Imagine a seguinte situação adaptada:
João, que tinha foro por prerrogativa de função no Tribunal
de Justiça, estava respondendo a um processo acusado do crime de concussão
(art. 316 do Código Penal).
Após a instrução probatória, o Ministério Público apresentou
alegações finais pedindo a absolvição do réu por ausência de provas (art. 386,
VII, do CPP).
O Tribunal de Justiça, contudo, entendeu que havia sim
provas suficientes e, contrariando o pedido do Ministério Público, condenou o acusado.
O Desembargador Relator, em seu voto, que foi acompanhado
por unanimidade pelos demais julgadores, invocou o art. 385 do CPP, que diz o
seguinte:
Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória,
ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como
reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.
O réu interpôs recuso especial alegando que o art. 385 do CPP
seria incompatível com o sistema acusatório. Além disso, esse dispositivo teria
sido tacitamente derrogado pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019), que
introduziu o art. 3º-A no CPP:
Art. 3º-A. O processo penal terá
estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a
substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Para a doutrina, o art. 385
do CPP foi recepcionado pela CF/88 e é compatível como o sistema acusatório?
O ART. 385 DO CPP AINDA É VÁLIDO? |
|
NÃO |
SIM |
O art. 385 do CPP é incompatível com o sistema
acusatório, instaurado com a CF/88 e reforçado em nosso ordenamento com o
art. 3º-A do CPP. Para essa corrente, em síntese, o magistrado que
condenasse contra o pedido absolutório do órgão acusador estaria agindo de
ofício, porque as alegações finais do Parquet retirariam e substituiriam a
pretensão condenatória inicialmente veiculada na denúncia. Haveria, ainda, violação do princípio do
contraditório e da ampla defesa, uma vez que, inexistindo pedido de
condenação nas alegações finais do Ministério Público, o réu não teria como
se contrapor previamente aos fundamentos invocados pelo julgador apenas no
momento da sentença. |
“Independência do juiz para julgar: do mesmo modo que
está o promotor livre para pedir a absolvição, demonstrando o seu
convencimento, fruto da sua independência funcional, outra não poderia ser a
postura do magistrado. Afinal, no processo penal, cuidamos da ação penal
pública nos prismas da obrigatoriedade e da indisponibilidade, não podendo o
órgão acusatório dela abrir mão, de modo que também não está fadado o juiz a
absolver o réu, se as provas apontam em sentido diverso. Ademais, pelo
princípio do impulso oficial, desde o recebimento da peça inicial acusatória,
está o magistrado obrigado a conduzir o feito ao seu deslinde, proferindo-se
decisão de mérito. E tudo isso a comprovar que o direito de punir do Estado
não é regido pela oportunidade, mas pela necessidade de se produzir a acusação
e, consequentemente, a condenação, desde que haja provas a sustentá-la.” (NUCCI,
Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. Rio de Janeiro:
Forense, 2020, p. 1322) |
É a posição de Geraldo Prado, Aury Lopes Jr., Alexandre
Morais da Rosa, dentre outros. |
É a corrente adotada por Eugênio Pacelli, Douglas
Fischer, Guilherme de Souza Nucci, Fernando da Costa Tourinho Filho e Ronaldo
Batista Pinto. |
Qual é a posição que prevalece na jurisprudência do STF
e do STJ?
A 2ª corrente.
Julgados do STF:
O art. 385 do Código de Processo Penal permite ao juiz proferir
sentença condenatória, embora o Ministério Público tenha requerido a
absolvição. Tal norma, ainda que considerada constitucional, impõe ao julgador
que decidir pela condenação um ônus de fundamentação elevado, para justificar a
excepcionalidade de decidir contra o titular da ação penal. No caso concreto,
contudo, as parcas provas colhidas pela Procuradoria-Geral da República são
insuficientes para justificar a aplicação da norma excepcional.
STF. 1ª Turma. Ap 976/PE, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 13/4/2020.
É constitucional o art. 385 do CPP. Jurisprudência desta Corte.
Agravo regimental desprovido.
STF. 2ª Turma. HC
185.633/SP, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 24/3/2021.
Julgados do STJ:
É pacífico o entendimento desta Corte Superior, no sentido de
que o artigo 385 do CPP foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, não
havendo falar em ilegalidade quanto ao posicionamento diverso da manifestação
ministerial, diante do fato de o Magistrado gozar do princípio do livre convencimento
motivado.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.850.925/SP, Rel. Min. Ribeiro
Dantas, DJe 22/10/2020.
Nos termos do art. 385 do Código de Processo Penal, nos crimes
de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o
Ministério Público tenha opinado pela absolvição.
O artigo 385 do Código de Processo Penal foi recepcionado pela
Constituição Federal.
STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 605.748/PI, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe
27/11/2020.
þ
(Fundep/DPE/MG/Defensor/2019) Nos termos da lei processual penal, em razão do
princípio da indisponibilidade da ação penal de iniciativa pública, ainda que o
promotor de justiça tenha sugerido a absolvição nas alegações finais, o juiz
poderá proferir sentença condenatória. (certo)
Esse entendimento persistiu mesmo com a introdução do art. 3º-A
no CPP pelo Pacote Anticrime:
O art. 385 do Código de Processo
Penal é compatível com o sistema acusatório e não foi tacitamente derrogado
pelo advento da Lei nº 13.964/2019, responsável por introduzir o art. 3º-A no
Código de Processo Penal.
STJ.
6ª Turma. REsp 2.022.413-PA, Rel. Min.
Sebastião Reis Júnior, Rel. para acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em
14/2/2023 (Info 765).
Assim, é possível que o julgador condene criminalmente o réu
mesmo quando o Ministério Público pede expressamente a sua absolvição em
alegações finais.
Veja abaixo um resumo dos argumentos do Min. Rogerio
Schietti Cruz, relator para o acórdão:
Ministério Público está submetido ao princípio da
indisponibilidade da ação penal pública
A Constituição Federal outorgou ao Ministério Público a
competência privativa para promover a ação penal pública (art. 129, I, da
Constituição Federal). Em razão disso, a Instituição tem o dever de deduzir,
presentes os pressupostos processuais e as condições da ação, a pretensão
punitiva estatal, compromissado com a descoberta da verdade e a realização da
justiça.
Ao contrário de outros sistemas, no Brasil, o Ministério
Público não pode, por critérios de discricionariedade, abrir mão do dever de
conduzir a actio penalis até seu desfecho, quer para a realização da
pretensão punitiva, quer para, se for o caso, postular a absolvição do acusado.
O certo é que, quando o Ministério Público pede a absolvição
de um réu, não há abandono ou disponibilidade da ação penal. Isso porque,
conforme já mencionado, no direito brasileiro, “o Ministério Público não poderá
desistir da ação penal” (art. 42 do CPP).
É diferente, portanto, do direito norte-americano. Nos EIA,
o promotor pode simplesmente retirar a acusação (decision on prosecution
motion to withdraw counts) e essa postura vincula o posicionamento do juiz.
Em nosso sistema, é vedada similar iniciativa do órgão de acusação, em face do
dever jurídico de promover a ação penal e de conduzi-la até o seu desfecho,
mesmo que, eventualmente, possa o agente ministerial posicionar-se de maneira
diferente – ou mesmo oposta – à do colega que, na denúncia, postulara a
condenação do imputado.
Mesmo que o MP, em alegações finais, tenha pedido a
condenação do acusado, ainda assim o juiz deverá analisar a pretensão
acusatória formulada na denúncia
A compreensão, portanto, é de que as posições
contingencialmente adotadas pelos representantes do Ministério Público no curso
de um processo não eliminam o conflito que está imanente, permanente, na persecução
penal, que é o conflito entre o interesse punitivo do Estado, representado pelo
Parquet, Estado acusador, e o interesse de proteção à liberdade do indivíduo
acusado, ambos sob a responsabilidade do órgão incumbido da soberana função de
julgar, por meio de quem, sopesadas as alegações e as provas produzidas sob o
contraditório judicial, o Direito se expressa concretamente.
Portanto, mesmo que o órgão ministerial, em alegações
finais, não haja pedido a condenação do acusado, ainda assim remanesce presente
a pretensão acusatória formulada no início da persecução penal - pautada pelos
princípios da obrigatoriedade, da indisponibilidade e pelo caráter publicista
do processo -, a qual é julgada pelo Estado-juiz, mediante seu soberano poder
de dizer o direito (juris dicere).
Princípio da correlação
No processo penal, existe o princípio da correlação ou da
congruência segundo o qual a sentença não poderá condenar o acusado por fatos
não narrados na denúncia ou queixa, sob pena de incorrer em decisão ultra
ou extra petita, sendo isso causa de nulidade absoluta.
Conforme a própria definição dada acima, o princípio da
correlação vincula o julgador apenas aos fatos narrados na denúncia - aos quais
ele pode, inclusive, atribuir qualificação jurídica diversa (art. 383 do CPP)
-, mas não o vincula aos fundamentos jurídicos invocados pelas partes em
alegações finais para sustentar seus pedidos.
Dessa forma, uma vez veiculada a acusação por meio da
denúncia e alterado o estado natural de inércia da jurisdição - inafastável do
Poder Judiciário, nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal -, o
processo segue por impulso oficial e o juiz tem o dever - pautado pelo sistema
da persuasão racional - de analisar o mérito da causa submetida à sua
apreciação à vista da hipótese acusatória contida na denúncia, sem que lhe seja
imposto o papel de mero homologador do que lhe foi proposto pelo Parquet.
Se o juiz estivesse vinculado ao pedido de absolvição formulado
pelo MP, haveria uma transmutação de quem é o órgão julgador
A submissão do magistrado à manifestação final do Ministério
Público, a pretexto de supostamente concretizar o princípio acusatório,
implicaria, em verdade, subvertê-lo, transmutando o órgão acusador em julgador
e solapando, além da independência funcional da magistratura, duas das
basilares características da jurisdição: a indeclinabilidade e a
indelegabilidade.
Com efeito, é importante não confundir a desistência da ação
- que é expressamente vedada ao Ministério Público pela previsão contida no
art. 42 do CPP e que levaria, se permitida, à extinção do processo sem
resolução do mérito e sem a formação de coisa julgada material -, com a
necessária vinculação do julgador aos fundamentos apresentados por uma das
partes em alegações finais, cujo acolhimento leva à extinção com resolução do
mérito da causa e à formação de coisa julgada material insuperável, porquanto
proibida a revisão criminal pro societate em nosso ordenamento.
A Constituição Federal afirmou que o princípio
acusatório deveria ser exercido na forma da lei
Bem observa a doutrina que, ao atribuir privativamente ao
Ministério Público a função de promover a ação penal pública, o Constituinte
ressalvou no art. 129, I, que isso deveria ser exercido "na forma da
lei" (“promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”),
de modo a resguardar ao legislador ordinário alguma margem de conformação
constitucional para tratar da matéria, dentro da qual se enquadra a disposição
contida no art. 385 do CPP.
Assim, mesmo que sujeita a algumas críticas doutrinárias
legítimas, a referida previsão normativa não chega ao ponto de poder ser
considerada incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, tampouco com o
sistema acusatório entre nós adotado.
Para haver uma condenação mesmo com pedido de
absolvição por parte do MP é necessário que o julgador fundamente de forma
ainda mais robusta a existência do crime e a sua autoria
Faz-se apenas a necessária ponderação, à luz das pertinentes
palavras do eminente Ministro Roberto Barroso, no julgamento da AP 976/PE, de
que “[t]al norma, ainda que considerada constitucional, impõe ao julgador que
decidir pela condenação um ônus de fundamentação elevado, para justificar a
excepcionalidade de decidir contra o titular da ação penal”.
Vale dizer, uma vez formulado pedido de absolvição pelo
dominus litis, caberá ao julgador, na sentença, apresentar os motivos fáticos e
jurídicos pelos quais entende ser cabível a condenação e refutar não apenas os
fundamentos suscitados pela defesa, mas também aqueles invocados pelo Parquet
em suas alegações finais, a fim de demonstrar o equívoco da manifestação
ministerial. Isso porque, tal como ocorre com os seus poderes instrutórios, a
faculdade de o julgador condenar o acusado em contrariedade ao pedido de
absolvição do Parquet também só pode ser exercida de forma excepcional,
devidamente fundamentada à luz das circunstâncias do caso concreto.
Conclusão
Assim, diante de todas essas considerações, não há falar em
violação dos arts. 3º-A do CPP (“Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura
acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a
substituição da atuação probatória do órgão de acusação”) e 2º, § 1º, da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“A lei posterior revoga a anterior
quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando
regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”), porquanto o art.
385 do CPP não é incompatível com o sistema acusatório entre nós adotado e não
foi tacitamente derrogado pelo advento da Lei nº 13.964/2019, responsável por
introduzir o art. 3º-A no CPP.