Imagine a seguinte situação adaptada:
O navio Vicuña, de bandeira do
Chile, transportou para o Brasil, uma grande quantidade de “metanol”,
substância utilizada como matéria-prima para a produção de alguns medicamentos.
Ocorre que, em 15 de novembro de
2004, quando já estava atracado no porto de Paranaguá/PR, o navio explodiu.
Isso provocou uma tragédia ambiental porque houve o vazamento de milhões de
litros de óleo e de metanol, poluindo toda a bacia, que é considerada uma das
mais importantes para as espécies marinhas no Brasil.
Em razão do derramamento do óleo e do metanol, a pesca na
região ficou temporariamente proibida.
O IBAMA autuou a Naviera Ultragas
Ltda, proprietária do navio Vicuña, imputando-lhe responsabilidade por “deixar
de adotar medidas necessárias para cessação, contenção e remoção das fontes de
poluição por produtos químicos inflamáveis”. Em outras palavras, a multa
aplicada pelo IBAMA teve por fundamento a omissão da autuada na adoção de
medidas para conter/minorar o dano ambiental, após o acidente (Lei nº 9.605/98).
A Capitania dos Portos (órgão da
União) também autuou a empresa e a multa teve por fundamento o lançamento no
mar de substâncias proibidas pela legislação que rege a matéria (Lei nº 9.966/2000),
decorrente de vazamento em navio.
O IBAMA ajuizou execução fiscal
em face de Naviera Ultragas Ltda.
A executada apresentou exceção de pré-executividade
sustentando, dentre outros argumentos, que a autoridade marítima (Capitania dos
Portos) possuía competência exclusiva para aplicar multa ao navio, com base no
art. 27 da Lei nº 9.966/2000 (que dispõe sobre a prevenção, o controle e a
fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias
nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional):
Art. 27. São responsáveis pelo
cumprimento desta Lei:
I – a autoridade marítima, por
intermédio de suas organizações competentes, com as seguintes atribuições:
a) fiscalizar navios, plataformas
e suas instalações de apoio, e as cargas embarcadas, de natureza nociva ou
perigosa, autuando os infratores na esfera de sua competência;
b) levantar dados e informações e
apurar responsabilidades sobre os incidentes com navios, plataformas e suas
instalações de apoio que tenham provocado danos ambientais;
c) encaminhar os dados,
informações e resultados de apuração de responsabilidades ao órgão federal de
meio ambiente, para avaliação dos danos ambientais e início das medidas
judiciais cabíveis;
d) comunicar ao órgão regulador
da indústria do petróleo irregularidades encontradas durante a fiscalização de
navios, plataformas e suas instalações de apoio, quando atinentes à indústria
do petróleo;
II – o órgão federal de meio
ambiente, com as seguintes atribuições:
a) realizar o controle ambiental
e a fiscalização dos portos organizados, das instalações portuárias, das cargas
movimentadas, de natureza nociva ou perigosa, e das plataformas e suas
instalações de apoio, quanto às exigências previstas no licenciamento
ambiental, autuando os infratores na esfera de sua competência;
b) avaliar os danos ambientais
causados por incidentes nos portos organizados, dutos, instalações portuárias,
navios, plataformas e suas instalações de apoio;
c) encaminhar à
Procuradoria-Geral da República relatório circunstanciado sobre os incidentes
causadores de dano ambiental para a propositura das medidas judiciais
necessárias;
d) comunicar ao órgão regulador
da indústria do petróleo irregularidades encontradas durante a fiscalização de
navios, plataformas e suas instalações de apoio, quando atinentes à indústria
do petróleo;
(...)
Logo, para a empresa, a multa
aplicada pela Capitania dos Portos, em decorrência de derramamento de óleo,
excluiria a possibilidade de aplicação de multa pelo IBAMA.
O STJ acolheu a tese da
empresa?
NÃO.
O STJ possui o entendimento consolidado no sentido de que:
STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 2.032.619-PR, Rel. Min. Regina Helena
Costa, julgado em 13/3/2023 (Info 768).
A multa aplicada pela Capitania dos Portos, em decorrência de
derramamento de óleo, não exclui a possibilidade de aplicação de multa pelo
IBAMA.
STJ. 1ª Turma. AgRg no REsp 1.268.832/RS, Rel. Min. Benedito
Gonçalves, julgado em 6/12/2012.
Mas não haveria bis in
idem, neste caso?
NÃO. Isso porque a competência da
Capitania dos Portos não exclui, mas complementa, a legitimidade fiscalizatória
e sancionadora dos órgãos de proteção ao meio ambiente (STJ. 2ª Turma. REsp
1.560.022/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 5/11/2015).
Se tiver tempo e quiser aprofundar, confira os argumentos do
Tribunal de origem, mantidos pelo STJ, para afastar o bis in idem:
“(...) Alega a
excipiente que houve somente uma infração, não cabendo a aplicação cumulativa
de duas sanções, de modo que, já tendo a executada sido autuada pelo órgão
competente (defende que seria a Capitania dos Portos), não caberia ao IBAMA
novamente aplicar multa sobre a mesma conduta, independentemente do resultado
causado. Uma vez reconhecida a legitimidade do IBAMA para aplicação da multa
ora impugnada nestes autos, também se verifica que não houve violação ao
princípio do non bis in idem, eis que diversos foram os bens jurídicos
atingidos com o fato danoso, sendo que os dois entes de fiscalização possuem
atribuições para a imposição de multa, defluindo tais atribuições de
fundamentos jurídicos diversos.
A legitimidade
do IBAMA para fixar a multa decorre dos artigos 70 e 72 da Lei n. 9.605/1998,
enquanto a da Capitania dos Portos, do disposto na Lei 9.966/2000. Tanto é
assim, que a multa aplicada pelo IBAMA tem caráter repressivo do dano ambiental
causado, ao passo que a multa aplicada pela Capitania é vinculada ao Fundo
Naval e destinada ao cumprimento de manutenção dos serviços necessários à
fiscalização da observância da lei, não estando relacionada propriamente à
repressão do dano ambiental causado. Sobre a matéria, o § 1º do art. 72 da Lei
n. 9.605 estabelece que se o infrator cometer, simultaneamente, duas ou mais
infrações, ser-lhe-ão aplicadas, cumulativamente, as sanções a elas cominadas.
Observe-se, ainda, que o artigo 25, §3º, da Lei n. 9.966/2000 é expresso em
afirmar que ‘a aplicação das penas previstas neste artigo não isenta o agente
de outras sanções administrativas e penais previstas na Lei no 9.605, de 12 de
fevereiro de 1998, e em outras normas específicas que tratem da matéria, nem da
responsabilidade civil pelas perdas e danos causados ao meio ambiente e ao
patrimônio público e privado", o que demonstra o caráter autônomo das
multas aplicadas pela autoridade marítima e pela autoridade ambiental.
Não bastasse
isso, verifico que o fundamento fático-jurídico das multas aplicadas é diverso.
A autuação efetuada pela autoridade marítima teve por fundamento o lançamento
no mar de substâncias proibidas pela legislação que rege a matéria (Lei n.
9.966/2000), decorrente de vazamento em navio. A efetuada pelo IBAMA teve por
fundamento a omissão da autuada na adoção de medidas para conter/minorar o dano
ambiental, após o acidente (Lei n. 9.605/1998).
Tratando-se,
portanto, de infrações diversas, não há como se sustentar a alegação de
ocorrência de duplicidade de multas pelo mesmo fato, nem que o IBAMA apenas
poderia atuar em caso de inércia da Autoridade Marítima, pois, conforme já
mencionado, a legislação ambiental não veda a atuação da autoridade ambiental
nesta hipótese.”