A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:
A Polícia Rodoviária Federal, em fiscalização de rotina, parou o
veículo no qual havia um casal.
Eles se identificaram como Juliana Lemos e Jorge Oliveira e apresentaram
CNH com esses nomes.
Os policiais fizeram vistoria no veículo e encontraram identidades
funcionais do Poder Judiciário Federal. As identidades tinham a fotografia de Juliana,
mas estavam preenchidas com nomes e dados diversos, ou seja, eram documentos
falsificados.
Também foi encontrada uma impressora, que seria supostamente
utilizada na falsificação.
Diante disso, foi dada voz de prisão ao casal.
Posteriormente, surgiu uma dúvida acerca da competência para
julgar essa conduta.
O Juízo Estadual (Juiz de Direito) declinou da competência, sob o
fundamento de que o crime foi praticado em detrimento de serviço da União
(Poder Judiciário Federal). O magistrado estadual invocou a Súmula 546 do STJ:
A competência para processar e julgar o crime de uso de documento falso é
firmada em razão da entidade ou órgão ao qual foi apresentado o documento
público, não importando a qualificação do órgão expedidor.
O Juízo Federal não concordou e suscitou conflito afirmando que os
flagranteados não apresentaram o documento falso aos Policiais Rodoviários
Federais. Os documentos foram encontrados pelos Policiais. Logo, não houve no
caso ofensa direta a serviço federal.
O que o STJ decidiu? De quem é a competência para julgar essa
conduta?
Justiça Federal.
Não se aplica a Súmula 546 do STJ porque não houve uso de
documento falso
Inicialmente, importante esclarecer que não se aplica, no
caso, a Súmula 546 do STJ. Isso porque não houve a apresentação dos documentos
falsos à autoridade policial.
Assim, não se apura o crime de uso de documento falso, mas sim
o de falsificação de documento público.
Não há crime de uso porque não há como se reconhecer, a
priori, o elemento de vontade (o dolo de fazer uso de documento falso)
necessário à caracterização do delito do art. 304 do Código Penal (STJ. 3ª
Seção. CC 148.592/RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 13/2/2017).
Contudo, mesmo não sendo crime de uso de documento falso, a
competência continua sendo da Justiça Federal.
Se é falsificado um documento “federal”, mas para ser
usado em prejuízo de particular, a competência é, em regra, da Justiça Estadual
O STJ possui entendimento no sentido de que se um documento
de um órgão ou entidade federal é falsificado, mas a vítima primária dessa
falsificação é um particular, a competência para julgar esse crime é da Justiça
Estadual. Isso porque o prejuízo da União será apenas reflexo (indireto).
Exemplificativamente, nos casos de falsificação do selo do
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, o STJ já concluiu
que o delito deve ser julgado pela Justiça Comum Estadual, porque os ofendidos
são os consumidores. Nesse sentido:
Competente a Justiça Comum Estadual quando a falsificação de
selo ou sinal público (art. 296, § 1.º, inciso II, do Código Penal) é usada
para dar a produtos falsificados aparência de regularidade, em prejuízo das
relações de consumo, sem ofensa a interesses, bens ou serviços da União.
STJ. 3ª Seção. AgRg no CC 181.690/PB, Rel. Min. Laurita Vaz,
julgado em 9/2/2022.
No entanto, a situação aqui é diferente e merece uma distinção
(distinguishing) em relação à diretriz jurisprudencial acima mencionada.
No caso concreto, a vítima primária é a própria União, pois
não se cogita de prejuízo fundamental a particulares. Não há notícia de
particulares que tenham sido prejudicados.
Além disso, a Lei nº 12.774/2012, ao dispor sobre as
Carreiras dos Servidores do Poder Judiciário da União, prescreveu, em seu art.
4º, que:
Art. 4º As carteiras de
identidade funcional emitidas pelos órgãos do Poder Judiciário da União têm fé
pública em todo o território nacional.
Dessa forma, a falsificação de identidades funcionais do
Poder Judiciário da União atinge direta e essencialmente a fé pública e a
presunção de veracidade de documento, cuja expedição atribui-se à Administração
Pública Federal.
Logo, o crime em questão foi praticado em detrimento da
Administração Pública federal, atraindo a competência da Justiça Federal, nos
termos do art. art. 109, IV, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais
compete processar e julgar:
(...)
IV - os crimes políticos e as
infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da
União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as
contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça
Eleitoral;
Em suma:
STJ. 3ª Seção.
CC 192.033-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 14/12/2022 (Info 763).