quarta-feira, 15 de março de 2023
Se não for possível adotar a teoria da encampação, o juízo deverá determinar que o impetrante faça a emenda da inicial, nos termos dos arts. 338 e 339 do CPC?
Autoridade
coatora
O mandado de segurança é impetrado contra o ato de uma
autoridade coatora.
Nesse sentido, veja o que diz o
art. 5º, LXIX, da CF/88:
LXIX - conceder-se-á mandado de
segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus
ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade
ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições
do Poder Público;
No mesmo sentido é a redação da
Lei do Mandado de Segurança (Lei nº 12.016/2009):
Art. 1º Conceder-se-á mandado de
segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus
ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa
física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que
categoria for e sejam quais forem as funções que exerça.
§ 1º Equiparam-se às autoridades, para
os efeitos desta Lei, os representantes ou órgãos de partidos políticos e os
administradores de entidades autárquicas, bem como os dirigentes de pessoas
jurídicas ou as pessoas naturais no exercício de atribuições do poder público,
somente no que disser respeito a essas atribuições.
E
quem é a autoridade coatora, no caso concreto?
Considera-se autoridade coatora:
• a pessoa que praticou o ato impugnado; ou
• a pessoa da qual emanou a ordem para a sua prática (pessoa
que mandou o ato ser praticado).
Petição
inicial
Na petição inicial do MS deverá
ser expressamente indicada quem é a autoridade coatora:
Art. 6º A petição inicial, que deverá
preencher os requisitos estabelecidos pela lei processual, será apresentada em
2 (duas) vias com os documentos que instruírem a primeira reproduzidos na
segunda e indicará, além
da autoridade coatora, a pessoa jurídica que esta integra, à qual se
acha vinculada ou da qual exerce atribuições.
Indicação
errada da autoridade coatora
A Administração Pública é cheia de meandros, setores,
gerências, departamentos e outros subdivisões, de forma que nem sempre é uma
tarefa fácil identificar, com exatidão, quem foi o responsável pela ordem.
Diante disso, na prática, verificava-se que o indivíduo
impetrava o mandado de segurança indicando, por exemplo, como autoridade
coatora, o diretor de determinado departamento da Secretaria de Estado.
Nas informações do mandado de segurança, este diretor vinha
dizendo que a indicação da autoridade foi errada, considerando que o
responsável pelo ato seria o subdiretor. Ao final, a autoridade pedia que o
mandado de segurança fosse extinto sem resolução do mérito por ilegitimidade
passiva.
Teoria
da encampação
Situações como a acima expostas, não se revelam razoáveis,
tendo em vista que o mandado de segurança é um remédio constitucional
idealizado para a garantia de direitos, não podendo seu acesso ser
inviabilizado por dificuldades burocráticas de se identificar o verdadeiro
autor do ato impugnado na Administração Pública.
Diante desse cenário, há muitos anos, a doutrina e a
jurisprudência idealizaram a chamada “teoria da encampação”, por meio da qual
se busca relativizar esse “erro” na indicação da autoridade coatora, desde que
cumpridos determinados requisitos.
Primeiros
precedentes
Essa teoria da encampação não se encontra expressamente
regulamentada em lei.
Dessa forma, o STJ construiu três requisitos para que ela
seja aceita.
Um dos primeiros precedentes do STJ a discorrer, de forma
sistematizada, sobre tais requisitos foi em 2008, no RMS 12.779/DF (o STJ já
havia tratado sobre a teoria, mas sem organizá-la em requisitos no MS
10.484/DF, do ano 2005).
No RMS 12.779/DF, a situação concreta foi a seguinte:
Determinada Fundação Educacional e Cultural impetrou mandado
de segurança indicando como autoridade coatora o Ministro de Estado da
Previdência Social.
Como o MS era contra Ministro de Estado, ele foi ajuizado no
STJ (art. 105, I, “b”, da CF/88).
A impetrante alegou que seu “Certificado de Entidade
Beneficente de Assistência Social” (CEBAS) foi indevidamente cancelado e, com
isso, a Fundação ficou sem poder gozar dos benefícios da imunidade tributária.
O Ministro da Previdência Social apresentou as informações
no mandado de segurança dizendo que:
• o documento cancelando o CEBAS foi assinado pelo Chefe da
Seção de Orientação da Arrecadação Previdenciária (e não por ele, Ministro).
Logo, a impetrante teria indicado a autoridade errada.
• caso não se concorde com isso, a segurança não deve ser
concedida porque esse cancelamento observou a lei e a impetrante não tem
direito realmente ao CEBAS.
Requisitos
O STJ, ao apreciar este caso acima relatado (RMS 12.779/DF),
afirmou que são três os requisitos para aplicação da teoria da encampação no
mandado de segurança:
a) existência de vínculo hierárquico entre a autoridade que
prestou informações e a que ordenou a prática do ato impugnado;
b) manifestação a respeito do mérito nas informações
prestadas; e
c) ausência de modificação de competência estabelecida na
Constituição Federal.
Esse entendimento deu origem à seguinte súmula:
Súmula 628-STJ: A teoria da encampação é aplicada no mandado de
segurança quando presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) existência de vínculo hierárquico entre a autoridade que
prestou informações e a que ordenou a prática do ato impugnado;
b) manifestação a respeito do mérito nas informações prestadas;
e
c) ausência de modificação de competência estabelecida na
Constituição Federal.
a)
vínculo hierárquico entre as autoridades
No caso concreto, o Ministro da Previdência alegou que quem
praticou o ato foi o Chefe de Arrecadação Previdenciária. Está certo. No
entanto, esse Chefe de Arrecadação está subordinado hierarquicamente ao
Ministro, de forma que o primeiro requisito da teoria da encampação está preenchido.
b)
defesa do mérito do ato
O segundo requisito para a aplicação da teoria é que a
autoridade que foi indicada no MS e que apresentou as informações tenha se
manifestado a respeito do mérito do ato impugnado.
Esse requisito também foi preenchido, considerando que o
Ministro afirmou, expressamente, que o ato praticado foi legal e que a
impetrante não teria direito.
c)
ausência de modificação de competência
Esse terceiro requisito significa o seguinte:
A autoridade indicada no MS foi “A”. No entanto, a
autoridade que praticou o ato realmente foi “B”.
Se o mandado de segurança tivesse sido impetrado contra a
autoridade correta (ou seja, contra
“B”), esta ação estaria tramitando perante o mesmo juiz ou Tribunal que está
agora? O mandado de segurança proposto contra “A” é julgado pelo mesmo juízo
que julgaria o mandado de segurança impetrado contra “B”? Se a resposta for sim
para essas perguntas, o terceiro requisito está preenchido.
Por outro lado, se a Constituição Federal prever que o mandado
de segurança impetrado contra a autoridade “A” é julgado pelo Tribunal e que o
mandado de segurança contra a autoridade “B” é de competência da 1ª instância,
neste caso, não será possível aplicar a teoria da encampação. Isso porque, na
prática, estaria havendo uma burla às regras de competência. A parte autora
poderia, de forma maliciosa, indicar autoridade errada para escolher outro
juízo que não fosse o natural.
No caso concreto acima explicado (RMS 12.779/DF), este
terceiro requisito não foi preenchido e, por isso, a teoria da encampação não
pode ser aplicada.
O mandado de segurança contra o Ministro da Previdência era
de competência do STJ. Por outro lado, o mandado de segurança contra o Chefe de
Arrecadação Previdenciária deveria ter sido impetrado perante um juiz federal
de 1ª instância (art. 109, VIII, da CF/88).
Logo, se fosse admitida a teoria da encampação, teríamos uma
modificação da competência que é prevista na Constituição Federal.
Veja trecho da ementa:
(...) 1. São três os requisitos para
aplicação da teoria da encampação no mandado de segurança: existência de
vínculo hierárquico entre a autoridade que prestou informações e a que ordenou
a prática do ato impugnado; ausência de modificação de competência estabelecida
na Constituição Federal; e manifestação a respeito do mérito nas informações
prestadas. Precedente da Primeira Seção: MS 10.484/DF, Rel. Min. José Delgado.
2. O ato coator apontado foi exarado
pelo Chefe da Seção de Orientação da Arrecadação Previdenciária, da Delegacia
da Receita Previdenciária de Niterói/RJ, vinculada à Secretaria da Receita
Previdenciária do Ministério da Previdência Social.
3. O conhecimento do writ esbarra na
alteração de competência estabelecida pela Carta da República. (...)
STJ. 1ª Seção. MS 12.779/DF, Rel. Min.
Castro Meira, julgado em 13/02/2008.
E se houver modificação de competência prevista na Constituição
Estadual?
As Constituições Estaduais também trazem regras de
competência para mandado de segurança.
Como exemplo, em geral, as Cartas estaduais preveem que os
mandados de segurança impetrados contra Governador e Secretários de Estado são
de competência do Tribunal de Justiça.
É possível adotar a teoria da encampação mesmo que haja uma
modificação de competência estabelecida em Constituição Estadual?
Não. Apesar de a letra “c” da Súmula falar apenas em
Constituição Federal, podemos encontrar inúmeros julgados do STJ afirmando que
a teoria da encampação também não se aplica se isso implicar em mudança das
regras de competência definidas na Constituição Estadual. Ex: o autor impetrou,
no TJ, mandado de segurança contra o Secretário de Estado de Educação; ocorre
que o ato foi praticado por um diretor de departamento pedagógico (que é
julgado em 1ª instância); logo, mesmo que o Secretário defenda o ato nas
informações do MS, ainda assim o processo deverá ser extinto sem resolução do
mérito.
Nesse sentido:
(...) Revela-se incabível falar em
aplicação da teoria da encampação, uma vez que a indevida presença do
Secretário da Fazenda no polo passivo do Mandado de Segurança modificaria a
regra de competência jurisdicional disciplinada pela Constituição do Estado.
(...)
STJ. 1ª Turma. AgInt no RMS 56.103/MG,
Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 23/08/2018.
Se não for possível adotar a teoria da encampação, o
juízo deverá determinar que o impetrante faça a emenda da inicial, nos termos
dos arts. 338 e 339 do CPC?
Os arts. 338 e 339 do CPC/2015 preveem a possibilidade de o
juiz ou Tribunal determinar que o autor faça a emenda da inicial em caso de
ilegitimidade passiva:
Art. 338. Alegando o réu, na
contestação, ser parte ilegítima ou não ser o responsável pelo prejuízo
invocado, o juiz facultará ao autor, em 15 (quinze) dias, a alteração da
petição inicial para substituição do réu.
Parágrafo único. Realizada a
substituição, o autor reembolsará as despesas e pagará os honorários ao
procurador do réu excluído, que serão fixados entre três e cinco por cento do
valor da causa ou, sendo este irrisório, nos termos do art. 85, § 8º.
Art. 339. Quando alegar sua
ilegitimidade, incumbe ao réu indicar o sujeito passivo da relação jurídica
discutida sempre que tiver conhecimento, sob pena de arcar com as despesas
processuais e de indenizar o autor pelos prejuízos decorrentes da falta de
indicação.
§ 1º O autor, ao aceitar a
indicação, procederá, no prazo de 15 (quinze) dias, à alteração da petição
inicial para a substituição do réu, observando-se, ainda, o parágrafo único do
art. 338.
§ 2º No prazo de 15 (quinze)
dias, o autor pode optar por alterar a petição inicial para incluir, como
litisconsorte passivo, o sujeito indicado pelo réu.
Leonardo da Cunha defende que esses dispositivos também
devem ser aplicados para o processo de mandado de segurança, “permitindo que se
corrija a autoridade coatora ou, até mesmo, a pessoa jurídica da qual ela faz
parte. Assim, se a parte impetrou mandado de segurança, por exemplo, contra o
Governador do Estado, mas a autoridade impetrada seria o Secretário de Estado,
é possível corrigir. De igual modo, se impetrou contra o Governador do Estado,
mas deveria ter indicado, como autoridade, o diretor de determinada autarquia,
poderá haver a correção tanto da autoridade como da pessoa jurídica de cujos
quadros faça parte.” (CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo.
São Paulo: Forense, 2016, p. 534).
E o STJ, o que entende a respeito?
O STJ tem jurisprudência pacífica no sentido de que é vedado
oportunidade ao impetrante a emenda à inicial para a indicação da correta
autoridade coatora, nos casos em que essa modificação implicar na alteração da
competência jurisdicional:
Em mandado de segurança, é vedada a oportunização ao
impetrante de emenda à inicial para a indicação da correta autoridade coatora,
quando a referida modificação implique na alteração da competência
jurisdicional.
STJ. 2ª
Turma. REsp 1.954.451-RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 14/2/2023 (Info
764).
Caso concreto:
Regina impetrou mandado de segurança contra ato do
Secretário de Estado da Fazenda objetivando discutir lançamento de IPVA.
O MS foi impetrado no Tribunal de Justiça porque a
Constituição Estadual prevê que compete ao TJ julgar mandados de segurança
contra atos de Secretário de Estado.
O Secretário de Estado, sem se manifestar sobre o mérito do
MS, arguiu unicamente a sua ilegitimidade passiva porque compete ao chefe da
inspetoria de fiscalização do IPVA discutir a exigibilidade desse imposto.
O TJ entendeu que o Secretário de Fazenda estava certo e que
ele não era parte legítima para figurar como autoridade coatora no mandado de
segurança. O TJ entendeu também que não era possível a aplicação da teoria da
encampação porque a autoridade não se manifestou sobre o mérito do MS.
Diante disso, o TJ, “em atenção aos Princípios da Celeridade
e da Economia Processual”, determinou que o processo deveria ser remetido ao juízo
de 1º grau para que fosse corrigida a autoridade coatora. O TJ não poderia
fazer essa correção porque a competência para julgar MS contra o chefe da
inspetoria é do juízo de 1ª instância (e não do TJ).
Agiu corretamente o TJ ao determinar o retorno dos
autos à 1ª instância para correção da autoridade coatora?
NÃO. Isso porque, conforme já explicado, é vedada a
oportunização ao impetrante, da emenda à inicial para a indicação da correta
autoridade coatora, quando a referida modificação implicar na alteração da
competência jurisdicional.
No mesmo sentido, confira-se:
(...) 2. O Superior Tribunal de Justiça tem-se pronunciado no
sentido de que o Secretário de Fazenda do Estado não é parte legítima para
figurar como autoridade coatora em mandados de segurança em que se discute a
exigibilidade de tributos, não havendo falar, de outro lado, na possibilidade
de encampação nem em eventual poder hierárquico sobre seus subordinados, uma
vez que sua presença indevida no mandamus altera a competência para o
julgamento da ação mandamental.
3. 'A jurisprudência deste STJ compreende não ser possível
autorizar a emenda da inicial para correção da autoridade indicada como coatora
nas hipóteses em que tal modificação implica em alteração de competência
jurisdicional. Isso porque compete originariamente ao Tribunal de Justiça
Estadual o julgamento de mandado de segurança contra Secretário de Estado,
prerrogativa de foro não extensível ao servidor responsável pelo lançamento
tributário' (AgInt no RMS 54.535/RJ, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira
Turma, DJe 26/9/2018). (...)
STJ. 1ª Turma. AgInt no RMS 53.867/MG, Rel. Min. Gurgel de
Faria, julgado em 21/3/2019.