sábado, 1 de abril de 2023
A oitiva do representado deve ser o último ato da instrução no procedimento de apuração de ato infracional
Interrogatório como último ato de
instrução
A Lei nº 11.343/2006 tipifica os delitos envolvendo drogas. Além
de prever os crimes, a referida Lei também traz o procedimento, ou seja, o rito
que deverá ser observado pelo juiz.
Desse modo, a Lei nº 11.343/2006 traz um procedimento especial que
possui algumas diferenças em relação ao procedimento comum ordinário previsto
no CPP. Uma das diferenças reside no momento em que é realizado o
interrogatório do réu. Vejamos:
CPP (art. 400) |
Lei nº 11.343/2006 (art. 57) |
O art. 400 do CPP foi
alterado pela Lei nº 11.719/2008 e, atualmente, o interrogatório deve ser
feito depois da inquirição das testemunhas e da realização das demais provas.
Em suma, o
interrogatório passou a ser o último ato da audiência de instrução (segundo a
antiga previsão, o interrogatório era o primeiro ato). |
O art. 57 da Lei de
Drogas prevê que, na audiência de instrução e julgamento, o interrogatório do
acusado seja feito antes da inquirição das testemunhas. Em suma, o
interrogatório é o primeiro ato da audiência de instrução. |
O que é mais favorável ao réu: ser interrogado antes ou depois da
oitiva das testemunhas?
Depois. Isso porque após o acusado ouvir o
relato trazido pelas testemunhas poderá decidir a versão dos fatos que irá
apresentar. Se, por exemplo, avaliar que nenhuma testemunha o apontou como o
autor do crime, poderá sustentar a negativa de autoria ou optar pelo direito ao
silêncio. Ao contrário, se entender que as testemunhas foram sólidas em
incriminá-lo, terá como opção viável confessar e obter a atenuação da pena.
Dessa feita, a regra do art. 400 do CPP é mais favorável ao réu do
que a previsão do art. 57 da Lei nº 11.343/2006.
Diante dessa constatação, e pelo fato de a Lei nº 11.719/2008 ser
posterior à Lei de Drogas, surgiu uma corrente na doutrina defendendo que o
art. 57 foi derrogado e que, também no procedimento da Lei nº 11.343/2006, o
interrogatório deveria ser o último ato da audiência de instrução. Essa tese
foi acolhida pela jurisprudência?
SIM.
A exigência de realização do
interrogatório ao final da instrução criminal, conforme o art. 400 do CPP, é
aplicável:
• aos processos penais militares;
• aos processos penais eleitorais e
• a todos os procedimentos penais
regidos por legislação especial (ex: lei de drogas).
STF. Plenário. HC 127900/AM, Rel. Min.
Dias Toffoli, julgado em 3/3/2016 (Info 816).
O STJ também acompanhou a posição do STF e passo a decidir que, em
todos os procedimentos penais, independentemente de previsão legal, o
interrogatório deverá ser o último ato da instrução:
(...) 1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC n.
127.900/AM, deu nova conformidade à norma contida no art. 400 do CPP (com
redação dada pela Lei n. 11.719/08), à luz do sistema constitucional acusatório
e dos princípios do contraditório e da ampla defesa. O interrogatório passa a
ser sempre o último ato da instrução, mesmo nos procedimentos regidos por lei
especial, caindo por terra a solução de antinomias com arrimo no princípio da
especialidade. (...)
STJ. 6ª Turma. HC 403.550/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis
Moura, julgado em 15/08/2017 (Info 609).
O ato infracional não é
crime. Mesmo assim, no procedimento de apuração de ato infracional, a oitiva do
representado deve ser o último ato da instrução?
SIM.
A oitiva do representado deve ser o último ato da
instrução no procedimento de apuração de ato infracional.
STJ. 6ª
Turma. AgRg no HC 772.228/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 28/2/2023.
(Info 766).
Exemplo hipotético:
O adolescente Tiago foi
encontrado pela polícia praticando tráfico de drogas.
O Ministério Público representou
o adolescente pela prática do ato infracional análogo ao crime do art. 33,
caput, da Lei nº 11.343/2006.
Ao receber a representação, o juiz entendeu que a oitiva do
adolescente e de seus pais ou responsáveis deveria ser o último ato da
audiência de instrução e julgamento, em conformidade com a orientação fixada
pelo STF no HC 127.900/AM, acima mencionado, bem como pela aplicação
subsidiária do CPP prevista no art. 152, caput, do ECA:
Art. 152. Aos procedimentos
regulados nesta Lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na
legislação processual pertinente.
Sendo assim, o magistrado
determinou que fosse realizada a citação do adolescente para que apresentasse
resposta à representação, em 3 dias, seguindo-se os atos de saneamento,
audiência de instrução com apresentação do adolescente, alegações finais e
sentença.
O Ministério Público não concordou e interpôs agravo de
instrumento, requerendo que a audiência de apresentação e oitiva do adolescente
fosse o primeiro ato processual instrutório, conforme previsão expressa dos arts.
184 e 186 do ECA:
Art. 184. Oferecida a
representação, a
autoridade judiciária designará audiência de apresentação do adolescente,
decidindo, desde logo, sobre a decretação ou manutenção da internação,
observado o disposto no art. 108 e parágrafo.
§ 1º O adolescente e seus pais ou
responsável serão cientificados do teor da representação, e notificados a
comparecer à audiência, acompanhados de advogado.
(...)
Art. 186. Comparecendo o
adolescente, seus pais ou responsável, a autoridade judiciária procederá à oitiva dos mesmos, podendo
solicitar opinião de profissional qualificado.
(...)
Somente após a oitiva do adolescente e de seus pais, é que a
defesa irá apresentar o rol de testemunhas e o juiz designará audiência de
continuação para ouvi-las. É o que preveem os §§ 3º e 4º do art. 186:
Art. 186 (...)
§ 3º O advogado constituído ou o
defensor nomeado, no prazo de três dias contado da audiência de apresentação,
oferecerá defesa prévia e rol de testemunhas.
§ 4º Na audiência em continuação,
ouvidas as testemunhas arroladas na representação e na defesa prévia, cumpridas
as diligências e juntado o relatório da equipe interprofissional, será dada a
palavra ao representante do Ministério Público e ao defensor, sucessivamente,
pelo tempo de vinte minutos para cada um, prorrogável por mais dez, a critério
da autoridade judiciária, que em seguida proferirá decisão.
Desse modo, os arts. 184 e 186 do
ECA já preveem um procedimento específico para oitiva do adolescente infrator,
em primeiro lugar, seguido das inquirições das testemunhas.
Para o MP, não seria possível
aplicar o CPP de forma subsidiária porque não existe lacuna no ECA nesse
particular.
O STJ concordou com os
argumentos do juiz ou do MP?
Do Juiz.
Como vimos acima, o art. 400 do CPP,
na redação dada pela Lei nº 11.719/2008, afirma que o interrogatório será
realizado ao final da instrução criminal.
O
art. 184 do ECA, diferentemente do CPP, prevê que a oitiva do adolescente e de
seus pais é o primeiro ato.
Existe, portanto, uma antinomia
aparente de segundo grau. Neste caso, em regra, deveria prevalecer o critério
da especialidade. Logo, seria aplicada a regra do ECA (oitiva em primeiro
lugar).
Contudo,
o Supremo Tribunal Federal, em recentes decisões monocráticas, tem aplicado a
orientação firmada no HC 127.900/AM ao procedimento de apuração de ato
infracional, sob o fundamento de que o art. 400 do CPP possibilita ao
representado exercer de modo mais eficaz a sua defesa e, por essa razão, em uma
aplicação sistemática do direito, tal dispositivo legal deve suplantar o
estatuído no art. 184 do ECA.
Diante disso, o STJ afirmou que
deveria seguir esse entendimento do STF, e, portanto, a oitiva do representado
deve ser o último ato da instrução no procedimento de apuração de ato
infracional.
Assim, o adolescente irá prestar
suas declarações após ter contato com todo o acervo probatório produzido, tendo
maiores elementos para exercer sua autodefesa ou, se for caso, valer-se do
direito ao silêncio, sob pena de evidente prejuízo à concretização dos
princípios do contraditório e da ampla defesa.
Ademais, é relevante mencionar
que a aplicação do art. 400 do CPP ao procedimento de apuração de ato
infracional se justifica também porque o adolescente não pode receber
tratamento mais gravoso do aquele conferido ao adulto, de acordo com o art. 35,
I, da Lei nº 12.594/2012 (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) e o
item 54 das Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência
Juvenil (Diretrizes de Riad).
Se a oitiva do adolescente
foi realizada antes das inquirições das testemunhas, violando o entendimento
acima explicado, esse vício necessariamente acarretará a nulidade do processo?
NÃO.
A nulidade decorrente da inversão
da ordem do interrogatório prevista no art. 400 do CPP está sujeita à preclusão
e demanda a demonstração de efetivo prejuízo (STJ. 5ª Turma. AgRg no HC
783.953/SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 13/3/2023).
Assim, conforme entendimento
majoritário do STJ, alegação desse vício pela defesa deverá observar os
princípios informativos das nulidades processuais, notadamente o princípio da
oportunidade e o princípio do prejuízo ou transcendência (pas de nullité
sans grief).