Imagine a seguinte situação adaptada:
Carla Santos possui origem
indígena.
Apesar de não ter sido criada na cultura
indígena, os genitores preservaram diversos costumes de seu povo, como uso de
redes, bonecas de palha, miçangas, tratamento com ervas, rezas etc.
Quando tinha 20 anos, Carla
começou a participar de reuniões na Aldeia Maracanã, buscando resgatar suas
origens. Descobriu então que pertencia a etnia Puri. Passou a adotar no dia a
dia os costumes e tradições indígenas.
Alguns anos depois, ela fundou a
Aldeia Uchô Puri e passou a ser reconhecida como líder da comunidade.
Carla deixou de se identificar
com seu nome registral, que não condiz com a atual escolha de vida nem com a
sua ancestralidade.
Diante de todo esse contexto,
Carla ingressou com ação pedindo a alteração de seu registro civil de
nascimento. A autora requereu a completa supressão e substituição total do nome
registral. Pediu para agora seu nome ser Opetahra Nhâmarúri Puri Coroado.
A discussão quanto a essa
controvérsia chegou até o STJ. É possível atender o pedido de Carla?
O STJ entendeu que não.
A legislação pátria adota o
princípio da definitividade do registro civil da pessoa natural, consolidada na
recente alteração promovida pela Lei nº 14.382/2022, de modo que o prenome e
nome são, em regra, definitivos a fim de garantir a segurança jurídica e
a estabilidade das relações jurídicas.
A doutrina e a jurisprudência, no
entanto, tem atribuído interpretação mais flexível e ampla às normas e
consentânea com os fins sociais a que se destinam, permitindo o abrandamento da
regra geral, para permitir a alteração do nome em casos específicos.
A presente hipótese, no entanto,
trata de situação bem diversa das já julgadas pelo STJ. Isso porque a autora
pretendia a completa supressão do nome registrar e a sua total substituição
total para adotar outros prenome e sobrenomes completos.
O art. 56 da Lei nº 6.015/73, com redação dada pela Lei nº
14.382/2022, estabelece que:
Art. 56. A pessoa registrada
poderá, após ter atingido a maioridade civil, requerer pessoalmente e
imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de decisão
judicial, e a alteração será averbada e publicada em meio eletrônico.
§ 1º A alteração imotivada de
prenome poderá ser feita na via extrajudicial apenas 1 (uma) vez, e sua
desconstituição dependerá de sentença judicial.
§ 2º A averbação de alteração de
prenome conterá, obrigatoriamente, o prenome anterior, os números de documento
de identidade, de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) da Secretaria
Especial da Receita Federal do Brasil, de passaporte e de título de eleitor do
registrado, dados esses que deverão constar expressamente de todas as certidões
solicitadas.
§ 3º Finalizado o procedimento de
alteração no assento, o ofício de registro civil de pessoas naturais no qual se
processou a alteração, a expensas do requerente, comunicará o ato oficialmente
aos órgãos expedidores do documento de identidade, do CPF e do passaporte, bem
como ao Tribunal Superior Eleitoral, preferencialmente por meio eletrônico.
§ 4º Se suspeitar de fraude,
falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa
requerente, o oficial de registro civil fundamentadamente recusará a
retificação.
A partir da análise desse
dispositivo, podemos chegar a algumas conclusões:
a) é possível uma única alteração
imotivada de prenome;
b) mesmo em caso de alteração do
nome, deve-se preservar os apelidos de família;
c) é obrigatória a observância de
cautelas formais, relativas à preservação das anotações inerentes às
alterações, tanto junto ao próprio registro público, como em relação às demais repartições
publicadas incumbidas da emissão de documentos de identificação da pessoa
física.
Na presente hipótese, verifica-se
que a autora não quer apenas substituir seu prenome por outro. Ela também
pretendia excluir de seu nome os patronímicos materno e paterno, apagando,
assim, completamente, qualquer menção a sua estirpe familiar.
Existem várias hipóteses previstas
na Lei de Registros Públicos que relativizam o princípio da definitividade do
nome. Vale ressaltar, contudo, que nenhuma delas contempla a possibilidade de
exclusão total dos patronímicos materno e paterno registrados, com substituição
por outros de livre escolha e criação do titular e sem qualquer comprovação ou
mínima relação com as linhas ascendentes, com concomitante alteração voluntária
também do prenome registrado.
A Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº
3/2012, admite a retificação do assento de nascimento de pessoa indígena, para
inclusão das informações constantes do art. 2º, caput e § 1º, relativas a nome
indígena e à respectiva etnia. Não há previsão, no entanto, de adoção das
mesmas medidas para pessoa que, sem mínima comprovação de origem autóctone
brasileira, deseja tornar-se indígena, por razões meramente subjetivas e
voluntárias, com substituição total do nome e exclusão dos apelidos de família.
A indicada Resolução tutela os
direitos de pessoa comprovadamente indígena, integrada ou não, sendo tal
condição genética pré-requisito necessário para o alcance da norma, mas não
ampara os caso em que existe apenas o forte e sincero desejo de passar a ser
tida como indígena, sem que se comprove origem e ascendência de povo
pré-colombiano.
Em suma:
Não é possível a completa supressão e substituição
total do nome registral, por pessoa autoidentificada como indígena, por
ausência de previsão legal, bem como por respeito ao princípio da segurança
jurídica e das relações jurídicas a serem afetadas.
STJ. 4ª
Turma. REsp 1.927.090-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Rel. para acórdão
Ministro Raul Araújo, julgado em 21/3/2023 (Info 768).