O que é uma fundação?
Em termos gerais, fundação é um
patrimônio afetado (destinado) à realização de um fim, possuindo, por essa
razão, personalidade jurídica própria distinta de seu instituidor.
Desse modo, o instituidor da
fundação separa (destaca) um determinado patrimônio (dinheiro, imóveis,
créditos etc.) declarando que esses bens serão utilizados para a realização de
um objetivo específico.
Depois de instituída, a fundação
ganha personalidade própria (“vida própria”), sendo, portanto, uma pessoa
jurídica distinta da pessoa (física ou jurídica) que a criou.
A fundação é um instituto
disciplinado originalmente pelo Direito Civil. Isso porque as primeiras
fundações foram criadas por particulares.
Ocorre que, posteriormente, o
Poder Público passou a também instituir fundações, razão pela qual esse tema
também é estudado em Direito Administrativo.
Gustavo
Scatolino e João Trindade explicam muito bem esse tema:
“Originalmente,
ao final do século XIX, as fundações foram concebidas como entidades (pessoas
jurídicas), para que pessoas físicas ou jurídicas pudessem destinar parte de
seus recursos a um objetivo de caráter social, até mesmo para o patrimônio
pessoal não se misturar com o patrimônio destinado à execução de atividades
sociais. Normalmente, a pessoa destinava parte do seu capital a essa finalidade
e constituía uma fundação. O termo fundação origina-se de “fundos” como
sinônimo de recursos financeiros ou patrimoniais. Desde então, a fundação veio
a ser entendida como um conjunto de recursos destinados a uma finalidade social,
a quem a lei atribuía personalidade jurídica.
Com isso,
surgiram as fundações privadas, criadas por testamentos, quando o instituidor
pretendia instituir a fundação após sua morte; ou por escritura pública, quando
o instituidor pretendia instituir a fundação ainda em vida. Também surgiram as
fundações criadas por pessoas jurídicas, que, diferentemente das pessoas
físicas, sempre instituem fundações por meio de escritura pública.
Entre as
fundações privadas, podemos citar como exemplos: Fundação Roberto Marinho,
Fundação Bradesco, Fundação Perseu Abramo etc. Tais fundações existem e
continuam sendo criadas; todavia, não fazem parte de nosso estudo, pois, sendo
instituídas e mantidas por pessoas privadas (físicas ou jurídicas) não integram
a Administração Pública Indireta. Essas entidades são disciplinadas pelo Código
Civil.
Ocorre que o
Estado passou a criar fundações, isto é, destinar recursos públicos para fins
sociais, criando uma pessoa jurídica para cal fim. Logo surgiu a dúvida sobre
se tais pessoas — as fundações criadas e mantidas pelo Estado - eram de direito
público ou privado.” (Manual Didático de
Direito Administrativo. 6ª ed., Salvador: Juspodivm, 2018, p. 175-176).
Espécies de fundação
No ordenamento jurídico
brasileiro, existem três tipos de fundação:
a) fundação de direito privado,
instituída por particulares;
b) fundações públicas de direito
privado, instituídas pelo Poder Público; e
c) fundações públicas de direito
público, que possuem natureza jurídica de autarquia.
Como podemos conceituar as
fundações públicas (fundações instituídas pelo Poder Público)?
- Fundação pública é a pessoa
jurídica de direito público ou privado
- cuja criação foi autorizada por
lei
- sendo composta por um
patrimônio
- que foi reservado pelo
instituidor para a realização de uma finalidade específica de interesse social,
- como, por exemplo, atividades
educacionais, culturais, de pesquisas científicas, de assistência social etc.
Qual é o regime jurídico
(regramento) aplicável às fundações instituídas pelo Poder Público? Elas estão
sujeitas ao regime jurídico de direito público ou de direito privado?
Depende. A
fundação instituída pelo Estado pode estar sujeita ao regime público ou
privado, a depender do estatuto da fundação e das atividades por ela prestadas.
O STF definiu a seguinte tese:
A qualificação de uma fundação
instituída pelo Estado como sujeita ao regime público ou privado depende:
i) do estatuto de sua criação ou
autorização e
ii) das atividades por ela prestadas.
As atividades de conteúdo econômico e
as passíveis de delegação, quando definidas como objetos de dada fundação,
ainda que essa seja instituída ou mantida pelo poder público, podem se submeter
ao regime jurídico de direito privado.
STF.
Plenário. RE 716378/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 1º e 7/8/2019
(repercussão geral) (Info 946).
Assim,
podemos identificar duas espécies de fundação pública (fundação instituída pelo
Estado):
Fundação pública de direito
PÚBLICO |
Fundação pública de direito
PRIVADO |
Estão sujeitas ao regime público. |
Estão sujeitas ao regime
privado. |
São criadas por lei específica
(são uma espécie de autarquia, por isso também chamadas de “fundações
autárquicas”). |
Deve ser editada uma lei
específica autorizando que o Poder Público crie a fundação. Em seguida, será
necessário fazer a inscrição do estatuto dessa fundação no Registro Civil de
Pessoas Jurídicas, quando, então, ela adquire personalidade jurídica. |
Feita essa revisão, veja agora o caso concreto apreciado
pelo STF:
Em Sergipe,
foram editadas as Leis nº 6.346/2008, nº 6.347/2008 e nº 6.348/2008, que
autorizam a criação de fundações públicas de direito privado para atuarem na
área da saúde. Confira:
Lei nº 6.346/2008:
Dispõe sobre a autorização para criação da Fundação de Saúde
"Parreiras Horta" - FSPH, e dá providências correlatas.
(...)
Art. 7º A Fundação de Saúde "Parreiras Horta" - FSPH terá por
finalidade prestar serviços relativos à coleta, processamento, estocagem,
distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e hemoderivados, bem como
serviços laboratoriais e de verificação de óbito.
Lei nº 6.347/2008:
Dispõe sobre a autorização para criação da Fundação Hospitalar de Saúde
- FHS, e dá providências correlatas.
(...)
Art. 7º A Fundação Hospitalar de Saúde - FHS terá a finalidade exclusiva
de, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, prestar serviços de saúde em
todos os níveis de assistência hospitalar, inclusive os serviços de atendimento
móvel de urgências, além de poder desenvolver atividades de ensino e pesquisa
científica e tecnológica na área da saúde, de acordo com os princípios, as
normas e os objetivos constitucionais e legais do SUS.
Lei nº 6.348/2008:
Dispõe sobre a autorização para criação da Fundação Estadual de Saúde -
FUNESA, e dá providências correlatas
(...)
Art. 7º A Fundação Estadual de Saúde - FUNESA, terá por finalidade
executar ações e serviços complementares de Atenção Primária à Saúde - APS, de
atenção especializada e de vigilância em saúde, no âmbito da promoção,
prevenção, cura e reabilitação da saúde coletiva e individual, de formação
profissional e de educação permanente na área de saúde pública, devendo manter
a Escola de Saúde Pública do Estado de Sergipe - ESP/SE. (Redação dada pela Lei
nº 8.733/2020)
A legislação também disse que a fundação adotaria o
regime celetista para contratação de seus empregados.
ADI
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
ajuizou ADI impugnando os dispositivos transcritos.
Alegou que as
normas impugnadas são formalmente inconstitucionais, por não terem observado a
exigência de lei complementar para a definição das áreas de atuação das
fundações públicas, prevista no art. 37, XIX, da Constituição Federal:
Art. 37 (...)
XIX – somente por lei específica poderá ser criada autarquia e
autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e
de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de
sua atuação;
Sob o aspecto material, argumentou que as fundações em
questão, por serem destinadas à prestação de serviços públicos e à execução de
políticas públicas na área da saúde, deveriam adotar, por imposição
constitucional, o regime jurídico de direito público.
O STF concordou com os argumentos da OAB?
NÃO.
Ausência de inconstitucionalidade formal
O art. 37, XIX, da CF/88, com redação dada pela EC 19/98,
afirma que cabe à lei ordinária autorizar a criação de fundações públicas e à
lei complementar definir suas áreas de atuação:
Constituição Federal |
|
Redação originária |
Redação dada pela EC 19/98 |
Art. 37 (...) XIX - somente por lei específica poderão ser criadas
empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação pública; |
Art. 37 (...) XIX - somente por lei específica poderá ser criada
autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de
economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste
último caso, definir as áreas de sua atuação; |
No presente caso, as fundações públicas instituídas pelo
Estado de Sergipe tiveram suas criações autorizadas pelas leis ordinárias
impugnadas. São leis específicas. Logo, não há dúvidas quanto à compatibilidade
com a primeira parte do inciso XIX do art. 37 da CF/88.
O ponto controvertido diz respeito à exigência de lei
complementar que defina as suas áreas de atuação (parte final do inciso XIX).
Para o STF, essa
complementar de que trata a parte final do inciso XIX do art. 37 da CF/88 é o
art. 5º do Decreto-Lei nº 200/1967 (incluído pela Lei nº 7.596/1987), que diz o
seguinte:
Art. 5º Para os fins desta lei, considera-se:
(...)
IV - Fundação Pública - a entidade dotada de personalidade jurídica de
direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização
legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por
órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa,
patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento
custeado por recursos da União e de outras fontes.
Esse inciso IV do art. 5º do DL 200/1967, editado em
1987, prevê as áreas de atuação das fundações públicas, atendendo a exigência
constante da parte final do art. 37, XIX, da CF/88.
Vale ressaltar que, anteriormente à Emenda Constitucional
nº 19/1998, não havia impedimento para que a matéria fosse disciplinada simplesmente
por lei ordinária. A exigência lei complementar somente veio com a EC 19/98.
Assim, o art. 5º, IV, do Decreto-Lei nº 200/1967 não foi
invalidado pela alteração da redação do art. 37, XIX, da Constituição, mas sim recepcionado
com eficácia de lei complementar.
O art. 5º, IV, do Decreto-Lei nº 200/1967 (incluído pela
Lei nº 7.596/1987) foi, portanto, recepcionado com eficácia de lei complementar
pela Constituição Federal.
Logo, até que a questão seja revisitada pelo legislador
complementar, deve-se observar o art. 5º, IV, do Decreto-Lei nº 200/1967, que
veda a atuação de fundações públicas em atividades que exijam a atuação
exclusiva do Estado – os denominados serviços públicos inerentes, dos quais são
exemplos a defesa nacional, a diplomacia, a segurança pública e a jurisdição.
O serviço público de saúde a que se dedicam as fundações
públicas criadas pelo Estado de Sergipe não incide no óbice do desempenho,
pelas fundações públicas, de atividades que exigem a atuação exclusiva do
Estado — os denominados serviços públicos inerentes — já que, “a assistência à
saúde é livre à iniciativa privada” (art. 199, CF/88).
Assim, conclui-se que as leis impugnadas foram editadas
em conformidade com a norma que regulamenta a parte final do art. 37, XIX, da
Constituição, razão pela qual deve ser afastada a tese de inconstitucionalidade
formal.
Ausência de inconstitucionalidade material
Em relação ao
argumento de que o serviço público de saúde não pode ser prestado por entidade
pública com personalidade jurídica de direito privado, o tema envolve a
interpretação do art. 175, caput, da
Constituição, segundo o qual:
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob
regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de
serviços públicos.
Esse dispositivo permite que o ente público titular do
serviço público, ao definir a sua forma de prestação, opte por:
a) prestá-lo diretamente ou
b) por delegá-lo a particulares, por meio de contratos de
concessão ou permissão.
Em caso de prestação direta, cabe ao ente público
responsável organizar sua estrutura administrativa de modo a alocar essa
atividade, podendo optar por executar o serviço por meio de órgãos da
Administração direta ou pela criação de entidades integrantes da Administração
indireta.
No presente caso, não há razão para censurar a opção do
legislador sergipano de constituir fundações públicas de direito privado para a
prestação de serviços públicos de saúde. Isso porque não existe um modelo
pré-definido pela Constituição Federal para a prestação de tais serviços pelo
poder público. Em palavras mais simples, a Constituição não impõe que seja por
meio de órgãos públicos (Secretarias). Por essa razão deve prevalecer a
autonomia de cada ente federativo para definir a forma mais eficiente de
realizar as atividades correlatas (art. 18 da CF/88).
Vale lembrar
que o art. 199 da Constituição Federal permite expressamente que particulares
exerçam atividades de saúde, o que pode ocorrer inclusive com finalidade
lucrativa:
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
(...)
Seria ilógico concluir que a saúde pode ser prestada
pelos particulares e que o poder público não pudesse oferecê-la, como serviço
público, por meio de uma entidade pública (fundação) com personalidade jurídica
de direito privado.
Com relação ao regime de pessoal, a jurisprudência do STF
entende que a relação jurídica mantida entre as fundações de direito privado
instituídas pelo poder público e seus prestadores de serviço é regida pela CLT,
e que a exigência de instituição de regime jurídico único não se estende às
fundações de direito privado. Nesse sentido:
É constitucional a legislação estadual que determina que o
regime jurídico celetista incide sobre as relações de trabalho estabelecidas no
âmbito de fundações públicas, com personalidade jurídica de direito privado,
destinadas à prestação de serviços de saúde.
STF. Plenário. ADI 4247/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em
3/11/2020 (Info 997).
Em suma:
Lei estadual
pode autorizar a criação de fundação pública de direito privado para atuar na
prestação de serviço público de saúde.
STF. Plenário.
ADI 4197/SE, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 1º/3/2023 (Info 1085).
Tese fixada pelo STF:
É constitucional
a constituição de fundação pública de direito privado para a prestação de
serviço público de saúde.
STF. Plenário.
ADI 4197/SE, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 1º/3/2023 (Info 1085).
Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário,
por unanimidade, conheceu parcialmente da ação e, nessa extensão, a julgou
improcedente para assentar a constitucionalidade das Leis nº 6.346/2008, nº 6.347/2008
e nº 6.348/2008, todas do Estado de Sergipe.