Dizer o Direito

quarta-feira, 8 de março de 2023

A coisa julgada que impedia o contribuinte de pagar determinado tributo é atingida caso o STF decida em sentido oposto ao que havia sido julgado?

                                                                                

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 1990, a sociedade empresária Alfa S/A impetrou mandado de segurança pedindo para não pagar a contribuição social sobre o lucro (CLSS), instituída pela Lei nº 7.689/88, em razão de ela ser inconstitucional já que seria necessária a prévia edição de uma lei complementar.

O pedido foi julgado procedente e transitou em julgado em maio de 1992.

A União não ajuizou ação rescisória.

 

Depois da coisa julgada, STF decidiu, em controle difuso (sem repercussão geral), que a Lei nº 7.689/88 é constitucional

Em julho de 1992, o STF, ao julgar um processo envolvendo outra empresa (Beta S/A) decidiu que a CSLL instituída pela Lei nº 7.689/88 é constitucional já que não seria necessária a prévia edição de uma lei complementar.

Esse acórdão do STF foi proferido em sede de recurso extraordinário (controle difuso/incidental) em uma época na qual ainda não havia repercussão geral:

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS. CONTRIBUIÇÕES INCIDENTES SOBRE O LUCRO DAS PESSOAS JURIDICAS. Lei n. 7.689, de 15.12.88.

I. - Contribuições parafiscais: contribuições sociais, contribuições de intervenção e contribuições corporativas. C.F., art. 149. Contribuições sociais de seguridade social. C.F., arts. 149 e 195. As diversas espécies de contribuições sociais.

II. - A contribuição da Lei 7.689, de 15.12.88, e uma contribuição social instituída com base no art. 195, I, da Constituição. As contribuições do art. 195, I, II, III, da Constituição, não exigem, para a sua instituição, lei complementar. Apenas a contribuição do parag. 4. do mesmo art. 195 e que exige, para a sua instituição, lei complementar, dado que essa instituição deverá observar a técnica da competência residual da União (C.F., art. 195, parag. 4.; C.F., art. 154, I). Posto estarem sujeitas a lei complementar do art. 146, III, da Constituição, porque não são impostos, não há necessidade de que a lei complementar defina o seu fato gerador, base de cálculo e contribuintes (C.F., art. 146, III, "a"). (...)

STF. Plenário. RE 138284, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 01/07/1992.

 

A partir de 1994, o Fisco voltou a cobrar a CSLL da empresa Alfa.

 

Novo mandado de segurança alegando violação à coisa julgada

A empresa Alfa não concordou e, em 1995, impetrou novo mandado de segurança (vamos chamá-lo de MS 2) alegando que a CSLL, instituída pela Lei nº 7.689/88, não deve ser cobrada dela considerando que possui em seu favor uma sentença transitada em julgado anterior à decisão do STF e que declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 7.689/88.

Assim, a autora pediu para que fosse reconhecida a eficácia da coisa julgada inclusive para os fatos geradores surgidos após a decisão do STF.

O juiz concedeu tutela antecipada dizendo que, enquanto não for julgado definitivamente o mérito deste mandado de segurança, a empresa não é obrigada a pagar a CSLL, considerando a eficácia do primeiro processo.

Em 1999, o juiz julgou o pedido da empresa procedente dizendo que ela não precisava pagar CSLL.

Em 2005, o TRF manteve a sentença.

A Fazenda Nacional (União) interpôs recurso extraordinário e o processo ficou no STF aguardando para ser julgado.

 

Em 2007, o STF decidiu, em ação direta, que a Lei nº 7.689/88 é constitucional

Em 14/06/2007, o STF, ao julgar uma ação direta de inconstitucionalidade, reiterou o entendimento de que a CSLL instituída pela Lei nº 7.689/88 é constitucional. A diferença foi que agora a decisão foi proferida em ADI:

(...) IV. ADIn: L. 7.689/88, que instituiu contribuição social sobre o lucro das pessoas jurídicas, resultante da transformação em lei da Medida Provisória 22, de 1988. (...)

3. Improcedência das alegações de inconstitucionalidade formal e material do restante da mesma lei, que foram rebatidas, à exaustão, pelo Supremo Tribunal, nos julgamentos dos RREE 146.733 e 150.764, ambos recebidos pela alínea “b” do permissivo constitucional, que devolve ao STF o conhecimento de toda a questão da constitucionalidade da lei.

STF. Plenário. ADI 15, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 14/06/2007.

 

Em 2023, o STF julgou o recurso extraordinário no MS 2

Conforme explicado acima, no MS 2, impetrado em 1995, a empresa Alfa pedia para continuar sem pagar CSLL mesmo depois da decisão do STF reconhecendo a constitucionalidade da Lei nº 7.689/88.

O pedido havia sido julgado procedente em primeira instância, sentença confirmada pelo TRF.

O STF julgou o recurso extraordinário interposto.

 

A questão jurídica enfrentada pelo STF foi a seguinte: existe uma decisão transitada em julgado dizendo que, em uma relação jurídica de trato sucessivo, o contribuinte não precisa pagar determinado tributo porque ele seria inconstitucional; posteriormente, o STF decide que esse tributo é constitucional; a partir dessa decisão do STF o Fisco poderá cobrar o tributo desse contribuinte em relação aos fatos geradores surgidos após a decisão da Corte?

Depende:

1) Se essa decisão do STF foi proferida em ação direta ou em sede de repercussão geral: SIM.

As decisões proferidas pelo STF em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado em sentido contrário.

Isso significa que o tributo volta a ser devido a partir da decisão do STF, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.

 

2) Se essa decisão do STF foi proferida em controle incidental (difuso) de constitucionalidade sem ser repercussão geral: NÃO.

decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.

 

Os efeitos temporais da coisa julgada nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo são imediatamente cessados quando o STF se manifestar em sentido oposto em julgamento de controle concentrado de constitucionalidade ou de recurso extraordinário com repercussão geral.

STF. Plenário. RE 955.227/BA, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 8/02/2023 (Repercussão Geral – Tema 885) (Info 1082).

STF. Plenário. RE 949.297/CE, Rel. Min. Edson Fachin, redator do acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 8/02/2023 (Repercussão Geral – Tema 881) (Info 1082).

 

Aplicando esse entendimento ao caso hipotético:

• a empresa Alfa não precisa pagar a CSLL até 2007;

• assim, a decisão proferida pelo STF no RE 138284, julgado em 1992, não impactou a coisa julgada que ela tinha em seu favor. Isso porque ela foi proferida em controle incidental sem repercussão geral;

• porém, a decisão do STF prolatada em 2007 na ADI 15 impactou automaticamente a coisa julgada que a empresa tinha em seu favor. Isso porque essa decisão foi em ação direta;

• a decisão proferida pelo STF na ADI 15 interrompeu automaticamente os efeitos temporais da coisa julgada que a empresa Alfa tinha em seu favor considerando que essa decisão transitada em julgado estava em sentido contrário ao entendimento do STF firmado com eficácia vinculante e efeitos erga omnes;

• logo, a partir de 2007 (ADI 15), a CSLL voltou, em tese, a ser devida mesmo para a empresa Alfa, respeitadas a irretroatividade e a anterioridade anual.

 

Vejamos um resumo dos argumentos do Ministro Relator Luiz Roberto Barroso.

 

Coisa julgada

O instituto da coisa julgada está previsto no art. 5º, XXXVI, da CF/88:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

 

A coisa julgada está relacionada com a segurança jurídica e tem previsão constitucional, como garantia individual.

O conceito de coisa julgada pode ser encontrado no art. 6º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB):

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

(...)

§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.

 

A coisa julgada também é conceituada no CPC/2015:

 Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.

 

Princípios da isonomia tributária e da livre concorrência

O debate aqui travado, contudo, não envolve apenas a coisa julgada. Existe um outro interesse constitucionalmente protegido que também deve ser ponderado.

A Constituição Federal afirma que não é possível a instituição de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente (art. 150, II). Trata-se da materialização do princípio da igualdade em matéria tributária:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

 

Esse princípio da isonomia tributária está relacionado com o respeito à livre concorrência, sendo este um princípio da ordem econômica (art. 170, IV). Veja:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

IV - livre concorrência;

 

Desse modo, a controvérsia aqui envolvendo segurança jurídica (coisa julgada), igualdade e livre iniciativa, sendo que todos os três possuem estatura constitucional. Logo, não há hierarquia entre eles, de modo que não é possível estabelecer, em abstrato, qual deve prevalecer.

 

Etapas para resolver a ponderação de interesses constitucionalmente protegidos

Em caso de conflito entre normas dessa natureza, impõe-se a ponderação, que, como se sabe, é uma técnica de decisão que se desenvolve em três etapas:

(i) na primeira, verificam-se as normas que postulam incidência no caso;

(ii) na segunda, selecionam-se os fatos relevantes;

(iii) e, por fim, testam-se as soluções possíveis para verificar, em concreto, qual delas melhor realiza a vontade constitucional.

 

Idealmente, a ponderação deve procurar fazer concessões recíprocas, preservando o máximo possível dos direitos em disputa. No limite, porém, fazem-se escolhas e promovem-se restrições.

 

No tocante à coisa julgada, a própria legislação a flexibiliza em determinadas situações

Em relação especificamente ao presente caso, por exemplo, o art. 505, I, do CPC/2015, afirma que:

Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:

I - se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;

(...)

 

Em outras palavras, o legislador infraconstitucional definiu que a alteração no estado de fato ou de direito implica revisão das decisões transitadas em julgado.

O CPC/2015 reconhece a necessidade de adequação fática e jurídica, inclusive com efeitos retroativos, quando houver entendimento do STF em controle de constitucionalidade concentrado e difuso.

Os arts. 525, § 12; e 535, § 5º, do CPC/2015, preveem a inexigibilidade de obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional ou fundado em aplicação ou interpretação de lei ou ato normativo incompatível com a Constituição:

 Art. 525. Transcorrido o prazo previsto no art. 523 sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, independentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação.

(...)

§ 12. Para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

 

Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir:

(...)

§ 5º Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

 

Assim sendo, a segurança jurídica, resguardada pela coisa julgada, não é valor absoluto, sendo passível de flexibilização em favor de princípio que, na hipótese, cumpra mais fielmente a vontade constitucional.

 

Cláusula rebus sic stantibus

A coisa julgada não pode servir como salvo conduto imutável a fim de ser oponível eternamente pelo jurisdicionado somente porque lhe é benéfica, de modo que, uma vez modificado o contexto fático e jurídico — com o pronunciamento da Corte em repercussão geral ou em controle concentrado — os efeitos das decisões transitadas em julgado em relações de trato continuado devem se adaptar, aplicando-se a lógica da cláusula rebus sic stantibus.

A coisa julgada funciona segundo a cláusula “rebus sic stantibus”, ou seja, somente enquanto as coisas permanecerem do modo que estão. Se houver modificação na situação de fato, aquela coisa julgada deixa de produzir seus efeitos.

Conforme já decidiu o STF:

(...) A força vinculativa das sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado atua rebus sic stantibus: sua eficácia permanece enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos adotados para o juízo de certeza estabelecido pelo provimento sentencial.

A superveniente alteração de qualquer desses pressupostos:

(a) determina a imediata cessação da eficácia executiva do julgado, independentemente de ação rescisória ou, salvo em estritas hipóteses previstas em lei, de ação revisional, razão pela qual

(b) a matéria pode ser alegada como matéria de defesa em impugnação ou em embargos do executado.

STF. Plenário. RE 596663, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Teori Zavascki, , julgado em 24/09/2014.

 

Não aplicar a decisão proferida na ADI 15 geraria situações anti-isonômicas

No exemplo hipotético, a contribuinte Alfa possuía o direito de não recolher a CSLL com fundamento em decisão transitada em julgado que considerou a inconstitucionalidade incidental da Lei nº 7.689/98 (que institui a referida contribuição).

Em 2007, sobreveio o julgamento da ADI 15, na qual o STF declarou a constitucionalidade da norma, retomando-se a cobrança da contribuição.

Assim, desde o julgamento de 2007, já estava clara a posição do STF em relação à validade da Lei nº 7.689/88, interrompendo automaticamente (independentemente de ação rescisória) os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado que declararam a inconstitucionalidade da incidência da CSLL (em relação a fatos geradores posteriores a esse ano).

A situação pode assim ser resumida:

(i) há pessoas jurídicas que não pagam CSLL com respaldo em decisões transitadas em julgado;

(ii) a maioria das pessoas jurídicas permanece com a obrigação de pagar o referido tributo, já que não possui decisões transitadas em julgado favoráveis;

(iii) o STF manifestou ao longo da década de 90 e dos anos 2000 diversas vezes, em controle difuso, anteriormente à repercussão geral, pela constitucionalidade da instituição da CSLL;

(iv) apenas em 2007, na ADI 15, o Plenário proferiu acórdão vinculante e erga omnes, declarando a constitucionalidade da Lei nº 7.689/88.

 

Partindo das premissas de que o STF dá a última palavra no que se refere à constitucionalidade de leis e atos normativos, e que os pontos (i) e (ii) descritos acima geram situações anti-isonômicas, com repercussão direta na livre concorrência, é necessária a interrupção dos efeitos da coisa julgada nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo, independente do tributo que se esteja discutindo, quando a Corte se manifestar em sentido oposto, em controle concentrado ou em controle difuso, desde que de acordo com a sistemática da repercussão geral.

 

Ofensa à igualdade tributária e à livre concorrência

Caso fossem mantidas essas decisões que dispensavam o pagamento da contribuição, haveria notável discrepância passível de ofender a igualdade tributária e a livre concorrência, pois, em se tratando de relação jurídica de trato continuado, o contribuinte dispensado do pagamento da CSLL ostentaria vantagem competitiva em relação aos demais, já que não destinaria parcela dos seus recursos a essa finalidade.

 

Deve-se respeitar as garantias constitucionais tributárias da não-surpresa

Vale ressaltar, contudo, que uma decisão do STF, em controle concentrado ou em repercussão geral, que seja contrária à coisa julgada favorável ao contribuinte em relações jurídicas tributárias de trato continuado produz para ele uma norma jurídica nova. Trata-se de uma situação semelhante à criação de um novo tributo. Logo, por essa razão, essa decisão irá produzir efeitos para desconstituir a antiga coisa julgada, no entanto, respeitando-se as garantias da irretroatividade, da anterioridade anual e da noventena (no caso das contribuições para seguridade social, a anterioridade nonagesimal).

 

Tese fixada pelo STF:

1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.

2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.

STF. Plenário. RE 955.227/BA, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 8/02/2023 (Repercussão Geral – Tema 885) (Info 1082).

STF. Plenário. RE 949.297/CE, Rel. Min. Edson Fachin, redator do acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 8/02/2023 (Repercussão Geral – Tema 881) (Info 1082).

 

Modulação dos efeitos

Por maioria, o STF decidiu não fazer a modulação dos efeitos da decisão e entendeu aplicáveis as limitações constitucionais temporais ao poder de tributar.

 

Por que o STF fez essa distinção entre o controle incidental de constitucionalidade anterior e posterior à instituição do regime de repercussão geral?

Porque o STF definiu que a instituição da repercussão geral representou a consolidação do processo de abstratização do controle difuso. Vamos entender o que significou isso.

 

ABSTRATIVIZAÇÃO (OU ABSTRAÇÃO) DO CONTROLE DIFUSO

Formas de controle de constitucionalidade

O controle de constitucionalidade das normas pode ser feito de duas formas distintas:

1) de modo difuso e incidental;

2) concentrado e abstrato.

 

No sistema jurídico brasileiro, as duas modalidades convivem, razão pela qual se afirma que o Brasil adotou um sistema misto de controle de constitucionalidade.

 

1) DE MODO DIFUSO E INCIDENTAL

2) CONCENTRADO E ABSTRATO

Realizado por qualquer juiz ou Tribunal (inclusive o STF), em um caso concreto.

Há um exame da constitucionalidade de determinada norma em tese, provocado pelos legitimados para tanto, por intermédio dos meios próprios previstos na Constituição.

Produz, como regra, os seguintes efeitos:

• Inter partes;

• Não vinculante.

Produz, como regra, os seguintes efeitos:

• Erga omnes;

• Vinculante.

 

Desse modo, pela teoria tradicional, em regra, a decisão que declara incidentalmente uma lei inconstitucional produz efeitos inter partes e não vinculantes.

Após declarar a inconstitucionalidade de uma lei em controle difuso, o STF deverá comunicar essa decisão ao Senado e este poderá suspender a execução, no todo ou em parte, da lei viciada (art. 52, X):

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;

 

A decisão do Senado de suspender a execução da lei seria discricionária. Caso ele resolva fazer isso, os efeitos da decisão de inconstitucionalidade do STF, que eram inter partes, passam a ser erga omnes. Assim, pela teoria tradicional a resolução do Senado ampliaria a eficácia do controle difuso realizado pelo Supremo.

Ocorre que o STF decidiu abandonar a concepção tradicional e fez uma nova interpretação do art. 52, X, da CF/88.

 

Objetivação do controle difuso

Com a sistemática da repercussão geral, instituída pela EC nº 45/2004 e regulamentada pela Lei nº 11.418/2006, o processo de objetivação do controle difuso se tornou ainda mais claro.

O CPC/2015 reforçou essa ideia.

Com efeito, o art. 927, III, do CPC/2015 afirma que:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

(...)

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

(...)

 

Assim, ficou expresso que o Poder Judiciário também está vinculado às decisões do STF proferidas em recurso extraordinário com repercussão geral.

O art. 988, § 5º, II, do CPC/2015 afirma ainda ser cabível reclamação para garantia de observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral, quando já esgotadas as instâncias ordinárias:

Art. 988 (...)

§ 5º É inadmissível a reclamação:

(...)

II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias.

 

Desse modo, o que se percebe é que as decisões proferidas em recursos extraordinários com repercussão geral e as proferidas em controle concentrado têm adquirido gradativamente os mesmos efeitos, seja pela atuação do próprio Poder Judiciário ou do Poder Legislativo.

Trata-se do fenômeno da objetivação do controle difuso.

Sobre o tema, esclarece a Professora Ana Paula de Barcellos:

“Na realidade, e como já referido, há em curso no país um processo de aproximação dos mecanismos de controle difuso e incidental relativamente àqueles típicos do controle concentrado e abstrato, e essa aproximação se dá, principalmente, por meio do que se denomina ‘objetivação’ do controle difuso e incidental, isto é, a atribuição de efeitos gerais e em alguns casos vinculantes às decisões proferidas em sede de controle difuso e incidental”. (Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Gen/Forense, p. 677)

 

Mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88

A declaração de inconstitucionalidade, em sede de recurso extraordinário com repercussão geral, possui os mesmos efeitos vinculantes e eficácia erga omnes atribuídos às ações de controle abstrato.

A resolução do Senado prevista no art. 52, X, da CF/88, possui a finalidade apenas de publicizar as decisões de inconstitucionalidade, não configurando requisito para a atribuição de efeitos vinculantes erga omnes.

Assim, houve uma mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88, para as decisões proferidas em recurso extraordinário com repercussão geral.

Essa nova interpretação do art. 52, X, da CF/88 é relevantíssima, sobretudo em matéria tributária. Isso porque, atualmente, a Administração Pública não se vincula automaticamente às decisões proferidas em repercussão geral e, em sendo ela que constitui os créditos tributários, é bastante comum que autuações sejam feitas mesmo após o STF ter se manifestado pela inconstitucionalidade do tributo em sede de repercussão geral.

 

Em suma, o que decidiu o STF neste ponto?

A declaração de inconstitucionalidade, em sede de recurso extraordinário com repercussão geral, também possui os efeitos vinculantes e eficácia erga omnes, da mesma forma que o julgamento de uma ação de controle abstrato de constitucionalidade.

Se o STF, em recurso extraordinário sob a sistemática da repercussão geral, decidir que determinada lei é inconstitucional a resolução do Senado (art. 52, X, da CF/88), possuirá a finalidade apenas de dar publicidade para a decisão. Isso significa que, mesmo antes dessa resolução ser eventualmente editada, a decisão do STF já possui efeitos vinculantes erga omnes.

Nas exatas palavras do Ministro Relator:

“Trata-se, portanto, de passo rumo à consolidação do processo de abstratização do controle difuso, resultando em uma maior integridade à teoria de precedentes, bem como no aprimoramento do controle de constitucionalidade brasileiro.”

 

 

 


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