Imagine a seguinte situação hipotética:
Em 26/02/2016, João ajuizou ação de indenização contra a
imobiliária Alfa Beta argumentando que adquiriu um apartamento da ré, mas que
ela teria demorado para entregar todos os documentos relativos ao imóvel.
O autor alegou que se tratava de relação de consumo e, por isso, pediu
a inversão do ônus da prova, na forma do art. 6º, VIII, do CDC.
A imobiliária contestou afirmando que o atraso na entrega do
imóvel ocorreu por culpa exclusiva do autor, que teve dificuldades na conclusão
do financiamento bancário para quitação do apartamento.
Qual o momento de inversão do ônus da prova? Trata-se de regra de
julgamento ou de regra de procedimento (de instrução)?
Trata-se de regra de instrução, devendo a decisão judicial que
determiná-la ser proferida preferencialmente na fase de saneamento do processo
ou, pelo menos, assegurar à parte a quem não incumbia inicialmente o encargo a
reabertura de oportunidade para manifestar-se nos autos. Nesse sentido:
A inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, do CDC, é
regra de instrução e não regra de julgamento, motivo pelo qual a decisão
judicial que a determina deve ocorrer antes da etapa instrutória, ou quando
proferida em momento posterior, garantir a parte a quem foi imposto o ônus a
oportunidade de apresentar suas provas.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.286.273-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado
em 08/06/2021 (Info 701).
Voltando ao caso hipotético:
O juiz proferiu decisão de saneamento deferindo a inversão
do ônus da prova pedido pelo autor. Essa decisão interlocutória foi prolatada
na forma do art. 357, III, do CPC:
Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das
hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de
organização do processo:
(...)
III - definir a distribuição do ônus
da prova, observado o art. 373;
A decisão que inverteu o ônus da prova foi publicada no
Diário de Justiça Eletrônico no dia 14/6/2016 (terça-feira), considerando-se
publicada no dia 15/6/2016 (quarta-feira), nos termos do § 2º do art. 224 do
CPC:
Art. 224. (...)
§ 2º Considera-se como data de
publicação o primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização da informação no
Diário da Justiça eletrônico.
(...)
Petição pedindo ajustes e esclarecimentos
No prazo de 5 dias após essa decisão, a imobiliária ré apresentou
petição na qual requereu ajustes e esclarecimentos da referida decisão alegando
a não caracterização dos requisitos legais para a inversão do ônus da prova em
seu desfavor. Essa petição foi formulada com base no art. 357, § 1º do CPC:
Art. 357 (...)
§ 1º Realizado o saneamento, as partes
têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de
5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável.
Em decisão publicada em 30/6/2016, o juiz ratificou a decisão
anteriormente tomada.
Agravo de instrumento
Em 27/07/2016, ou seja, 15 dias úteis depois da segunda decisão
(30/06/2016), a vendedora interpôs agravo de instrumento questionando os
fundamentos contidos na primeira decisão que inverteu o ônus da prova (e que
foi ratificada na segunda).
O Desembargador, monocraticamente, não conheceu do agravo de
instrumento afirmando que o recurso foi intempestivo.
Para o Desembargador, o prazo para o agravo de instrumento começou
com a publicação da primeira decisão (15/6/2016), não tendo o pedido de
ajustes/esclarecimentos influenciado no prazo para o recurso. O requerimento de
ajustes/esclarecimentos possui o caráter de mero pedido de reconsideração.
Inconformada, a ré interpôs agravo regimental alegando que o prazo
para o agravo de instrumento deve ser contado a partir da publicação da decisão
que respondeu ao pleito de ajustes/esclarecimentos (30/06/2016). Argumentou que
a decisão publicada em 30/06/2016 é a que efetivamente promoveu o saneamento do
processo, de modo que o prazo para a interposição do agravo de instrumento
deveria ser contado a partir dela.
O agravo regimental foi desprovido pelo TJ.
A ré interpôs recurso especial insistindo na tese de que a decisão
de saneamento somente se torna estável após a realização dos esclarecimentos e
ajustes previstos no art. 357, § 1º, do CPC.
O STJ concordou com os argumentos da incorporadora ré? Esse agravo
de instrumento é tempestivo?
SIM.
Diante da possibilidade de interposição de agravo de instrumento
contra a decisão de saneamento, surgem incertezas sobre o procedimento a ser
perfilhado.
Se a parte aguarda o prazo para a decisão de aclaramento, a
fim de alcançar a estabilidade da decisão, tornando-se definitiva, corre o
risco de ver seu agravo de instrumento julgado intempestivo, pois dificilmente
o pedido seria apreciado antes do término do prazo para interposição do
recurso.
Por outro lado, se interpõe agravo de instrumento e
simultaneamente requer esclarecimentos ou ajustes quanto, por exemplo, à
distribuição do ônus da prova, sendo consequentemente proferida nova decisão,
com acréscimo de argumentos ou alteração substancial do primeiro julgado,
poderão surgir dúvidas quanto à necessidade de novo agravo de instrumento, ou
em relação à prejudicialidade do primeiro recurso.
Requerimento do art. 357, § 1º do CPC não é um mero
pedido de reconsideração
Frente a esse cenário, não se pode considerar o requerimento
do art. 357, § 1º, do CPC/2015 como um mero pedido de reconsideração. O pedido
de reconsideração é aquele dirigido ao magistrado, em que se pede o reexame de
uma questão já resolvida, a fim de que lhe seja conferida outra solução. Em
regra, a reconsideração do juiz decorrerá da própria sistemática do agravo, que
permite ao magistrado o exercício da retratação (art. 1.018, § 1º, do
CPC/2015). É pacífico o entendimento de que o pedido de reconsideração em nada
modifica a contagem do prazo recursal.
No caso do art. 357, § 1º do CPC existe a previsão expressa
de que a parte peça esclarecimentos ou solicite ajustes, não sendo um pedido de
reconsideração sem respaldo legal.
A estabilidade da decisão de saneamento só é alcançada
após o prazo de 5 dias
O CPC/2015 trouxe uma inovação no art. 357, § 1º, porque com
a previsão desse dispositivo a estabilidade da decisão de saneamento somente
ocorre após o decurso do prazo de 5 dias para manifestação das partes quanto a
esclarecimentos ou ajustes.
Equiparar o pleito de esclarecimentos a um pedido de
reconsideração é simplificar os efeitos previstos em lei a ponto de anulá-los,
desconsiderando-se, por conseguinte, o princípio basilar da hermenêutica
jurídica de que a lei não contém palavras inúteis ou desnecessárias (verba
cum effectu sunt accipienda).
Podemos dizer, então, que requerimento do art. 357, §
1º do CPC interrompe o prazo recursal?
NÃO.
O efeito interruptivo é previsto nos arts. 1.026, caput, e
1.044, § 1º, do CPC/2015, apenas para dois recursos: embargos de declaração e
embargos de divergência:
Art. 1.026. Os embargos de declaração
não possuem efeito suspensivo e interrompem o prazo para a interposição de
recurso.
Art. 1.044. No recurso de embargos de
divergência, será observado o procedimento estabelecido no regimento interno do
respectivo tribunal superior.
§ 1º A interposição de embargos de
divergência no Superior Tribunal de Justiça interrompe o prazo para
interposição de recurso extraordinário por qualquer das partes.
(...)
Não é possível estender esse efeito interruptivo para a solicitação
de esclarecimento ou ajuste, sob pena de se criar, por analogia, um efeito que
a lei somente conferiu a recursos específicos.
Vale ressaltar, ainda, que o pedido de esclarecimento ou
ajuste não deve ser confundido, em seus efeitos, com os embargos de declaração,
pois possui finalidade própria e exclusiva, qual seja, a integração das partes,
de modo a contribuírem efetivamente para a plena organização do processo e a
prolação de uma decisão coparticipativa, encerrando-se a fase de saneamento.
Pedido de esclarecimentos ou ajustes tem o propósito
de assegurar a continuidade do caráter dialógico e cooperativo
A decisão de saneamento, proferida entre as fases
postulatória e instrutória, possui como finalidade a organização do processo, a
resolução de questões processuais pendentes, com a delimitação das matérias de
fato e de direito relevantes, especificando-se os meios de prova admitidos e a
distribuição do ônus probatório, e, caso necessário, designando audiência de
instrução e julgamento.
O pedido de esclarecimentos ou ajustes tem o propósito de
assegurar a continuidade do caráter dialógico e cooperativo no procedimento
saneador, efetivando o amplo direito ao contraditório, a fim de obter, em tempo
razoável, uma decisão justa e efetiva.
Decisão de saneamento somente estará aperfeiçoada após
o decurso do prazo de 5 dias para manifestação das partes quanto a
esclarecimentos ou ajustes ou após a decisão do juiz a respeito dessa
solicitação do § 1º do art. 357
Com isso, compreende-se que a decisão de saneamento não está
aperfeiçoada logo após sua prolação, pois permanece em construção, a depender
do exercício do direito de petição.
Com efeito, se a decisão é colaborativa e há possibilidade
de manifestação das partes, com probabilidade de alteração do teor deliberado,
é sensato depreender que o saneamento ainda não foi concluído, razão pela qual
encontra-se em estado de instabilidade.
Logo, existindo a possibilidade de manifestação das partes,
somente após transcorrido o quinquídio legal ou proferida a decisão
complementar é que fica concluído o procedimento do saneamento, iniciando o
prazo para os interessados interporem o recurso de agravo de instrumento.
Em suma:
STJ. 4ª Turma. REsp 1.703.571-DF, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira,
julgado em 22/11/2022 (Info Especial 9).