Segundo os autos, a situação
concreta, com adaptações, foi a seguinte:
A Band tinha um contrato com o
humorista Danilo Gentili para que ele apresentasse o programa de televisão
“Agora é Tarde”, exibido na Band TV, de terças a sextas, por volta da meia
noite.
O referido contrato teve início em
01/01/2013 e previsão de término em 31/12/2014, com possibilidade de renovação
e direito de preferência. Além disso, a Band celebrou contratos com os
humoristas Léo Lins e Murilo Couto para que eles também participassem do
referido programa.
Em dezembro de 2013, ou seja, ainda
durante a vigência do contrato, Danilo noticiou à imprensa que havia recebido
convite do SBT para apresentar um programa. Danilo declarou que deixaria a Band
e que iria trabalhar no SBT levando toda a equipe do programa “Agora é Tarde”
consigo.
Assim que a Band tomou conhecimento
dos fatos, enviou notificação para o SBT com a finalidade de demonstrar a
vigência do contrato. Mesmo com a notificação, o SBT realizou a contratação de
Danilo e dos demais integrantes do programa “Agora é Tarde” e estreou um
programa semelhante, chamado “The Noite com Danilo Gentili”.
Diante do cenário acima, a Band propôs ação de indenização
contra o SBT. Sustentou que a ré aliciou os integrantes do programa “Agora é
Tarde”, incidindo na previsão do art. 608 do Código Civil:
Art. 608. Aquele que aliciar pessoas
obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a
importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de
caber durante dois anos.
O juiz julgou o pedido parcialmente
procedente condenando o SBT a pagar a quantia de R$ 3.684.000,00, atualizada
monetariamente e com juros desde 10 de março de 2014.
O Tribunal de Justiça de São Paulo
manteve a sentença.
Ainda inconformado, o SBT interpôs
recurso especial, sustentando que o aliciamento não foi caracterizado e que foi
dada interpretação equivocada ao art. 608 do CC. Alegou que a aliciação
pressupõe uma atividade instigadora exclusiva do aliciador em face do aliciado.
No caso, o apresentador já estaria insatisfeito com a Band, de modo notório.
O STJ deu provimento ao recurso do
SBT?
SIM.
O STJ discutiu, no recurso, o
âmbito da responsabilidade de terceiro que oferece proposta de contratação a
prestador de serviço durante a vigência de negócio jurídico celebrado com
emissora de televisão concorrente e a consequente resilição do contrato em
curso.
Responsabilização civil de
terceiro ofensor por lesão a contrato alheio
Inicialmente, é importante
esclarecer que, em tese, é possível a responsabilização civil de
terceiro ofensor por lesão a contrato alheio. Assim, um terceiro, embora alheio
ao contrato (não é parte nesse ajuste), pode nele interferir indevidamente e,
neste caso, pode ser responsabilizado por isso.
A responsabilização, em tais
situações, é possível como desdobramento da função social do contrato e da
boa-fé objetiva.
Nesse contexto, a doutrina e a
jurisprudência afirmam que é possível a responsabilização de terceiro por
quebra do contrato envolvendo outras pessoas.
Trata-se daquilo que ficou
conhecido como teoria do terceiro ofensor, terceiro cúmplice ou terceiro
interferente.
Na doutrina, Antônio Junqueira de
Azevedo afirma que o terceiro, embora não seja parte em um contrato, não pode
se comportar como se o ajuste não existisse (Estudos e Pareceres de Direito
Privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 142).
Temos, inclusive, uma recente
decisão da 3ª Turma do STJ no qual o tema foi analisado:
Os contratos são protegidos por deveres de confiança, os quais
se estendem a terceiros em razão da cláusula de boa-fé objetiva.
Diante do reconhecimento e da ampliação de novas áreas de
proteção à pessoa humana, resultantes da nova realidade social e da ascensão de
novos interesses, surgem também novas hipóteses de violações de direitos, o que
impõe sua salvaguarda pelo ordenamento jurídico.
Assim, viu-se a necessidade de analisar o comportamento daquele
terceiro que interfere ou induz o inadimplemento de um contrato sob o prisma de
uma proteção extracontratual, do capitalismo ético, da função social do
contrato e da proteção das estruturas de interesse da sociedade, tais como a
honestidade e a tutela da confiança.
De acordo com a Teoria do Terceiro Cúmplice terceiro ofensor
também está sujeito à eficácia transubjetiva das obrigações, haja vista que seu
comportamento não pode interferir indevidamente na relação, perturbando o
normal desempenho da prestação pelas partes, sob pena de se responsabilizar
pelos danos decorrentes de sua conduta.
A responsabilização de um terceiro, alheio à relação contratual,
decorre da sua não funcionalização sob a perspectiva social da autonomia
contratual, incorporando como razão prática a confiança e o desenvolvimento
social na conduta daqueles que exercem sua liberdade.
Uma das hipóteses em que a conduta condenável do terceiro pode
gerar sua responsabilização é a indução interferente ilícita, na qual o
terceiro imiscui-se na relação contratual mediante informações ou conselhos com
o intuito de estimular uma das partes a não cumprir seus deveres contratuais.
STJ. 3ª Turma. REsp 1895272/DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze,
julgado em 26/4/2022 (Info 734).
Previsão do art. 608 do CC
e sua correta interpretação
Vejamos novamente a redação do art. 608 do Código Civil:
Vale
ressaltar, contudo, que a interpretação do art. 608 do Código Civil deve levar em consideração o
comportamento de mercado dos concorrentes envolvidos no ramo de
atividade em questão.
Se,
por um lado, a teoria do terceiro ofensor reforça a função social do contrato e
os deveres decorrentes da boa-fé objetiva, por outro prisma, deve-se ter algum cuidado
com a aplicação literal do art. 608 do Código Civil. Isso porque eventual
interpretação literal significaria impor a toda a coletividade o dever de nunca
celebrar negócios jurídicos com pessoas que estivessem no curso de contratos
anteriormente assumidos.
A interpretação do art. 608 do Código Civil de 2002,
que prevê a possibilidade de responsabilização de terceiro em casos de
aliciamento de prestadores de serviço, deve levar em consideração o
comportamento de mercado dos concorrentes envolvidos no ramo de atividade
analisado.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.023.942-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em
25/10/2022 (Info Especial 9).
O art. 608 do CC busca
combater práticas desleais
A doutrina brasileira e a
jurisprudência do STJ admitem a responsabilização de terceiro pela quebra de
contrato em virtude dos postulados da função social do contrato, dos deveres
decorrentes da boa-fé objetiva, da prática de concorrência desleal e da
responsabilidade por ato ilícito ou abusivo.
A oferta de proposta mais vantajosa a
artista contratado por emissora concorrente não configura automaticamente
prática de aliciamento de prestador de serviço, haja vista a ausência de
qualquer conduta voltada à concorrência desleal ou à violação dos deveres
anexos à boa-fé objetiva, sem que se esteja com isso a desconsiderar a função
social externa do contrato.
Voltando ao caso concreto
Nas exatas palavras do Ministro Relator:
“ (...) na
conduta da recorrente em contratar ou apresentar oferta de contratação a
artista que mantinha relação jurídica com emissora de televisão concorrente,
não se pode reconhecer a prática de aliciamento a incidir o disposto no art.
608 do Código Civil de 2002, visto que ausente qualquer indício da prática de concorrência
desleal ou de violação dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva e da função
social do contrato (...)
Assim, a
oferta de proposta mais vantajosa a artista contratado por emissora concorrente
não configura automaticamente prática de aliciamento de prestador de serviço,
haja vista a ausência de qualquer conduta voltada à concorrência desleal ou à
violação dos deveres anexos à boa-fé objetiva, sem que se esteja com isso a
desconsiderar a função social externa do contrato.
Não se
pode afirmar que a conduta da recorrente seria parasitária ou que teria se
utilizado do investimento da concorrente no referido profissional pelo fato de
a proposta ter sido apresentada na vigência do contrato exatamente porque
parece ser da natureza da concorrência no mercado de entretenimento o interesse
por artistas que estejam em voga, o que inevitavelmente pode decorrer da circunstância
de sua atuação em outra emissora.
A
propósito, exigir esse tipo de cooperação entre agentes econômicos que atuam em
mercados altamente competitivos vai de encontro a toda a lógica econômica e
concorrencial que permeia as relações empresariais.”
Dispositivo
Ante o exposto, a 3ª Turma do STJ
deu provimento ao recurso especial para afastar a condenação do SBT ao
pagamento de indenização à Band com fundamento no art. 608 do Código Civil.