Dizer o Direito

sábado, 18 de março de 2023

O juízo do domicílio da mulher vítima de violência doméstica é competente para deferir as medidas protetivas de urgência, mesmo que a agressão tenha ocorrido em outra comarca; vale ressaltar, contudo, que a competência para julgar o crime é do local dos fatos

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Lucas e Carla eram namorados e moravam em Indaiatuba (SP).

O casal viajou para Belo Horizonte. Houve uma discussão e Lucas agrediu fisicamente Carla.

Logo depois da agressão, a vítima procurou a Delegacia da Mulher em Belo Horizonte e registrou o fato.

No dia seguinte ela retornou à Indaiatuba e procurou a Delegacia da Mulher na cidade pedindo para dar continuidade ao procedimento originado e requerer as medidas protetivas.

O Juízo da 2ª Vara Criminal de Indaiatuba (SP) deferiu as medidas protetivas requeridas.

No entanto, posteriormente, o Juízo da 2ª Vara Criminal de Indaiatuba (SP) declinou da competência para prosseguir no feito, por entender que os autos deveriam ser encaminhados ao juízo do local onde ocorreu o fato criminoso narrado pela vítima, ou seja, a Vara de Violência Doméstica de Belo Horizonte (MG).

O Juízo da Vara de Violência Doméstica de Belo Horizonte também se declarou incompetente, suscitando conflito negativo de competência. Na oportunidade, argumentou que restou clara a vontade da vítima de que o procedimento tramitasse na comarca em que ela reside. Aduziu que o domicílio da vítima é o foro preferencial para a mulher em situação de violência doméstica, com vista à proteção amplificada de seus direitos.

 

O que decidiu o STJ? De quem é a competência para processar e julgar o pedido de medidas protetivas neste caso?

Do Juízo da 2ª Vara Criminal de Indaiatuba (SP), juízo do domicílio da vítima. Isso porque, para fins de definição da competência para aplicação das medidas protetivas de urgência, aplica-se o princípio do juízo imediato.

O princípio do juízo imediato significa que, em casos de diplomas normativos que protegem determinado grupo de pessoas, deve-se reconhecer a competência do juízo que estiver mais próximo da pessoa protegida.

 

Princípio do juízo imediato no ECA

O princípio do juízo imediato foi inicialmente incorporado pelo art. 147 da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente):

Art. 147. A competência será determinada:

I - pelo domicílio dos pais ou responsável;

II - pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente, à falta dos pais ou responsável.

 

O princípio do juízo imediato estabelece que a competência para apreciar e julgar medidas, ações e procedimentos que tutelam interesses, direitos e garantias positivados no ECA é determinada pelo lugar onde a criança ou o adolescente exerce, com regularidade, seu direito à convivência familiar e comunitária.

Embora seja compreendido como regra de competência territorial, o art. 147, I e II, do ECA apresenta natureza de competência absoluta. Isso porque a necessidade de assegurar ao infante a convivência familiar e comunitária, bem como de lhe ofertar a prestação jurisdicional de forma prioritária, conferem caráter imperativo à determinação da competência.

O princípio do juízo imediato, previsto no art. 147, I e II, do ECA, desde que firmemente atrelado ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, sobrepõe-se às regras gerais de competência do CPC.

STJ. 2ª Seção. CC 111.130/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 08/09/2010.

 

Na resolução de conflitos que versam sobre o atendimento das necessidades de crianças e adolescentes, o norte hermenêutico deve ser sempre o interesse do menor que, atrelado ao princípio do juízo imediato (art. 147 do ECA), atender-se-á aos objetivos traçados no Estatuto, aquele juízo que tem a possibilidade de interação mais próxima com a criança e/ou adolescente e seus responsáveis.

STJ. 2ª Seção. CC 172.725/RS, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 23/06/2021.

 

Princípio do juízo imediato no Estatuto da Pessoa Idosa

Previsão semelhante, decorrente do princípio do juízo imediato, foi inserida na Lei nº 10.741/03 (Estatuto da Pessoa Idosa), no qual o art. 80 prevê a competência do foro do domicílio do idoso para processar e julgar as ações decorrentes de ofensas aos direitos assegurados à pessoa idosa por aquele diploma especial:

Art. 80. As ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do domicílio da pessoa idosa, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvadas as competências da Justiça Federal e a competência originária dos Tribunais Superiores.

 

Princípio do juízo imediato na Lei de Violência Doméstica

Por fim, o art. 15 da Lei nº 11.343/2006 (Lei Maria da Penha) também adotou expressamente o princípio da juízo imediato em relação aos processos de natureza cível atribuindo competência concorrente para estas ações, por opção da vítima, também ao juizado de violência doméstica e familiar do domicílio ou residência da mulher:

Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado:

I - do seu domicílio ou de sua residência;

II - do lugar do fato em que se baseou a demanda;

III - do domicílio do agressor.

 

Com efeito, embora não haja previsão específica de aplicação do princípio do juízo imediato aos pedidos de medidas protetivas de urgência de caráter penal, o art. 13 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) determina a aplicação da legislação relativa à criança, ao adolescente e ao idoso às causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher:

Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei.

 

A aplicação do princípio do juízo imediato na apreciação dos pedidos de medidas protetivas de urgência facilita o acesso da mulher vítima de violência doméstica a uma rápida prestação jurisdicional, que é o principal objetivo perseguido pelas normas processuais especiais que integram o microssistema de proteção de pessoas vulneráveis que já se delineia no ordenamento jurídico brasileiro.

O acesso rápido e efetivo à tutela jurisdicional assume especial relevo na situação de risco em que a mulher se encontra quando solicita medidas protetivas de urgência. É justamente o seu caráter de urgência que reclama a aplicação do princípio do juízo imediato, tendo em vista que o juízo do domicílio normalmente é o primeiro ao qual a mulher tem acesso e o que tem interação mais próxima com a vítima.

No caso, a vítima, domiciliada em Indaiatuba (SP), pleiteou as medidas protetivas de urgência perante o juízo de seu domicílio, que respondeu prontamente à solicitação, entregando prestação jurisdicional célere e efetiva. Além disso, o juízo de Indaiatuba (SP) pode se comunicar com a vítima de forma direta e está acompanhando de maneira próxima a situação de violência, atuando com presteza em suas intervenções.

Assim, diante da aplicação do princípio do juízo imediato e não havendo dúvidas que o juízo do domicílio da vítima é o que possui melhores condições de acompanhar a situação de violência doméstica e familiar na situação concreta, afirma-se a sua competência para prosseguir no feito, independentemente do local onde tenham inicialmente ocorrido as supostas condutas criminosas que motivaram o pedido de medidas protetivas.

 

Isso significa que o juízo de Indaiatuba (SP) será competente para julgar eventual ação penal contra o apontado agressor?

NÃO.

A competência para julgar o crime, em tese, praticado por Lucas é do juízo de Belo Horizonte, local em que o delito foi praticado, nos termos do art. 70 do CPP:

Art. 70.  A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.

 

A competência do juízo do domicílio da vítima para conhecer e julgar o pedido de medidas protetivas de caráter urgente não altera ou modifica a competência do juízo natural para o processamento e julgamento de eventual ação penal, que deve ser definida conforme as regras gerais do Código de Processo Penal. Nesse sentido:

(...) Sem prejuízo da fixação da competência para a persecução penal, incumbe ao Juízo do domicílio da Vítima apreciar o pedido urgente de concessão de medidas protetivas, como ocorreu no caso concreto, sem que isso gere qualquer tipo de prevenção para a análise do feito criminal.

Isso possibilita à Vítima obter a tutela jurisdicional com a rapidez e urgência necessárias, recebendo do Poder Judiciário, a proteção devida, em caráter imediato.

STJ. 3ª Seção. CC 187.852/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 09/11/2022.

 

Confira a brilhante explicação de Leonardo Barreto Moreira Alves para este ponto:

“(...) de acordo com entendimento do STJ, a competência para julgar crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher é do juízo do local dos fatos, nos termos do art. 13 da Lei nº 11.340/06 c/c o art. 70, caput, do CPP, não se alterando em razão de a vítima ter fixado domicílio em outro local, ou mesmo por ter requerido e obtido medidas protetivas junto a esse local do seu domicílio. Nesse prisma, asseverou-se que a previsão do art. 15 da Lei Maria da Penha é expressa e não deixa dúvida de que a sua aplicação é limitada aos feitos cíveis. Havendo regra expressa de fixação da competência penal, o deslocamento da competência da persecução criminal para juízo diverso daquele estabelecido no CPP, pela aplicação de regra processual civil, caracterizaria evidente ofensa ao princípio do juízo natural. Além disso, admitir a possibilidade da ação ser proposta no domicílio da vítima, inclusive quando decorrentes de mudança de domicílio posterior aos fatos delituosos, abriria a possibilidade de “escolha” do juízo em que seria proposta a ação penal, ofendendo também o referido princípio constitucional. Sem prejuízo da fixação da competência para a persecução penal, incumbe ao juízo do domicílio da vítima apreciar o pedido urgente de concessão de medidas protetivas, sem que isso gere qualquer tipo de prevenção para a análise do feito criminal. Isso possibilita à vítima obter a tutela jurisdicional com a rapidez e urgência necessárias, recebendo do Poder Judiciário a proteção devida, de caráter imediato (STJ, Terceira Seção, CC nº 187.852/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 18.11.2022).” (Manual de Processo Penal. 3ª ed., Salvador: Juspodivm, 2023, p. 530)

 

Em suma:

O juízo do domicílio da vítima em situação de violência doméstica é competente para processar e julgar o pedido de medidas protetivas de urgência, independentemente de as supostas condutas criminosas que motivaram o pedido terem ocorrido enquanto o autor e a vítima encontravam-se em viagem fora do domicílio desta.

STJ. 3ª Seção. CC 190.666-MG, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 8/2/2023 (Info 764).

 

 

 


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