Imagine a seguinte situação
hipotética:
João celebrou com o banco um
contrato de alienação fiduciária para a compra de seu imóvel residencial.
Significa dizer que João tomou
dinheiro emprestado do banco (agente financeiro/mutuante) com o objetivo de
adquirir a sua moradia, ficando o imóvel em nome da instituição financeira até
que ele pague totalmente a dívida. Dessa forma, João permaneceu morando no
imóvel adquirido, mas este ficou registrado em nome do banco, como uma forma de
garantia de que o devedor irá pagar o débito, sob pena de perder o bem.
A alienação fiduciária de bens
imóveis é regida precipuamente pela Lei nº 9.514/97.
Personagens
No exemplo dado acima, podemos
assim definir os personagens envolvidos:
João
Chamado de mutuário/fiduciante.
Mutuário é a pessoa beneficiada
por um contrato de mútuo, ou seja, quem toma dinheiro emprestado.
Fiduciante é a pessoa que, no contrato
de alienação fiduciária, transmite a propriedade do bem ao credor como forma de
garantia da dívida. Fiduciante é a parte devedora. Fidúcia é uma palavra de
origem latina que significa confiança. Assim, fiduciante é a pessoa que dá o
bem em confiança.
Banco
Chamado de mutuante/fiduciário.
Mutuante é a pessoa que empresta
dinheiro em um contrato de mútuo.
Fiduciário é a pessoa que, no
contrato de alienação fiduciária, recebe a propriedade do bem do devedor como
forma de garantia da dívida. É a parte credora.
Inadimplência
João comprometeu-se a pagar a
dívida em 180 prestações.
Ocorre que, por dificuldades
financeiras, ele (mutuário/fiduciante) tornou-se inadimplente.
Quando o fiduciante não paga a dívida, a lei afirma que
ocorre a consolidação da propriedade em nome do fiduciário. Nesse sentido, é o
que prevê o art. 26 da Lei nº 9.514/97:
Art. 26. Vencida e não paga, no todo
ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste
artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.
Leilão
Importante explicar que, apesar
de a lei falar que a propriedade do imóvel consolida-se em nome do fiduciário,
isso não significa que ele tenha se tornado o proprietário pleno do bem.
A Lei impõe ao fiduciário a obrigação de tentar alienar o
imóvel por meio de leilão:
Art. 27. Uma vez consolidada a
propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da
data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público
leilão para a alienação do imóvel.
Taxa de ocupação do imóvel
O
art. 37-A da Lei nº 9.514/97 prevê que, se o fiduciante, mesmo estando
inadimplente, continuar morando no imóvel, o fiduciário (credor) poderá exigir
o pagamento de um valor chamado de “taxa de ocupação”.
Apenas como uma figura de
linguagem, para você entender melhor, essa taxa de ocupação é como se fosse um “aluguel”,
ou seja, uma “remuneração” paga ao fiduciário pelo fato de o fiduciante
continuar na posse do imóvel, mesmo estando inadimplente.
Imagine que o fiduciante tornou-se
inadimplente e houve a consolidação da propriedade (art. 26) no dia 02/02. O
imóvel foi alienado em leilão extrajudicial em 10/10. Em todo esse período, o
fiduciante, mesmo inadimplente, continuou morando no imóvel.
Diante disso, indaga-se: a
exigibilidade da taxa de ocupação teve início na data da consolidação da
propriedade (02/02) ou somente começou depois que o imóvel foi arrematado no
leilão (10/10)?
Desde a data da consolidação da
propriedade.
A Lei nº 13.465/2017 alterou o art. 37-A da Lei nº 9.514/97
e passou a dizer expressamente que a taxa de ocupação será exigível do
fiduciante em mora desde a data da consolidação da propriedade fiduciária no
patrimônio do credor fiduciante. Veja:
Art. 37-A. O devedor fiduciante pagará
ao credor fiduciário, ou a quem vier a sucedê-lo, a título de taxa de ocupação
do imóvel, por mês ou fração, valor correspondente a 1% (um por cento) do valor
a que se refere o inciso VI ou o parágrafo único do art. 24 desta Lei,
computado e exigível desde a data da consolidação da propriedade fiduciária no
patrimônio do credor fiduciante até a data em que este, ou seus sucessores,
vier a ser imitido na posse do imóvel.
Parágrafo único. O disposto no caput
deste artigo aplica-se às operações do Programa Minha Casa, Minha Vida,
instituído pela Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, com recursos advindos da
integralização de cotas no Fundo de Arrendamento Residencial (FAR).
Qual é valor da taxa de
ocupação?
1% do valor do imóvel, conforme
expressa previsão do art. 37-A da Lei nº 9.514/97.
O juiz pode reduzir esse
percentual alegando que, na prática mercadológica, o aluguel dos imóveis
corresponde normalmente a 0,5% do valor do imóvel? Seria possível que o
julgador invocasse o art. 402 do Código Civil para reduzir o percentual de 1%
previsto no art. 37-A?
NÃO.
O art. 402 do Código Civil prevê o seguinte:
Art. 402. Salvo as exceções
expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem,
além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
Assim, surgiu uma corrente
defendendo que o percentual do art. 37-A da Lei nº 9.514/97 poderia ser
reduzido para espelhar exatamente as perdas e danos sofridas pelo credor. Logo,
o valor do aluguel do imóvel no mercado corresponde a 0,5% do preço do bem,
este percentual também deveria ser adotado para a taxa de ocupação.
O STJ, contudo, não acolheu essa
argumentação.
O art. 37-A da Lei nº 9.514/97,
com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 13.465/2017, é posterior ao art. 402
do Código Civil e, também, específico, cuidando exatamente da consequência
jurídica aplicável às hipóteses de ocupação indevida de imóvel pelo devedor
fiduciário.
A mens legis da taxa de ocupação
do art. 37-A da Lei nº 9.514/97 tem por objetivo compensar o novo proprietário
em razão do tempo em que se vê privado da posse do bem adquirido, cabendo ao
antigo devedor fiduciante, sob pena de evidente enriquecimento sem causa,
desembolsar o valor correspondente ao período no qual, mesmo sem título legítimo,
ainda usufrui do imóvel (STJ. 4ª Turma. REsp 1.328.656/GO, Rel. Min. Marco
Buzzi, julgado em 16/8/2012).
Nesse cenário, havendo mais de
uma norma incidente sobre um mesmo fato jurídico, devem ser observados os
critérios de especialidade e de cronologia estabelecidos no art. 2º, caput e
§1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
A partir desses parâmetros, é
pacífico no STJ que, em face de uma (aparente) antinomia normativa, a
existência de lei posterior e especial regendo o tema determina a norma
aplicável à hipótese concreta.
Não se pode olvidar, ainda, que o
panorama deflagrador do diálogo das fontes na esfera das relações de consumo,
pressupõe a existência de uma norma mais benéfica fora do diploma consumerista.
Nessa circunstância, então, seria possível a relativização do critério da
especialidade para, afastando-se eventual regra específica contida no CDC,
aplicar-se uma norma extravagante mais vantajosa para o consumidor, de modo a
realizar o comando disposto no art. 7º do CDC.
Na hipótese, contudo, a norma do
art. 402 do Código Civil, além de não ser específica, também não integra o CDC,
o que afasta o mencionado diálogo das fontes e a possibilidade de relativização
do critério de especialidade legalmente estabelecido.
Em suma:
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.999.485-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min.
Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 6/12/2022 (Info 762).