Dizer o Direito

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Quais são as espécies de danos ambientais? O que são danos ambientais interinos? Eles podem ser cumulados?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Uma empresa realizou uma construção sobre área de mangue, a poucos metros das margens de um rio, em área de proteção permanente, causando dano ambiental.

O IBAMA ajuizou ação civil pública contra a empresa pedindo:

a) a recuperação da área mediante Plano de Recuperação de Áreas Degradadas (PRAD);

b) indenização pecuniária pelos danos ambientais causados.

 

A sentença  julgou os pedidos parcialmente procedentes nos seguintes termos:

• ordenou a demolição da construção no prazo de 90 dias a contar do trânsito em julgado;

• condenou a ré a recuperar a área mediante PRAD a ser aprovado pelo IBAMA, devendo ser implementado no prazo de 120 dias após o trânsito em julgado;

• indeferiu o pedido de indenização em razão da recuperação da área degradada.

 

O IBAMA recorreu pedindo a condenação na obrigação de pagar a indenização, mas o TRF4 manteve a sentença afirmando que:

Havendo possibilidade de recuperação da área, é possível concluir que a restauração da área degradada é suficiente para reparar o dano ambiental, não sendo possível a fixação de indenização pecuniária, visto que a demolição da construção, a elaboração de PRAD e a restauração da área, já se revelam medidas suficientemente gravosas à ré.

 

O IBAMA interpôs recurso especial pedindo a condenação da ré ao pagamento da indenização pelos danos intercorrentes (danos interinos) até a efetiva recuperação da área degradada, que não serão indenizados com a mera recomposição através de PRAD.

 

O STJ deu provimento ao recurso do IBAMA?

SIM.

O STJ menciona a existência de três espécies de dano ambiental:

ESPÉCIES DE DANO AMBIENTAL

1) Dano em si

2) Dano remanescente (residual)

3) Dano interino

(intercorrente)

Reparável preferencialmente pela restauração do ambiente ao estado anterior.

É um dano residual, perene, definitivo, permanente, que se protrai no tempo mesmo após os esforços de recuperação in natura.

É um dano intercorrente, intermediário, temporário, provisório, que ocorre entre a ocorrência da lesão em si e a reparação integral, haja ou não dano remanescente.

Tem por objetivo promover o retorno do status quo.

O dano residual compensa a natureza pela impossibilidade de retorná-la ao estado anterior à lesão.

O dano intercorrente compensa a natureza pelos prejuízos causados entre o ato degradante e sua reparação.

 

Dano interino (intercorrente)

No caso do dano interino, sua causa é a lesão experimentada pelo meio ambiente desde o momento da lesão/dano em si (tempo passado) até sua reparação (tempo futuro). Nessas hipóteses, pode perfeitamente haver dano interino indenizável, ainda que não se vislumbre dano remanescente.

O dano interino se configura pela diminuição temporária do valor do bem ambiental (nas diversas manifestações desse valor de uso). É uma compensação da sociedade pelo período que deixou de gozar dos serviços e recursos ecológicos, inclusive a título de reserva e precaução.

Nesse sentido:

(...) 1. Cuidam os autos de Ação Civil Pública proposta com o fito de obter responsabilização por danos ambientais causados pelo desmatamento de área de mata nativa. A instância ordinária considerou provado o dano ambiental e condenou o degradador a repará-lo; porém, julgou improcedente o pedido indenizatório.

2. A jurisprudência do STJ está firmada no sentido de que a necessidade de reparação integral da lesão causada ao meio ambiente permite a cumulação de obrigações de fazer e indenizar. Precedentes da Primeira e Segunda Turmas do STJ.

3. A restauração in natura nem sempre é suficiente para reverter ou recompor integralmente, no terreno da responsabilidade civil, o dano ambiental causado, daí não exaurir o universo dos deveres associados aos princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum.

4. A reparação ambiental deve ser feita da forma mais completa possível, de modo que a condenação a recuperar a área lesionada não exclui o dever de indenizar, sobretudo pelo dano que permanece entre a sua ocorrência e o pleno restabelecimento do meio ambiente afetado (= dano interino ou intermediário), bem como pelo dano moral coletivo e pelo dano residual (= degradação ambiental que subsiste, não obstante todos os esforços de restauração).

5. A cumulação de obrigação de fazer, não fazer e pagar não configura bis in idem, porquanto a indenização não é para o dano especificamente já reparado, mas para os seus efeitos remanescentes, reflexos ou transitórios, com destaque para a privação temporária da fruição do bem de uso comum do povo, até sua efetiva e completa recomposição, assim como o retorno ao patrimônio público dos benefícios econômicos ilegalmente auferidos. (...)

STJ. 2ª Turma. REsp 1.180.078/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 2/12/2010.

 

Essa classificação dos danos ambientais já foi trabalhada anteriormente pela doutrina:

“(...) a reparação integral do dano ao meio ambiente deve compreender não apenas o prejuízo causado ao bem ou recurso ambiental atingido, como também, na lição de Helita Barreira Custódio, toda a extensão dos danos produzidos em consequência do fato danoso, o que inclui os efeitos ecológicos e ambientais da agressão inicial a um bem ambiental corpóreo que estiverem no mesmo encadeamento causal, como, por exemplo, a destruição de espécimes, habitats, e ecossistemas inter-relacionados com o meio afetado; os denominados danos interinos, vale dizer, as perdas de qualidade ambiental havidas no interregno entre a ocorrência do prejuízo e a efetiva recomposição do meio degradado; os danos futuros que se apresentarem como certos, os danos irreversíveis à qualidade ambiental e os danos morais coletivos resultantes da agressão a determinado bem ambiental.” (MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação Civil Pública e a Reparação do Dano Ambiental. 2ª ed., São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004, fl. 314).

 

“E se a restauração integral do meio ambiente lesado, com a consequente reconstituição completa do equilíbrio ecológico, depender de lapso de tempo prolongado, necessário que se compense tal perda: é o chamado lucro cessante ambiental, também conhecido como dano interino ou intercorrente.” (FREITAS, Cristina Godoy de Araújo. Valoração do dano ambiental: algumas premissas. In: Revista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Edição Especial Meio Ambiente: A Valoração de Serviços e Danos Ambientais, 2011, p. 11).

 

É necessário que o magistrado e os Tribunais analisem a ocorrência, ou não, de todas as espécies de dano a fim de se evitar a premiação do “vilipendiador serelepe”:

(...) Exatamente por isso e também para não premiar o vilipendiador serelepe (que tudo arrasa de um só golpe), a condição de completa desolação ecológica em vez de criar direito de ficar, usar, explorar e ser imitado por terceiros, impõe dever propter rem de sair, demolir e recuperar, além do de pagar indenização por danos ambientais causados e restituir eventuais benefícios econômicos diretos e indiretos auferidos (= mais-valia-ambiental) com a degradação e a usurpação dos serviços ecossistêmicos associados ao bem privado ou público - de uso comum do povo, de uso especial ou dominical. (...)

STJ. 2ª Turma. REsp 1.782.692/PB, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 13/8/2019.

 

Cumulação da reparação do dano em sim com a indenização do dano interino

É perfeitamente possível e lógico que haja dano interino mesmo com a integral reparação do meio ambiente degradado, seja essa reparação in natura ou mediante indenização. As parcelas e suas causas não se confundem.

 

Dano intercorrente, em regra, estará presente

Se houver a reparação integral primária in natura, o dano residual pode vir, ou não, a incidir. No entanto, dificilmente se vislumbrará hipótese de não incidência do dano ambiental intercorrente.

Em regra, o dano ambiental intercorrente existirá, pela própria lógica das coisas:

i) havendo o dano ambiental, ele deve ser integralmente reparado;

ii) a reparação, ainda que in natura e in loco, somente ocorrerá em certo momento futuro;

iii) no ínterim, o dano já existiu e permanecerá existindo até a reparação integral;

iv) como resultado, o dano transitório deverá ser reparado pelo período da degradação ambiental até o da futura e antevista reparação (in natura ou pecuniária).

 

Em outra perspectiva, a reparação dos danos transitórios não é senão uma forma de internalização, temporalmente diferida, dos custos dos serviços e recursos ambientais ilegalmente expropriados da coletividade pelo particular, que deles usufruiu sem qualquer direito. Trata-se de compensação pelo período em que o ambiente natural degradado deixará de estar a serviço não só do homem, mas do ecossistema.

Configurada a degradação ambiental, impõe-se a reparação integral do dano, tanto daquele já experimentado quanto dos que são certos de existirem até o momento da reparação integral, dê-se esta na forma primária ou complementar. Não reste dúvida: o dano intercorrente é certo e atual.

 

O simples fato de se afirmar que afirmar que a restauração será completa não é suficiente para afastar a indenização pelos danos intercorrentes

Para que se afastasse os danos interinos, a restauração teria que ser completa e imediata. Isso deve ser refletido sobre dois aspectos.

Primeiro, para o dano residual, esse termo deve ser aferido em relação às medidas de restauração. Isto é: concluída a implementação das medidas, o dano residual será indenizável se a restauração não for imediata após esse marco.

Para o dano intercorrente, porém, esse marco não é o do término da restauração, mas sim o da ocorrência do dano. Portanto, o parâmetro "imediato", neste caso, de dano ambiental intercorrente, é aquele medido entre o evento degradante e o término das medidas restaurativas.

Verificada a lesão ambiental, o dano intercorrente somente pode ser afastado se for temporalmente irrelevante, mediante justificativa expressa do julgador fundada na prova dos autos. A reparabilidade imediata (após as medidas de recuperação) e mesmo que completa da lesão não afasta o dano já experimentado no período entre a degradação e sua restauração.

 

Voltando ao caso concreto:

A reparação do dano em si será feita pela demolição da obra e pela execução do plano de recuperação (PRAD). Ocorre que isso só será feito dias após o trânsito em julgado. Isso significa que durante anos o meio ambiente continuará sendo degradado. Esses danos intercorrentes devem ser indenizados.

 

Em suma:

O cumprimento da obrigação de reparar integralmente o dano ambiental (in natura ou pecuniariamente) não afasta a obrigação de indenizar os danos ambientais interinos.

STJ. 2ª Turma. REsp 1.845.200-SC, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 16/8/2022 (Info Especial 8).

 

 

 

 

 


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