Imagine
a seguinte situação hipotética:
João
e Francisca eram casados.
Determinado
dia, tiveram uma grave discussão e ele disse que iria matar a mulher.
No
mesmo instante, Francisca decidiu que não queria mais viver com ele e, com medo
da ameaça, procurou a Delegacia da Mulher.
O Ministério Público ofereceu denúncia contra
João pela prática do crime de ameaça, previsto no art. 147 do Código Penal:
Art.
147. Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio
simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena
- detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo
único - Somente se procede mediante representação.
Qual
é a natureza da ação penal no caso do crime de ameaça?
Trata-se
de crime de ação penal pública condicionada. Assim, a denúncia somente pode ser
oferecida se houver representação da vítima (art. 147, parágrafo único, do CP).
A
pena do crime de ameaça é de 1 a 6 meses de detenção. Trata-se, portanto, de
infração de menor potencial ofensivo. Por que não foram aplicadas, no exemplo
acima, as medidas despenalizadoras da Lei nº 9.099/95 (suspensão condicional do
processo e transação penal)?
A Lei Maria da Penha proíbe expressamente
que se aplique a Lei nº 9.099/95 para os crimes praticados com violência
doméstica e familiar contra a mulher. Veja:
Art.
41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de
setembro de 1995.
Por
essa razão, a suspensão condicional do processo e a transação penal não se
aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha. Nesse
sentido:
Súmula 536-STJ: A
suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na
hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.
Alguns
de vocês podem estar se perguntando: “eu já ouvi dizer que a lesão corporal
leve é crime de ação pública condicionada, salvo no caso de violência
doméstica”. Isso significa que todo crime praticado contra a mulher envolvendo
violência doméstica será de ação pública incondicionada?
NÃO.
Realmente, a lesão corporal leve cometida em
detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é crime de ação pública
incondicionada. Isso porque o art. 88 da Lei nº 9.099/95 não se aplica para os
casos de violência doméstica:
Art.
88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de
representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e
lesões culposas.
Existe
até um enunciado do STJ nesse sentido:
Súmula 542-STJ: A ação
penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica
contra a mulher é pública incondicionada.
Por
outro lado, é errado dizer que todos os crimes praticados contra a mulher, em
sede de violência doméstica, serão de ação penal incondicionada. Continuam
existindo crimes praticados contra a mulher (em violência doméstica) que são de
ação penal condicionada, desde que a exigência de representação esteja prevista
no Código Penal ou em outras leis, que não a Lei nº 9.099/95.
Assim,
por exemplo, a ameaça praticada pelo marido contra a mulher continua sendo de
ação pública condicionada porque tal exigência consta do parágrafo único do
art. 147 do CP.
O
que a Súmula nº 542 do STJ afirma é que o delito de LESÃO CORPORAL praticado
com violência doméstica contra a mulher é sempre de ação penal incondicionada
porque o art. 88 da Lei nº 9.099/95 não pode ser aplicado aos casos da Lei
Maria da Penha.
Voltando
ao nosso exemplo:
Como
houve representação da vítima, o Promotor de Justiça ofereceu denúncia contra o
réu pela prática de ameaça (art. 147 do CP).
A
denúncia foi recebida.
Ao
final da instrução, o juiz condenou João pela prática do crime.
O
réu interpôs apelação alegando que não havia provas suficientes para a
condenação.
Ao
julgar a apelação, o Tribunal de Justiça, em preliminar, declarou a nulidade do
processo.
Segundo
o TJ, o crime de ameaça é de ação penal pública condicionada à representação da
vítima. Logo, o juiz deveria, de ofício, ter designado a audiência prévia
prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha, para que, antes do recebimento da
denúncia, a vítima tivesse tido a oportunidade de renunciar à representação.
Confira o que
estabelece o art. 16 da Lei nº 11.340/2006:
Art.
16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que
trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em
audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da
denúncia e ouvido o Ministério Público.
No
caso concreto, como o juiz singular não determinou a realização da audiência preliminar
prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006, impunha-se a decretação da nulidade
do feito.
O
STJ concordou com os argumentos do TJ? A audiência prevista no art. 16 da Lei
nº 11.340/2006 é sempre obrigatória, devendo ser designada de ofício pelo juiz?
NÃO.
Art.
16 disciplina procedimento para que a vítima se retrate nos crimes de ação
pública condicionada
O
art. 16 da Lei Maria da Penha prevê um procedimento próprio para que a vítima
possa eventualmente se retratar de representação já apresentada.
Como
vimos acima, esse dispositivo afirma que, “nas ações penais públicas
condicionadas à representação da ofendida de que trata esta lei, só será admitida
a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada
com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério
Público”.
Vale
ressaltar, mais uma vez, que a norma somente se aplica para as hipóteses de
ações penais públicas condicionadas à representação, nas quais a representação
da vítima constitui condição de procedibilidade para a instauração do inquérito
policial e de futura ação penal.
Para
que a audiência seja marcada, é indispensável manifestação da vítima
Para
que a audiência do art. 16 se realize é indispensável a prévia manifestação da
vítima levada ao conhecimento do juiz, expressando seu desejo de se retratar.
Nesse
sentido, é imperativo (obrigatório) que a ofendida, sponte propria,
revogue sua declaração anterior e leve tal revogação ao conhecimento do
magistrado para que se possa cogitar da necessidade de designação da audiência
específica prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha.
Intenção
do legislador foi a de evitar que a vítima sofra ameaças ou pressões para se
retratar
A
intenção do legislador, ao criar tal audiência, foi a de evitar ou pelo menos
minimizar a possibilidade de oferecimento de retratação pela vítima em virtude
de ameaças ou pressões externas, garantindo a higidez e autonomia de sua nova
manifestação de vontade em relação à persecução penal do agressor.
Assim,
não há como se interpretar a regra contida no art. 16 da Lei nº 11.340/2006
como uma audiência destinada à confirmação do interesse da vítima em
representar contra seu agressor, pois a letra da lei deixa claro que tal
audiência se destina à confirmação da retratação.
Se
a vítima já fez a representação no início da persecução, ela se presume válida
Como
regra geral, o Direito Civil (arts. 107 e 110 do CC) já prevê que, exarada uma
manifestação de vontade por indivíduo reputado capaz, consciente, lúcido, livre
de erros de concepção, coação ou premente necessidade, tal declaração é válida
até que sobrevenha manifestação do mesmo indivíduo em sentido contrário.
A
designação obrigatória da audiência do art. 16 representa uma forma de
revitimização
A
realização obrigatória de uma audiência para confirmar se a vítima da violência
doméstica permanece com interesse de seguir com o processo contra seu agressor é
uma providência que ganha contornos mais sensíveis e que tem o potencial de
agravar o estado psicológico da vítima. Isso porque essa audiência coloca em
dúvida a veracidade de seu relato inicial.
Além
disso, não raras vezes a vítima está inserida em um cenário de dependência
emocional e/ou financeira, fazendo com que ela se questione se vale a pena
denunciar as agressões sofridas, enfraquecendo o objetivo da Lei Maria da Penha
de garantir uma igualdade substantiva às mulheres que sofrem violência
doméstica.
Por
fim, essa audiência, se obrigatória, leva a vítima a reviver os traumas
decorrentes dos abusos.
Com
base nesse contexto, o STJ já decidiu que:
A audiência do art. 16
deve ser realizada nos casos em que houve manifestação da vítima em desistir da
persecução penal. Isso não quer dizer, porém, que eventual não comparecimento
da ofendida à audiência do art. 16 ou a qualquer ato do processo seja
considerado como 'retratação tácita'. Pelo contrário: se a ofendida já ofereceu
a representação no prazo de 06 (seis) meses, na forma do art. 38 do CPP, nada
resta a ela a fazer a não ser aguardar pelo impulso oficial da persecutio
criminis.
STJ. 6ª Turma. AREsp 1.165.962/AM, Rel. Min.
Sebastião Reis Junior, DJe 22/11/2017.
STJ. 6ª Turma. EDcl no
REsp 1.822.250/SP, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, DJe 11/11/2019.
Diante
de todo o exposto, fica nítido que a audiência prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006
não pode ser designada de ofício pelo magistrado, até porque uma iniciativa com
tal propósito corresponderia à criação de condição de procedibilidade
(ratificação da representação) não prevista na Lei Maria da Penha, viciando de
nulidade o ato praticado de ofício pelo juiz.
A
audiência preliminar prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da
Penha) não é um ato processual obrigatório determinado pela lei. A realização
dessa audiência configura apenas um direito da vítima, caso ela manifeste o
desejo de se retratar.
Em
suma:
STJ. 3ª Seção. REsp 1.977.547-MG,
Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 8/3/2023 (Recurso Repetitivo –
Tema 1167) (Info 766).