Imagine a seguinte situação
hipotética:
Ao final de inquérito instaurado
pela Polícia Federal para apurar crimes contra a administração pública, João
foi indiciado como sendo autor do crime de corrupção ativa (art. 333 do Código
Penal) em relação a contrato que a sua empresa firmou com o poder público após
dispensa de licitação.
Com base nesses elementos
informativos, o Procurador da República Silvio ofereceu denúncia (ação penal)
contra João, perante a 1ª Vara Criminal Federal.
Além disso, pelos mesmos fatos, o
Procurador da República Rafael ajuizou ação de improbidade administrativa
contra João, na 2ª Vara Cível Federal.
O juízo da 2ª Vara Cível jugou o
pedido improcedente, ou seja, absolveu o réu, por entender que ele não agiu com
dolo e que não houve obtenção de vantagem indevida. Para o magistrado, ficou demonstrado
apenas o dolo do gestor público, não justificando a condenação do particular
(João). Essa sentença transitou em julgado.
Diante desse cenário, a defesa
impetrou habeas corpus no TRF pedindo o trancamento da ação penal que tramita
na 1ª Vara Criminal Federal.
O TRF denegou a ordem sob o
argumento de que “a absolvição do paciente em acusação de improbidade
administrativa, ainda que haja correlação entre os fatos, não é empecilho para
a persecutio criminis, se presente, como na hipótese, justa causa para
tanto”.
Irresignada, a defesa interpôs
recurso ordinário endereçado ao STJ, alegando, em síntese, que, diante da
absolvição no âmbito da ação de improbidade ajuizada pelos mesmos fatos,
revela-se imperativo o trancamento da ação penal.
O STJ concordou com os
argumentos da defesa?
SIM. Vamos entender com calma.
Independência das
instâncias
As esferas civil, penal e
administrativa são independentes e autônomas entre si, de tal sorte que as
decisões tomadas nos âmbitos administrativo ou cível não vinculam a seara
criminal (STJ. 6ª Turma. EDcl no AgRg no REsp 1.831.965/RJ, Rel. Min. Laurita
Vaz, julgado em 7/12/2020).
No entanto, os argumentos
contidos na decisão absolutória em uma instância podem ser aproveitados na outra.
Nesse sentido:
A sentença absolutória por ato de improbidade não vincula o
resultado da ação penal, porque proferida na esfera do direito administrativo
sancionador, que é independente da instância penal, embora seja possível, em tese, considerar como
elementos de persuasão os argumentos nela lançados.
STJ. 5ª Turma. REsp 1.847.488/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe
26/4/2021.
Por força do princípio da
independência das instâncias, exige-se o exame particularizado dos fatos
A independência das esferas tem
por objetivo o exame particularizado do fato narrado, com base em cada ramo do
direito, devendo as consequências cíveis e administrativas ser aferidas pelo
juízo cível e as consequências penais pelo Juízo criminal, dada a especialização
de cada esfera. No entanto, as consequências jurídicas recaem sobre o mesmo
fato.
A ausência de dolo ficou
bem demonstrada
No caso, verifica-se que a
absolvição ocorreu em virtude da ausência de comprovação do elemento subjetivo
dos particulares.
Ficou consignado pela instância
cível que a prova dos autos demonstra apenas o dolo do gestor público, não
justificando a condenação dos particulares.
A pessoa jurídica titularizada
pelo réu precisou baixar seu preço para ser escolhida.
Por fim, ficou demonstrado que o
réu não auferiu benefício, uma vez que o contrato foi anulado pelo TCU.
Diante de todo esse contexto, não
é possível admitir que o dolo da conduta não tenha ficado demonstrado no juízo
cível e se revele presente no juízo penal. Isso porque se trata do mesmo fato.
Ausente dolo, não existe
crime
A ausência de prova do requisito
subjetivo (dolo) interfere na caracterização da própria tipicidade do crime,
especialmente se considerarmos a doutrina finalista, que insere o elemento
subjetivo no tipo.
Vale ressaltar que o delito
imputado (corrupção ativa – art. 333 do CP) não admite figura culposa. Logo, se
não houve dolo, deve-se reconhecer a atipicidade da conduta.
Anote-se, por oportuno, que se
trata de crime contra a Administração Pública, cuja especificidade recomenda
atentar para o que decidido, a respeito dos fatos, na esfera cível.
Art. 21, § 4º da Lei nº
8.429/92 procurou ampliar as exceções à regra da independência de instâncias
Deve-se levar em consideração que o art. 21, § 4º, da Lei nº
8.429/92, incluído pela Lei nº 14.230/2021, prevê que:
Art. 21 (...)
§ 4º A absolvição criminal em
ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o
trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os
fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3
de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). (Incluído pela Lei nº 14.230, de
2021)
Embora referido dispositivo
esteja com a eficácia suspensa por liminar deferida pelo Supremo Tribunal
Federal, em 27/12/2022, na ADI 7.236/DF, tem-se que o legislador pretendeu
definir ampla exceção legal à independência das esferas que, apesar de não
autorizar o encerramento da ação penal em virtude da absolvição na ação de
improbidade administrativa por qualquer fundamento, revela que existem
fundamentos tão relevantes que não podem ser ignorados pelas demais esferas.
Pela letra da lei, uma absolvição na seara penal, por qualquer fundamento, não
pode permitir a manutenção da ação de improbidade.
A suspensão do art. 21, § 4º, da
Lei nº 8.429/92, na redação dada pela Lei nº 14.230/2021 (ADI 7.236/DF) não
atinge a vedação constitucional do ne bis in idem (Rcl 57.215/DF MC,
Rel. Ministro Gilmar Mendes, julgado em 6/1/2023), e, sem justa causa não há
persecução penal.
Portanto, apesar de, pela letra
da lei, o contrário não justificar o encerramento da ação penal, inevitável
concluir que a absolvição na ação de improbidade administrativa em virtude da
ausência de dolo e da ausência de obtenção de vantagem indevida, esvazia a
justa causa para manutenção da ação penal. De fato, não se verifica mais a
plausibilidade do direito de punir, uma vez que a conduta típica, primeiro
elemento do conceito analítico de crime, depende do dolo para se configurar, e
este foi categoricamente afastado pela instância cível.
Tendo a instância cível afirmado
que não ficou demonstrado que os particulares induziram ou concorreram
dolosamente para a prática de ato que atente contra os princípios da
administração, registrando que “a amplitude da previsão legislativa não pode
induzir o intérprete a acolher ilações do autor da ação civil pública, pois
ausente a subsunção dos fatos à norma que prevê a responsabilização dos
particulares na Lei n. 8.429/92 (art. 3º)”, não pode a mesma conduta ser
violadora de bem jurídico tutelado pelo direito penal.
Constata-se, assim, de forma
excepcional, a efetiva repercussão da decisão de improbidade sobre a justa
causa da ação penal em trâmite, motivo pelo qual não se justifica a manutenção
desta última. Nas palavras do Ministro Humberto Martins, “a unidade do Direito”
deve se pautar pela coerência.
Em suma:
STJ. 5ª Turma. RHC 173.448-DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca,
julgado em 7/3/2023 (Info 766).