Dizer o Direito

quarta-feira, 5 de abril de 2023

A audiência prevista no art. 16 da Lei 11.340/2006 tem por objetivo confirmar a retratação, não a representação, e não pode ser designada de ofício pelo juiz

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João e Francisca eram casados.

Determinado dia, tiveram uma grave discussão e ele disse que iria matar a mulher.

No mesmo instante, Francisca decidiu que não queria mais viver com ele e, com medo da ameaça, procurou a Delegacia da Mulher.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João pela prática do crime de ameaça, previsto no art. 147 do Código Penal:

Art. 147. Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.

 

Qual é a natureza da ação penal no caso do crime de ameaça?

Trata-se de crime de ação penal pública condicionada. Assim, a denúncia somente pode ser oferecida se houver representação da vítima (art. 147, parágrafo único, do CP).

 

A pena do crime de ameaça é de 1 a 6 meses de detenção. Trata-se, portanto, de infração de menor potencial ofensivo. Por que não foram aplicadas, no exemplo acima, as medidas despenalizadoras da Lei nº 9.099/95 (suspensão condicional do processo e transação penal)?

A Lei Maria da Penha proíbe expressamente que se aplique a Lei nº 9.099/95 para os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Veja:

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995.

 

Por essa razão, a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha. Nesse sentido:

Súmula 536-STJ: A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.

 

Alguns de vocês podem estar se perguntando: “eu já ouvi dizer que a lesão corporal leve é crime de ação pública condicionada, salvo no caso de violência doméstica”. Isso significa que todo crime praticado contra a mulher envolvendo violência doméstica será de ação pública incondicionada?

NÃO.

Realmente, a lesão corporal leve cometida em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é crime de ação pública incondicionada. Isso porque o art. 88 da Lei nº 9.099/95 não se aplica para os casos de violência doméstica:

Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.

 

Existe até um enunciado do STJ nesse sentido:

Súmula 542-STJ: A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada.

 

Por outro lado, é errado dizer que todos os crimes praticados contra a mulher, em sede de violência doméstica, serão de ação penal incondicionada. Continuam existindo crimes praticados contra a mulher (em violência doméstica) que são de ação penal condicionada, desde que a exigência de representação esteja prevista no Código Penal ou em outras leis, que não a Lei nº 9.099/95.

Assim, por exemplo, a ameaça praticada pelo marido contra a mulher continua sendo de ação pública condicionada porque tal exigência consta do parágrafo único do art. 147 do CP.

O que a Súmula nº 542 do STJ afirma é que o delito de LESÃO CORPORAL praticado com violência doméstica contra a mulher é sempre de ação penal incondicionada porque o art. 88 da Lei nº 9.099/95 não pode ser aplicado aos casos da Lei Maria da Penha.

 

Voltando ao nosso exemplo:

Como houve representação da vítima, o Promotor de Justiça ofereceu denúncia contra o réu pela prática de ameaça (art. 147 do CP).

A denúncia foi recebida.

Ao final da instrução, o juiz condenou João pela prática do crime.

O réu interpôs apelação alegando que não havia provas suficientes para a condenação.

Ao julgar a apelação, o Tribunal de Justiça, em preliminar, declarou a nulidade do processo.

Segundo o TJ, o crime de ameaça é de ação penal pública condicionada à representação da vítima. Logo, o juiz deveria, de ofício, ter designado a audiência prévia prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha, para que, antes do recebimento da denúncia, a vítima tivesse tido a oportunidade de renunciar à representação.

Confira o que estabelece o art. 16 da Lei nº 11.340/2006:

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

 

No caso concreto, como o juiz singular não determinou a realização da audiência preliminar prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006, impunha-se a decretação da nulidade do feito.

 

O STJ concordou com os argumentos do TJ? A audiência prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006 é sempre obrigatória, devendo ser designada de ofício pelo juiz?

NÃO.

 

Art. 16 disciplina procedimento para que a vítima se retrate nos crimes de ação pública condicionada

O art. 16 da Lei Maria da Penha prevê um procedimento próprio para que a vítima possa eventualmente se retratar de representação já apresentada.

Como vimos acima, esse dispositivo afirma que, “nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”.

Vale ressaltar, mais uma vez, que a norma somente se aplica para as hipóteses de ações penais públicas condicionadas à representação, nas quais a representação da vítima constitui condição de procedibilidade para a instauração do inquérito policial e de futura ação penal.

 

Para que a audiência seja marcada, é indispensável manifestação da vítima

Para que a audiência do art. 16 se realize é indispensável a prévia manifestação da vítima levada ao conhecimento do juiz, expressando seu desejo de se retratar.

Nesse sentido, é imperativo (obrigatório) que a ofendida, sponte propria, revogue sua declaração anterior e leve tal revogação ao conhecimento do magistrado para que se possa cogitar da necessidade de designação da audiência específica prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha.

 

Intenção do legislador foi a de evitar que a vítima sofra ameaças ou pressões para se retratar

A intenção do legislador, ao criar tal audiência, foi a de evitar ou pelo menos minimizar a possibilidade de oferecimento de retratação pela vítima em virtude de ameaças ou pressões externas, garantindo a higidez e autonomia de sua nova manifestação de vontade em relação à persecução penal do agressor.

Assim, não há como se interpretar a regra contida no art. 16 da Lei nº 11.340/2006 como uma audiência destinada à confirmação do interesse da vítima em representar contra seu agressor, pois a letra da lei deixa claro que tal audiência se destina à confirmação da retratação.

 

Se a vítima já fez a representação no início da persecução, ela se presume válida

Como regra geral, o Direito Civil (arts. 107 e 110 do CC) já prevê que, exarada uma manifestação de vontade por indivíduo reputado capaz, consciente, lúcido, livre de erros de concepção, coação ou premente necessidade, tal declaração é válida até que sobrevenha manifestação do mesmo indivíduo em sentido contrário.

 

A designação obrigatória da audiência do art. 16 representa uma forma de revitimização

A realização obrigatória de uma audiência para confirmar se a vítima da violência doméstica permanece com interesse de seguir com o processo contra seu agressor é uma providência que ganha contornos mais sensíveis e que tem o potencial de agravar o estado psicológico da vítima. Isso porque essa audiência coloca em dúvida a veracidade de seu relato inicial.

Além disso, não raras vezes a vítima está inserida em um cenário de dependência emocional e/ou financeira, fazendo com que ela se questione se vale a pena denunciar as agressões sofridas, enfraquecendo o objetivo da Lei Maria da Penha de garantir uma igualdade substantiva às mulheres que sofrem violência doméstica.

Por fim, essa audiência, se obrigatória, leva a vítima a reviver os traumas decorrentes dos abusos.

Com base nesse contexto, o STJ já decidiu que:

A audiência do art. 16 deve ser realizada nos casos em que houve manifestação da vítima em desistir da persecução penal. Isso não quer dizer, porém, que eventual não comparecimento da ofendida à audiência do art. 16 ou a qualquer ato do processo seja considerado como 'retratação tácita'. Pelo contrário: se a ofendida já ofereceu a representação no prazo de 06 (seis) meses, na forma do art. 38 do CPP, nada resta a ela a fazer a não ser aguardar pelo impulso oficial da persecutio criminis.

STJ. 6ª Turma. AREsp 1.165.962/AM, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, DJe 22/11/2017.

STJ. 6ª Turma. EDcl no REsp 1.822.250/SP, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, DJe 11/11/2019.

 

Diante de todo o exposto, fica nítido que a audiência prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006 não pode ser designada de ofício pelo magistrado, até porque uma iniciativa com tal propósito corresponderia à criação de condição de procedibilidade (ratificação da representação) não prevista na Lei Maria da Penha, viciando de nulidade o ato praticado de ofício pelo juiz.

A audiência preliminar prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) não é um ato processual obrigatório determinado pela lei. A realização dessa audiência configura apenas um direito da vítima, caso ela manifeste o desejo de se retratar.

 

Em suma:

 


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