
§ 1º Podem promover a execução
forçada ou nela prosseguir, em sucessão ao exequente originário:
(...)
III - o cessionário, quando o
direito resultante do título executivo lhe for transferido por ato entre vivos;
(...)
§ 2º A sucessão prevista no § 1º
independe de consentimento do executado.
Afigura-se, portanto,
inderrogável pela vontade das partes a competência funcional da Justiça
trabalhista, única competente para processar e julgar o cumprimento de sentença
por ela proferida, sendo, a esse propósito, irrelevante a alteração da
titularidade do crédito nela reconhecido.
Com a mesma conclusão do
STJ, é possível citar os seguintes doutrinadores:
“Destaca-se,
de resto, a competência do Juízo da Vara do Trabalho para dar prosseguimento à
execução contra o devedor-executado. Essa provém tanto do disposto no § 1º,
inciso III do art. 778 do Código de Processo Civil de 2015 quanto do fato de a
cessão não implicar modificação no conteúdo ou natureza da obligatio,
remanescendo inalterada a natureza trabalhista dos créditos cedidos, pouco
importando a condição do cessionário, por envolver uma substituição subjetiva,
sem modificação do conteúdo trabalhista das verbas objeto da condenação e da
cessão de crédito. (...)” (LEVENHAGEN, Antônio José de Barros; e Mincucci,
Marília Nascimento. In Revista TST, São Paulo, vol. 87, n. 21, jan/mar 2021. p.
213-227)
(...) Nada
impede que os salários sejam cedidos, pois são impenhoráveis, mas não
inalienáveis. Vedada seria a cessão de situações pessoais, como a estabilidade,
pois diz respeito apenas à pessoa do trabalhador.
(...)
A competência
da Justiça do Trabalho não sofre qualquer alteração pelo ingresso do
cessionário no processo, pois a competência é determinada no momento em que a
ação é proposta, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de
direito ocorridas posteriormente. (MARTINS, Sérgio Pinto. Direito Processual
do Trabalho. Volume Único. 36ª ed. São Paulo: Atlas. 2015, p. 778)
Em suma:
STJ. 2ª Seção.
CC 162.902-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 2/3/2023 (Info
766).