Dizer o Direito

quarta-feira, 26 de abril de 2023

A mudança total do nome registral não é possível por falta de previsão legal e respeito à segurança jurídica

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

Carla Santos possui origem indígena.

Apesar de não ter sido criada na cultura indígena, os genitores preservaram diversos costumes de seu povo, como uso de redes, bonecas de palha, miçangas, tratamento com ervas, rezas etc.

Quando tinha 20 anos, Carla começou a participar de reuniões na Aldeia Maracanã, buscando resgatar suas origens. Descobriu então que pertencia a etnia Puri. Passou a adotar no dia a dia os costumes e tradições indígenas.

Alguns anos depois, ela fundou a Aldeia Uchô Puri e passou a ser reconhecida como líder da comunidade.

Carla deixou de se identificar com seu nome registral, que não condiz com a atual escolha de vida nem com a sua ancestralidade.

Diante de todo esse contexto, Carla ingressou com ação pedindo a alteração de seu registro civil de nascimento. A autora requereu a completa supressão e substituição total do nome registral. Pediu para agora seu nome ser Opetahra Nhâmarúri Puri Coroado.

 

A discussão quanto a essa controvérsia chegou até o STJ. É possível atender o pedido de Carla?

O STJ entendeu que não.

A legislação pátria adota o princípio da definitividade do registro civil da pessoa natural, consolidada na recente alteração promovida pela Lei nº 14.382/2022, de modo que o prenome e nome são, em regra, definitivos a fim de garantir a segurança jurídica e a estabilidade das relações jurídicas.

A doutrina e a jurisprudência, no entanto, tem atribuído interpretação mais flexível e ampla às normas e consentânea com os fins sociais a que se destinam, permitindo o abrandamento da regra geral, para permitir a alteração do nome em casos específicos.

A presente hipótese, no entanto, trata de situação bem diversa das já julgadas pelo STJ. Isso porque a autora pretendia a completa supressão do nome registrar e a sua total substituição total para adotar outros prenome e sobrenomes completos.

O art. 56 da Lei nº 6.015/73, com redação dada pela Lei nº 14.382/2022, estabelece que:

Art. 56. A pessoa registrada poderá, após ter atingido a maioridade civil, requerer pessoalmente e imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de decisão judicial, e a alteração será averbada e publicada em meio eletrônico.

§ 1º A alteração imotivada de prenome poderá ser feita na via extrajudicial apenas 1 (uma) vez, e sua desconstituição dependerá de sentença judicial.

§ 2º A averbação de alteração de prenome conterá, obrigatoriamente, o prenome anterior, os números de documento de identidade, de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, de passaporte e de título de eleitor do registrado, dados esses que deverão constar expressamente de todas as certidões solicitadas.

§ 3º Finalizado o procedimento de alteração no assento, o ofício de registro civil de pessoas naturais no qual se processou a alteração, a expensas do requerente, comunicará o ato oficialmente aos órgãos expedidores do documento de identidade, do CPF e do passaporte, bem como ao Tribunal Superior Eleitoral, preferencialmente por meio eletrônico.

§ 4º Se suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente, o oficial de registro civil fundamentadamente recusará a retificação.

 

A partir da análise desse dispositivo, podemos chegar a algumas conclusões:

a) é possível uma única alteração imotivada de prenome;

b) mesmo em caso de alteração do nome, deve-se preservar os apelidos de família;

c) é obrigatória a observância de cautelas formais, relativas à preservação das anotações inerentes às alterações, tanto junto ao próprio registro público, como em relação às demais repartições publicadas incumbidas da emissão de documentos de identificação da pessoa física.

 

Na presente hipótese, verifica-se que a autora não quer apenas substituir seu prenome por outro. Ela também pretendia excluir de seu nome os patronímicos materno e paterno, apagando, assim, completamente, qualquer menção a sua estirpe familiar.

Existem várias hipóteses previstas na Lei de Registros Públicos que relativizam o princípio da definitividade do nome. Vale ressaltar, contudo, que nenhuma delas contempla a possibilidade de exclusão total dos patronímicos materno e paterno registrados, com substituição por outros de livre escolha e criação do titular e sem qualquer comprovação ou mínima relação com as linhas ascendentes, com concomitante alteração voluntária também do prenome registrado.

A Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 3/2012, admite a retificação do assento de nascimento de pessoa indígena, para inclusão das informações constantes do art. 2º, caput e § 1º, relativas a nome indígena e à respectiva etnia. Não há previsão, no entanto, de adoção das mesmas medidas para pessoa que, sem mínima comprovação de origem autóctone brasileira, deseja tornar-se indígena, por razões meramente subjetivas e voluntárias, com substituição total do nome e exclusão dos apelidos de família.

A indicada Resolução tutela os direitos de pessoa comprovadamente indígena, integrada ou não, sendo tal condição genética pré-requisito necessário para o alcance da norma, mas não ampara os caso em que existe apenas o forte e sincero desejo de passar a ser tida como indígena, sem que se comprove origem e ascendência de povo pré-colombiano.

 

Em suma:

Não é possível a completa supressão e substituição total do nome registral, por pessoa autoidentificada como indígena, por ausência de previsão legal, bem como por respeito ao princípio da segurança jurídica e das relações jurídicas a serem afetadas.

STJ. 4ª Turma. REsp 1.927.090-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Rel. para acórdão Ministro Raul Araújo, julgado em 21/3/2023 (Info 768).

 

 


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