Dizer o Direito

quarta-feira, 22 de março de 2023

É possível que o julgador condene criminalmente o réu mesmo quando o Ministério Público pede expressamente a sua absolvição em alegações finais

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

João, que tinha foro por prerrogativa de função no Tribunal de Justiça, estava respondendo a um processo acusado do crime de concussão (art. 316 do Código Penal).

Após a instrução probatória, o Ministério Público apresentou alegações finais pedindo a absolvição do réu por ausência de provas (art. 386, VII, do CPP).

O Tribunal de Justiça, contudo, entendeu que havia sim provas suficientes e, contrariando o pedido do Ministério Público, condenou o acusado.

O Desembargador Relator, em seu voto, que foi acompanhado por unanimidade pelos demais julgadores, invocou o art. 385 do CPP, que diz o seguinte:

Art. 385.  Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.

 

O réu interpôs recuso especial alegando que o art. 385 do CPP seria incompatível com o sistema acusatório. Além disso, esse dispositivo teria sido tacitamente derrogado pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019), que introduziu o art. 3º-A no CPP:

Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

 

Para a doutrina, o art. 385 do CPP foi recepcionado pela CF/88 e é compatível como o sistema acusatório?

O ART. 385 DO CPP AINDA É VÁLIDO?

NÃO

SIM

O art. 385 do CPP é incompatível com o sistema acusatório, instaurado com a CF/88 e reforçado em nosso ordenamento com o art. 3º-A do CPP.

Para essa corrente, em síntese, o magistrado que condenasse contra o pedido absolutório do órgão acusador estaria agindo de ofício, porque as alegações finais do Parquet retirariam e substituiriam a pretensão condenatória inicialmente veiculada na denúncia.

Haveria, ainda, violação do princípio do contraditório e da ampla defesa, uma vez que, inexistindo pedido de condenação nas alegações finais do Ministério Público, o réu não teria como se contrapor previamente aos fundamentos invocados pelo julgador apenas no momento da sentença.

“Independência do juiz para julgar: do mesmo modo que está o promotor livre para pedir a absolvição, demonstrando o seu convencimento, fruto da sua independência funcional, outra não poderia ser a postura do magistrado. Afinal, no processo penal, cuidamos da ação penal pública nos prismas da obrigatoriedade e da indisponibilidade, não podendo o órgão acusatório dela abrir mão, de modo que também não está fadado o juiz a absolver o réu, se as provas apontam em sentido diverso. Ademais, pelo princípio do impulso oficial, desde o recebimento da peça inicial acusatória, está o magistrado obrigado a conduzir o feito ao seu deslinde, proferindo-se decisão de mérito. E tudo isso a comprovar que o direito de punir do Estado não é regido pela oportunidade, mas pela necessidade de se produzir a acusação e, consequentemente, a condenação, desde que haja provas a sustentá-la.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 1322)

É a posição de Geraldo Prado, Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa, dentre outros.

É a corrente adotada por Eugênio Pacelli, Douglas Fischer, Guilherme de Souza Nucci, Fernando da Costa Tourinho Filho e Ronaldo Batista Pinto.

 

Qual é a posição que prevalece na jurisprudência do STF e do STJ?

A 2ª corrente.

 

Julgados do STF:

O art. 385 do Código de Processo Penal permite ao juiz proferir sentença condenatória, embora o Ministério Público tenha requerido a absolvição. Tal norma, ainda que considerada constitucional, impõe ao julgador que decidir pela condenação um ônus de fundamentação elevado, para justificar a excepcionalidade de decidir contra o titular da ação penal. No caso concreto, contudo, as parcas provas colhidas pela Procuradoria-Geral da República são insuficientes para justificar a aplicação da norma excepcional.

STF. 1ª Turma. Ap 976/PE, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 13/4/2020.

 

É constitucional o art. 385 do CPP. Jurisprudência desta Corte.

Agravo regimental desprovido.

STF. 2ª Turma. HC 185.633/SP, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 24/3/2021.

 

Julgados do STJ:

É pacífico o entendimento desta Corte Superior, no sentido de que o artigo 385 do CPP foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, não havendo falar em ilegalidade quanto ao posicionamento diverso da manifestação ministerial, diante do fato de o Magistrado gozar do princípio do livre convencimento motivado.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.850.925/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 22/10/2020.

 

Nos termos do art. 385 do Código de Processo Penal, nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição.

O artigo 385 do Código de Processo Penal foi recepcionado pela Constituição Federal.

STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 605.748/PI, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe 27/11/2020.

 

þ (Fundep/DPE/MG/Defensor/2019) Nos termos da lei processual penal, em razão do princípio da indisponibilidade da ação penal de iniciativa pública, ainda que o promotor de justiça tenha sugerido a absolvição nas alegações finais, o juiz poderá proferir sentença condenatória. (certo)

 

Esse entendimento persistiu mesmo com a introdução do art. 3º-A no CPP pelo Pacote Anticrime:

O art. 385 do Código de Processo Penal é compatível com o sistema acusatório e não foi tacitamente derrogado pelo advento da Lei nº 13.964/2019, responsável por introduzir o art. 3º-A no Código de Processo Penal.

STJ. 6ª Turma.   REsp 2.022.413-PA, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Rel. para acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 14/2/2023 (Info 765).

 

Assim, é possível que o julgador condene criminalmente o réu mesmo quando o Ministério Público pede expressamente a sua absolvição em alegações finais.

Veja abaixo um resumo dos argumentos do Min. Rogerio Schietti Cruz, relator para o acórdão:

 

Ministério Público está submetido ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública

A Constituição Federal outorgou ao Ministério Público a competência privativa para promover a ação penal pública (art. 129, I, da Constituição Federal). Em razão disso, a Instituição tem o dever de deduzir, presentes os pressupostos processuais e as condições da ação, a pretensão punitiva estatal, compromissado com a descoberta da verdade e a realização da justiça.

Ao contrário de outros sistemas, no Brasil, o Ministério Público não pode, por critérios de discricionariedade, abrir mão do dever de conduzir a actio penalis até seu desfecho, quer para a realização da pretensão punitiva, quer para, se for o caso, postular a absolvição do acusado.

O certo é que, quando o Ministério Público pede a absolvição de um réu, não há abandono ou disponibilidade da ação penal. Isso porque, conforme já mencionado, no direito brasileiro, “o Ministério Público não poderá desistir da ação penal” (art. 42 do CPP).

É diferente, portanto, do direito norte-americano. Nos EIA, o promotor pode simplesmente retirar a acusação (decision on prosecution motion to withdraw counts) e essa postura vincula o posicionamento do juiz. Em nosso sistema, é vedada similar iniciativa do órgão de acusação, em face do dever jurídico de promover a ação penal e de conduzi-la até o seu desfecho, mesmo que, eventualmente, possa o agente ministerial posicionar-se de maneira diferente – ou mesmo oposta – à do colega que, na denúncia, postulara a condenação do imputado.

 

Mesmo que o MP, em alegações finais, tenha pedido a condenação do acusado, ainda assim o juiz deverá analisar a pretensão acusatória formulada na denúncia

A compreensão, portanto, é de que as posições contingencialmente adotadas pelos representantes do Ministério Público no curso de um processo não eliminam o conflito que está imanente, permanente, na persecução penal, que é o conflito entre o interesse punitivo do Estado, representado pelo Parquet, Estado acusador, e o interesse de proteção à liberdade do indivíduo acusado, ambos sob a responsabilidade do órgão incumbido da soberana função de julgar, por meio de quem, sopesadas as alegações e as provas produzidas sob o contraditório judicial, o Direito se expressa concretamente.

Portanto, mesmo que o órgão ministerial, em alegações finais, não haja pedido a condenação do acusado, ainda assim remanesce presente a pretensão acusatória formulada no início da persecução penal - pautada pelos princípios da obrigatoriedade, da indisponibilidade e pelo caráter publicista do processo -, a qual é julgada pelo Estado-juiz, mediante seu soberano poder de dizer o direito (juris dicere).

 

Princípio da correlação

No processo penal, existe o princípio da correlação ou da congruência segundo o qual a sentença não poderá condenar o acusado por fatos não narrados na denúncia ou queixa, sob pena de incorrer em decisão ultra ou extra petita, sendo isso causa de nulidade absoluta.

Conforme a própria definição dada acima, o princípio da correlação vincula o julgador apenas aos fatos narrados na denúncia - aos quais ele pode, inclusive, atribuir qualificação jurídica diversa (art. 383 do CPP) -, mas não o vincula aos fundamentos jurídicos invocados pelas partes em alegações finais para sustentar seus pedidos.

Dessa forma, uma vez veiculada a acusação por meio da denúncia e alterado o estado natural de inércia da jurisdição - inafastável do Poder Judiciário, nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal -, o processo segue por impulso oficial e o juiz tem o dever - pautado pelo sistema da persuasão racional - de analisar o mérito da causa submetida à sua apreciação à vista da hipótese acusatória contida na denúncia, sem que lhe seja imposto o papel de mero homologador do que lhe foi proposto pelo Parquet.

 

Se o juiz estivesse vinculado ao pedido de absolvição formulado pelo MP, haveria uma transmutação de quem é o órgão julgador

A submissão do magistrado à manifestação final do Ministério Público, a pretexto de supostamente concretizar o princípio acusatório, implicaria, em verdade, subvertê-lo, transmutando o órgão acusador em julgador e solapando, além da independência funcional da magistratura, duas das basilares características da jurisdição: a indeclinabilidade e a indelegabilidade.

Com efeito, é importante não confundir a desistência da ação - que é expressamente vedada ao Ministério Público pela previsão contida no art. 42 do CPP e que levaria, se permitida, à extinção do processo sem resolução do mérito e sem a formação de coisa julgada material -, com a necessária vinculação do julgador aos fundamentos apresentados por uma das partes em alegações finais, cujo acolhimento leva à extinção com resolução do mérito da causa e à formação de coisa julgada material insuperável, porquanto proibida a revisão criminal pro societate em nosso ordenamento.

 

A Constituição Federal afirmou que o princípio acusatório deveria ser exercido na forma da lei

Bem observa a doutrina que, ao atribuir privativamente ao Ministério Público a função de promover a ação penal pública, o Constituinte ressalvou no art. 129, I, que isso deveria ser exercido "na forma da lei" (“promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”), de modo a resguardar ao legislador ordinário alguma margem de conformação constitucional para tratar da matéria, dentro da qual se enquadra a disposição contida no art. 385 do CPP.

Assim, mesmo que sujeita a algumas críticas doutrinárias legítimas, a referida previsão normativa não chega ao ponto de poder ser considerada incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, tampouco com o sistema acusatório entre nós adotado.

 

Para haver uma condenação mesmo com pedido de absolvição por parte do MP é necessário que o julgador fundamente de forma ainda mais robusta a existência do crime e a sua autoria

Faz-se apenas a necessária ponderação, à luz das pertinentes palavras do eminente Ministro Roberto Barroso, no julgamento da AP 976/PE, de que “[t]al norma, ainda que considerada constitucional, impõe ao julgador que decidir pela condenação um ônus de fundamentação elevado, para justificar a excepcionalidade de decidir contra o titular da ação penal”.

Vale dizer, uma vez formulado pedido de absolvição pelo dominus litis, caberá ao julgador, na sentença, apresentar os motivos fáticos e jurídicos pelos quais entende ser cabível a condenação e refutar não apenas os fundamentos suscitados pela defesa, mas também aqueles invocados pelo Parquet em suas alegações finais, a fim de demonstrar o equívoco da manifestação ministerial. Isso porque, tal como ocorre com os seus poderes instrutórios, a faculdade de o julgador condenar o acusado em contrariedade ao pedido de absolvição do Parquet também só pode ser exercida de forma excepcional, devidamente fundamentada à luz das circunstâncias do caso concreto.

 

Conclusão

Assim, diante de todas essas considerações, não há falar em violação dos arts. 3º-A do CPP (“Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”) e 2º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”), porquanto o art. 385 do CPP não é incompatível com o sistema acusatório entre nós adotado e não foi tacitamente derrogado pelo advento da Lei nº 13.964/2019, responsável por introduzir o art. 3º-A no CPP.

 

 


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