ENTENDENDO O ART. 139, IV, DO CPC
Imagine a seguinte situação hipotética:
João foi condenado a pagar R$ 100 mil em favor de Pedro.
Como não houve pagamento voluntário, Pedro iniciou o
cumprimento de sentença.
Tentou-se a penhora de bens do devedor, mas não se encontrou
nada em seu nome.
A despeito disso, João constantemente aparecia nas redes
sociais fazendo viagens internacionais.
Diante desse cenário, em 2019, Pedro requereu ao juízo a
suspensão do passaporte do executado até que ele pague a dívida. O juiz deferiu
o pedido.
Isso é possível? Em tese, é possível que o juiz, no
cumprimento de sentença ou em um processo autônomo de execução comum, determine
a suspensão do passaporte e da CNH do executado?
SIM. Tais providências são classificadas como medidas
executivas atípicas (meios executivos atípicos) e são admitidas pela
jurisprudência, respeitados alguns requisitos. Nesse sentido, confira o
seguinte julgado do STJ:
A adoção de meios executivos atípicos é cabível desde que
cumpridos os seguintes requisitos:
• existam indícios de que o devedor possui patrimônio expropriável
(bens que podem ser penhorados);
• essas medidas atípicas sejam adotadas de modo subsidiário;
• a decisão judicial que a determinar contenha fundamentação
adequada às especificidades da hipótese concreta;
• sejam observados o contraditório substancial e o postulado da
proporcionalidade.
STJ. 3ª Turma. REsp 1788950/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi,
julgado em 23/04/2019.
Efetividade do processo, princípio do resultado na
execução e atipicidade das medidas executivas
O principal fundamento para isso é o art. 139, IV, do
CPC/2015, que representou uma importante novidade do Código e que teve por
objetivo dar mais efetividade ao processo. Veja a redação do dispositivo:
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as
disposições deste Código, incumbindo-lhe:
(...)
IV - determinar todas as medidas
indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para
assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por
objeto prestação pecuniária;
No caso do processo de execução, a adoção de medidas
indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias apresenta-se como um
importante instrumento para permitir a satisfação da obrigação que está sendo
cobrada (obrigação exequenda). Com isso, podemos dizer que esse dispositivo
homenageia (prestigia) o “princípio do resultado na execução”.
As medidas executivas atípicas, sobretudo as coercitivas,
não são penalidades judiciais impostas ao devedor, pois, se assim fossem,
implicariam obrigatoriamente em quitação da dívida após o cumprimento da
referida pena, o que não ocorre.
Por esse motivo, essas medidas previstas no art. 139, IV, do
CPC não representam uma superação do dogma da patrimonialidade da execução, uma
vez que são os bens - e apenas os bens - do devedor que respondem pelas suas
dívidas. O que o art. 139, IV, do CPC permite é que, mesmo a execução sendo
patrimonial, sejam impostas restrições pessoais como método para vencer a
recalcitrância do devedor.
ADI PROPOSTA CONTRA O ART. 139, IV, DO CPC
O Partido dos Trabalhadores (PT) ajuizou ADI contra o art.
139, IV, do CPC/2015.
Segundo trechos da petição inicial:
“(...) admitir, com fundamento no
artigo 139, inciso IV, do CPC, a apreensão de passaporte ou da carteira
nacional de habilitação como atos executivos atípicos enseja violação ao
direito de liberdade de locomoção (artigo 5º, incisos XV e LIV) e à dignidade
da pessoa humana (artigo 1ª, inciso III)”
“A bem da verdade, a suspensão da
carteira nacional de habilitação e do passaporte do devedor são medidas
absolutamente desarrazoadas e desproporcionais, contrariando, inclusive, o
princípio da ponderação, consagrado por Robert Alexy.”
“Limitar o direito de ir e vir do
devedor é lançar às favas os ditames da responsabilidade patrimonial do devedor
para satisfazer o crédito às custas de sua liberdade; é admitir que a
necessidade de satisfação de interesses contratuais, comerciais e/ou
empresariais do credor poderia ser atendida restringindo-se a liberdade de
locomoção do devedor.”
O autor formulou então o seguinte pedido:
“Diante do exposto, requer seja
julgado procedente o pedido para que essa Suprema Corte declare a nulidade, sem
redução de texto, do inciso IV do artigo 139 da Lei n. 13.105/2015, para
declarar inconstitucionais, como possíveis medidas coercitivas, indutivas ou
sub-rogatórias oriundas da aplicação daquele dispositivo, a apreensão de
carteira nacional de habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir, a
apreensão de passaporte, a proibição de participação em concurso público e a
proibição de participação em licitação pública.”
O STF concordou os argumentos do autor? O pedido foi julgado
procedente?
NÃO.
A Constituição Federal prevê, com garantia fundamental, a
duração razoável do processo, que decorre da própria inafastabilidade da jurisdição:
Art. 5º (...)
LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional
nº 45, de 2004)
A duração razoável do processo também abrange a atividade satisfativa,
ou seja, a execução daquilo que foi assegurado no processo. Nesse sentido,
confira o art. 4º do CPC/2015:
CPC/2015
Art. 4º As partes têm o direito de
obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade
satisfativa.
Assim, é inviável a pretensão abstrata formulada pelo autor de
retirar determinadas medidas do leque de ferramentas disponíveis ao magistrado
para fazer valer o provimento jurisdicional, sob pena de inviabilizar a
efetividade do próprio processo, notadamente quando inexistir uma ampliação
excessiva da discricionariedade judicial.
O art. 138, IV, do CPC/2015 traz uma cláusula geral de
medidas atípicas, mas isso tem uma razão de ser. A previsão de uma cláusula
geral, contendo uma autorização genérica, se dá diante da impossibilidade de a
legislação considerar todas as hipóteses possíveis no mundo contemporâneo,
caracterizado pelo dinamismo e pelo risco relacionados aos mais diversos ramos
jurídicos.
Assim, as medidas atípicas devem ser avaliadas de forma
casuística, de modo a garantir ao juiz a interpretação da norma e a melhor
adequação ao caso concreto, aplicando ao devedor ou executado aquela que lhe
for menos gravosa, mediante decisão devidamente motivada.
Vale ressaltar, contudo, que a discricionariedade judicial
não se confunde com arbitrariedade, razão pela qual qualquer abuso deverá ser
coibido pelos meios processuais próprios, que são os recursos previstos no
ordenamento processual.
Em suma:
São constitucionais
— desde que respeitados os direitos fundamentais da pessoa humana e observados
os valores especificados no próprio ordenamento processual, em especial os
princípios da proporcionalidade e da razoabilidade — as medidas atípicas
previstas no CPC/2015 destinadas a assegurar a efetivação dos julgados.
STF.
Plenário. ADI 5941/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 9/02/2023 (Info 1082).
Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, julgou
improcedente o pedido e decidiu que é constitucional o art. 139, IV, do
CPC/2015.
A decisão acima significa que o STF disse que o
indivíduo que esteja com dívidas fica impedido de particular de concursos
públicos?
NÃO. Na época em que a notícia do julgado foi divulgada,
essa confusão surgiu em algumas pessoas. O motivo desse equívoco foi o
seguinte:
Na petição inicial da ADI, o partido pediu que o STF
dissesse expressamente que seria inconstitucional decretar “a apreensão de
carteira nacional de habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir, a
apreensão de passaporte, a proibição de participação em concurso público e a
proibição de participação em licitação pública” com base no art. 139, IV, do
CPC.
O STF rejeitou esse pedido afirmando que não cabia a ele
dizer, de antemão, de forma abstrata, quais medidas estariam proibidas. Segundo
a Corte, as medidas atípicas que serão aplicadas devem ser avaliadas pelo juiz
no caso concreto, “aplicando ao devedor ou executado aquela que lhe for menos
gravosa, mediante decisão devidamente motivada”.
O que o STF não quis foi proibir, de forma prévia, qualquer
medida, deixando para o magistrado fundamentar no caso concreto. Essa escolha
do juiz, contudo, não é absoluta nem pode ser arbitrária. O STF afirmou que a
medida imposta deve necessariamente respeitar:
• os direitos fundamentais da pessoa humana;
• os valores especificados no ordenamento processual;
• os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Diante desses parâmetros fixados pelo STF, em minha opinião,
não se mostra, na prática, no caso concreto, possível que o juiz decrete a
proibição de um candidato participar de concurso público pelo simples fato de
ele estar sendo executado. Essa medida ofenderia o princípio da
proporcionalidade, além de ser contrário ao objetivo primordial da execução,
que é a satisfação do crédito. Se o devedor for aprovado e nomeado, terá melhores
condições de pagar o débito.
Ademais as medidas atípicas do art. 139, IV, do CPC são
subsidiárias e não se aplicam pelo simples inadimplemento, sendo necessária a
demonstração de que há uma espécie de abuso por parte do devedor.