Imagine a seguinte situação hipotética:
João é policial militar e, como “bico”, faz a segurança de uma
empresa.
Durante a noite, quando não havia ninguém no local, houve um furto
na empresa.
Ricardo, proprietário do empreendimento, quando chegou de manhã,
percebeu o furto e ligou para João informando do ocorrido.
João, que estava de folga no dia, dirigiu-se até o local. Ele desconfiou
que o autor do furto seria Pedro, um usuário de drogas que mora nas
proximidades.
João, sem se identificar como policial e em posse de arma de fogo
de uso particular, abordou, amarrou e agrediu Pedro insistindo para que ele
confessasse o crime e devolvesse a res furtiva.
Surgiu a dúvida se a conduta praticada por João pode ser
considerada crime militar, na forma do art. 9º, inciso II, alínea “c”, do CPM,
de competência da Justiça Militar ou se seria crime comum, de competência da
Justiça Estadual. Confira o dispositivo do CPM:
Art. 9º Consideram-se crimes
militares, em tempo de paz:
(...)
II – os crimes previstos neste
Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:
(...)
b) por militar em situação de
atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra
militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
c) por militar em serviço ou
atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura,
ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da
reserva, ou reformado, ou civil;
O que decidiu o STJ? Trata-se de crime militar ou crime comum?
É
competência da justiça militar processar e julgar delito cometido por policial
de folga, sem farda, com veículo pessoal e portando arma particular?
NÃO. Trata-se de crime comum, de competência da Justiça Estadual.
O entendimento do STJ é no sentido de que:
Não se enquadra no conceito de crime militar previsto no art.
9º, II, alíneas “b” e “c”, do Código Penal Militar o delito cometido por
Policial Militar que, ainda que esteja na ativa, pratica a conduta ilícita fora
do horário de serviço, em contexto dissociado do exercício regular de sua
função e em lugar não vinculado à Administração Militar.
STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 656.361/RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares
da Fonseca, DJe de 16/8/2021.
No momento dos fatos, o acusado estava de folga e, portanto,
sem a farda da corporação. Além disso, ele não se identificou como policial,
tendo utilizado seu veículo pessoal e sua arma particular.
Assim, embora ostentasse a condição de policial militar na
ativa, a prática delitiva não decorreu de seu serviço ou em razão da função.
Lei nº 13.491/2017
Compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares,
assim definidos em lei (art. 124 da CF/88).
A lei que prevê os crimes militares é o Código Penal Militar
(Decreto-Lei 1.001/1969).
• No art. 9º do CPM são conceituados os crimes militares em
tempo de paz.
• No art. 10 do CPM são definidos os crimes militares em
tempo de guerra.
Assim, para verificar se o fato pode ser considerado crime
militar, sendo, portanto, de competência da Justiça Militar, é preciso que ele
se amolde em uma das hipóteses previstas nos arts. 9º e 10 do CPM.
A alteração promovida pela Lei nº 13.491/2017 foi no art.
9º.
Uma das mudanças da Lei nº 13.491/2017
foi no inciso II do art. 9º. Veja:
Código Penal Militar |
|
Redação
original |
Redação
dada pela Lei nº 13.491/2017 |
Art. 9º Consideram-se crimes
militares, em tempo de paz: II - os crimes previstos neste
Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando
praticados: |
Art. 9º Consideram-se crimes
militares, em tempo de paz: II - os crimes previstos neste Código
e os previstos
na legislação penal, quando praticados: |
O que significou essa
mudança?
•
Antes da Lei: para se enquadrar como crime militar com base no inciso II do
art. 9º, a conduta praticada pelo agente deveria ser obrigatoriamente prevista
como crime no Código Penal Militar.
•
Agora: a conduta praticada pelo agente, para ser crime militar com base no
inciso II do art. 9º, pode estar prevista no Código Penal Militar ou na legislação penal “comum”.
Ocorre que a mudança da Lei nº 13.491/2017 não tem aplicação
no caso, tendo em vista que o acusado é um policial de folga, hipótese que não
se tornou crime militar nos termos da novel legislação. A referida lei não
alterou a competência nestes casos, mas apenas ampliou o rol de condutas para
abarcar crimes contra civis previstos na Legislação Penal Comum (Código Penal e
leis esparsas), desde que praticados por militar em serviço ou no exercício da
função.
Em suma:
STJ. 5ª Turma. HC 764.059-SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado
em 7/2/2023 (Info 763).
No mesmo sentido:
Não se enquadra no conceito de crime militar previsto no art.
9º, II, b e c, do Código Penal Militar o delito cometido por Policial Militar
que, ainda que esteja na ativa, pratica a conduta ilícita fora do horário de
serviço, em contexto dissociado do exercício regular de sua função e em lugar
não vinculado à Administração Militar.
STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 711.820/RO, Rel. Min. Sebastião Reis
Júnior, julgado em 29/3/2022.