Imagine a seguinte situação hipotética:
Uma empresa realizou uma construção sobre área de mangue, a
poucos metros das margens de um rio, em área de proteção permanente, causando
dano ambiental.
O IBAMA ajuizou ação civil pública contra a empresa pedindo:
a) a recuperação da área mediante Plano de Recuperação de
Áreas Degradadas (PRAD);
b) indenização pecuniária pelos danos ambientais causados.
A sentença julgou os
pedidos parcialmente procedentes nos seguintes termos:
• ordenou a demolição da construção no prazo de 90 dias a
contar do trânsito em julgado;
• condenou a ré a recuperar a área mediante PRAD a ser
aprovado pelo IBAMA, devendo ser implementado no prazo de 120 dias após o
trânsito em julgado;
• indeferiu o pedido de indenização em razão da recuperação
da área degradada.
O IBAMA recorreu pedindo a condenação na obrigação de pagar
a indenização, mas o TRF4 manteve a sentença afirmando que:
Havendo possibilidade de
recuperação da área, é possível concluir que a restauração da área degradada é
suficiente para reparar o dano ambiental, não sendo possível a fixação de
indenização pecuniária, visto que a demolição da construção, a elaboração de
PRAD e a restauração da área, já se revelam medidas suficientemente gravosas à
ré.
O IBAMA interpôs recurso especial pedindo a condenação da ré
ao pagamento da indenização pelos danos intercorrentes (danos interinos) até a
efetiva recuperação da área degradada, que não serão indenizados com a mera
recomposição através de PRAD.
O STJ deu provimento ao recurso do IBAMA?
SIM.
O STJ menciona a existência de três espécies de dano
ambiental:
ESPÉCIES DE DANO
AMBIENTAL |
||
1) Dano em si |
2) Dano
remanescente (residual) |
3) Dano interino
(intercorrente) |
Reparável preferencialmente
pela restauração do ambiente ao estado anterior. |
É um dano residual, perene,
definitivo, permanente, que se protrai no tempo mesmo após os esforços de
recuperação in natura. |
É um dano intercorrente,
intermediário, temporário, provisório, que ocorre entre a ocorrência da lesão
em si e a reparação integral, haja ou não dano remanescente. |
Tem por objetivo promover o
retorno do status quo. |
O dano residual compensa a
natureza pela impossibilidade de retorná-la ao estado anterior à lesão. |
O dano intercorrente compensa a
natureza pelos prejuízos causados entre o ato degradante e sua reparação. |
Dano interino (intercorrente)
No caso do dano interino, sua causa é a lesão experimentada pelo meio ambiente
desde o momento da lesão/dano em si (tempo passado) até sua reparação (tempo
futuro). Nessas hipóteses, pode perfeitamente haver dano interino indenizável,
ainda que não se vislumbre dano remanescente.
O dano interino se configura pela diminuição temporária do
valor do bem ambiental (nas diversas manifestações desse valor de uso). É uma
compensação da sociedade pelo período que deixou de gozar dos serviços e
recursos ecológicos, inclusive a título de reserva e precaução.
Nesse sentido:
(...) 1. Cuidam os autos de Ação Civil Pública proposta com o
fito de obter responsabilização por danos ambientais causados pelo desmatamento
de área de mata nativa. A instância ordinária considerou provado o dano
ambiental e condenou o degradador a repará-lo; porém, julgou improcedente o
pedido indenizatório.
2. A jurisprudência do STJ está firmada no sentido de que a
necessidade de reparação integral da lesão causada ao meio ambiente permite a
cumulação de obrigações de fazer e indenizar. Precedentes da Primeira e Segunda
Turmas do STJ.
3. A restauração in natura nem sempre é suficiente para reverter
ou recompor integralmente, no terreno da responsabilidade civil, o dano
ambiental causado, daí não exaurir o universo dos deveres associados aos
princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum.
4. A reparação ambiental deve ser feita da forma mais completa
possível, de modo que a condenação a recuperar a área lesionada não exclui o
dever de indenizar, sobretudo pelo dano que permanece entre a sua ocorrência e
o pleno restabelecimento do meio ambiente afetado (= dano interino ou
intermediário), bem como pelo dano moral coletivo e pelo dano residual (= degradação
ambiental que subsiste, não obstante todos os esforços de restauração).
5. A cumulação de obrigação de fazer, não fazer e pagar não
configura bis in idem, porquanto a indenização não é para o dano
especificamente já reparado, mas para os seus efeitos remanescentes, reflexos
ou transitórios, com destaque para a privação temporária da fruição do bem de
uso comum do povo, até sua efetiva e completa recomposição, assim como o
retorno ao patrimônio público dos benefícios econômicos ilegalmente auferidos.
(...)
STJ. 2ª Turma. REsp 1.180.078/MG, Rel. Min. Herman Benjamin,
julgado em 2/12/2010.
Essa classificação dos danos ambientais já foi trabalhada
anteriormente pela doutrina:
“(...) a reparação integral do
dano ao meio ambiente deve compreender não apenas o prejuízo causado ao bem ou
recurso ambiental atingido, como também, na lição de Helita Barreira Custódio,
toda a extensão dos danos produzidos em consequência do fato danoso, o que
inclui os efeitos ecológicos e ambientais da agressão inicial a um bem
ambiental corpóreo que estiverem no mesmo encadeamento causal, como, por
exemplo, a destruição de espécimes, habitats, e ecossistemas inter-relacionados
com o meio afetado; os denominados danos interinos, vale dizer, as perdas de
qualidade ambiental havidas no interregno entre a ocorrência do prejuízo e a
efetiva recomposição do meio degradado; os danos futuros que se apresentarem
como certos, os danos irreversíveis à qualidade ambiental e os danos morais
coletivos resultantes da agressão a determinado bem ambiental.” (MIRRA, Álvaro
Luiz Valery. Ação Civil Pública e a Reparação do Dano Ambiental. 2ª ed.,
São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004, fl. 314).
“E se a restauração integral do
meio ambiente lesado, com a consequente reconstituição completa do equilíbrio
ecológico, depender de lapso de tempo prolongado, necessário que se compense
tal perda: é o chamado lucro cessante ambiental, também conhecido como dano
interino ou intercorrente.” (FREITAS, Cristina Godoy de Araújo. Valoração do
dano ambiental: algumas premissas. In: Revista do Ministério Público do Estado
de Minas Gerais. Edição Especial Meio Ambiente: A Valoração de Serviços e Danos
Ambientais, 2011, p. 11).
É necessário que o magistrado e os Tribunais analisem a ocorrência,
ou não, de todas as espécies de dano a fim de se evitar a premiação do “vilipendiador serelepe”:
(...) Exatamente por isso e também para não premiar o
vilipendiador serelepe (que tudo arrasa de um só golpe), a condição de completa
desolação ecológica em vez de criar direito de ficar, usar, explorar e ser
imitado por terceiros, impõe dever propter rem de sair, demolir e recuperar,
além do de pagar indenização por danos ambientais causados e restituir
eventuais benefícios econômicos diretos e indiretos auferidos (=
mais-valia-ambiental) com a degradação e a usurpação dos serviços
ecossistêmicos associados ao bem privado ou público - de uso comum do povo, de
uso especial ou dominical. (...)
STJ. 2ª Turma. REsp 1.782.692/PB, Rel. Min. Herman Benjamin,
julgado em 13/8/2019.
Cumulação da reparação do dano em sim com a
indenização do dano interino
É perfeitamente possível e lógico que haja dano interino
mesmo com a integral reparação do meio ambiente degradado, seja essa reparação
in natura ou mediante indenização. As parcelas e suas causas não se confundem.
Dano intercorrente, em regra, estará presente
Se houver a reparação integral primária in natura, o dano
residual pode vir, ou não, a incidir. No entanto, dificilmente se vislumbrará
hipótese de não incidência do dano ambiental intercorrente.
Em regra, o dano ambiental intercorrente existirá, pela
própria lógica das coisas:
i) havendo o dano ambiental, ele deve ser integralmente
reparado;
ii) a reparação, ainda que in natura e in loco, somente ocorrerá
em certo momento futuro;
iii) no ínterim, o dano já existiu e permanecerá existindo
até a reparação integral;
iv) como resultado, o dano transitório deverá ser reparado
pelo período da degradação ambiental até o da futura e antevista reparação (in
natura ou pecuniária).
Em outra perspectiva, a reparação dos danos transitórios não
é senão uma forma de internalização, temporalmente diferida, dos custos dos
serviços e recursos ambientais ilegalmente expropriados da coletividade pelo
particular, que deles usufruiu sem qualquer direito. Trata-se de compensação
pelo período em que o ambiente natural degradado deixará de estar a serviço não
só do homem, mas do ecossistema.
Configurada a degradação ambiental, impõe-se a reparação
integral do dano, tanto daquele já experimentado quanto dos que são certos de
existirem até o momento da reparação integral, dê-se esta na forma primária ou
complementar. Não reste dúvida: o dano intercorrente é certo e atual.
O simples fato de se afirmar que afirmar que a restauração
será completa não é suficiente para afastar a indenização pelos danos
intercorrentes
Para que se afastasse os danos interinos, a restauração
teria que ser completa e imediata. Isso deve ser refletido sobre dois aspectos.
Primeiro, para o dano residual, esse termo deve ser aferido
em relação às medidas de restauração. Isto é: concluída a implementação das
medidas, o dano residual será indenizável se a restauração não for imediata
após esse marco.
Para o dano intercorrente, porém, esse marco não é o do
término da restauração, mas sim o da ocorrência do dano. Portanto, o parâmetro
"imediato", neste caso, de dano ambiental intercorrente, é aquele
medido entre o evento degradante e o término das medidas restaurativas.
Verificada a lesão ambiental, o dano intercorrente somente
pode ser afastado se for temporalmente irrelevante, mediante justificativa
expressa do julgador fundada na prova dos autos. A reparabilidade imediata
(após as medidas de recuperação) e mesmo que completa da lesão não afasta o dano
já experimentado no período entre a degradação e sua restauração.
Voltando ao caso concreto:
A reparação do dano em si será feita pela demolição da obra
e pela execução do plano de recuperação (PRAD). Ocorre que isso só será feito
dias após o trânsito em julgado. Isso significa que durante anos o meio
ambiente continuará sendo degradado. Esses danos intercorrentes devem ser
indenizados.
Em suma:
O cumprimento da obrigação de reparar integralmente o
dano ambiental (in natura ou pecuniariamente) não afasta a obrigação de
indenizar os danos ambientais interinos.
STJ. 2ª
Turma. REsp 1.845.200-SC, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 16/8/2022 (Info
Especial 8).