Dizer o Direito

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

O juiz não pode reduzir o percentual de 1% da taxa de ocupação prevista no art. 37-A da Lei 9.514/97 alegando que, na prática mercadológica, o aluguel dos imóveis corresponde normalmente a 0,5% do valor do bem

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João celebrou com o banco um contrato de alienação fiduciária para a compra de seu imóvel residencial.

Significa dizer que João tomou dinheiro emprestado do banco (agente financeiro/mutuante) com o objetivo de adquirir a sua moradia, ficando o imóvel em nome da instituição financeira até que ele pague totalmente a dívida. Dessa forma, João permaneceu morando no imóvel adquirido, mas este ficou registrado em nome do banco, como uma forma de garantia de que o devedor irá pagar o débito, sob pena de perder o bem.

A alienação fiduciária de bens imóveis é regida precipuamente pela Lei nº 9.514/97.

 

Personagens

No exemplo dado acima, podemos assim definir os personagens envolvidos:

 

João

Chamado de mutuário/fiduciante.

Mutuário é a pessoa beneficiada por um contrato de mútuo, ou seja, quem toma dinheiro emprestado.

Fiduciante é a pessoa que, no contrato de alienação fiduciária, transmite a propriedade do bem ao credor como forma de garantia da dívida. Fiduciante é a parte devedora. Fidúcia é uma palavra de origem latina que significa confiança. Assim, fiduciante é a pessoa que dá o bem em confiança.

 

Banco

Chamado de mutuante/fiduciário.

Mutuante é a pessoa que empresta dinheiro em um contrato de mútuo.

Fiduciário é a pessoa que, no contrato de alienação fiduciária, recebe a propriedade do bem do devedor como forma de garantia da dívida. É a parte credora.

 

Inadimplência

João comprometeu-se a pagar a dívida em 180 prestações.

Ocorre que, por dificuldades financeiras, ele (mutuário/fiduciante) tornou-se inadimplente.

Quando o fiduciante não paga a dívida, a lei afirma que ocorre a consolidação da propriedade em nome do fiduciário. Nesse sentido, é o que prevê o art. 26 da Lei nº 9.514/97:

Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.

 

Leilão

Importante explicar que, apesar de a lei falar que a propriedade do imóvel consolida-se em nome do fiduciário, isso não significa que ele tenha se tornado o proprietário pleno do bem.

A Lei impõe ao fiduciário a obrigação de tentar alienar o imóvel por meio de leilão:

Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel.

 

Taxa de ocupação do imóvel

O art. 37-A da Lei nº 9.514/97 prevê que, se o fiduciante, mesmo estando inadimplente, continuar morando no imóvel, o fiduciário (credor) poderá exigir o pagamento de um valor chamado de “taxa de ocupação”.

Apenas como uma figura de linguagem, para você entender melhor, essa taxa de ocupação é como se fosse um “aluguel”, ou seja, uma “remuneração” paga ao fiduciário pelo fato de o fiduciante continuar na posse do imóvel, mesmo estando inadimplente.

Imagine que o fiduciante tornou-se inadimplente e houve a consolidação da propriedade (art. 26) no dia 02/02. O imóvel foi alienado em leilão extrajudicial em 10/10. Em todo esse período, o fiduciante, mesmo inadimplente, continuou morando no imóvel.

 

Diante disso, indaga-se: a exigibilidade da taxa de ocupação teve início na data da consolidação da propriedade (02/02) ou somente começou depois que o imóvel foi arrematado no leilão (10/10)?

Desde a data da consolidação da propriedade.

A Lei nº 13.465/2017 alterou o art. 37-A da Lei nº 9.514/97 e passou a dizer expressamente que a taxa de ocupação será exigível do fiduciante em mora desde a data da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciante. Veja:

Art. 37-A. O devedor fiduciante pagará ao credor fiduciário, ou a quem vier a sucedê-lo, a título de taxa de ocupação do imóvel, por mês ou fração, valor correspondente a 1% (um por cento) do valor a que se refere o inciso VI ou o parágrafo único do art. 24 desta Lei, computado e exigível desde a data da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciante até a data em que este, ou seus sucessores, vier a ser imitido na posse do imóvel.

Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo aplica-se às operações do Programa Minha Casa, Minha Vida, instituído pela Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, com recursos advindos da integralização de cotas no Fundo de Arrendamento Residencial (FAR).

 

Qual é valor da taxa de ocupação?

1% do valor do imóvel, conforme expressa previsão do art. 37-A da Lei nº 9.514/97.

 

O juiz pode reduzir esse percentual alegando que, na prática mercadológica, o aluguel dos imóveis corresponde normalmente a 0,5% do valor do imóvel? Seria possível que o julgador invocasse o art. 402 do Código Civil para reduzir o percentual de 1% previsto no art. 37-A?

NÃO.

O art. 402 do Código Civil prevê o seguinte:

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

 

Assim, surgiu uma corrente defendendo que o percentual do art. 37-A da Lei nº 9.514/97 poderia ser reduzido para espelhar exatamente as perdas e danos sofridas pelo credor. Logo, o valor do aluguel do imóvel no mercado corresponde a 0,5% do preço do bem, este percentual também deveria ser adotado para a taxa de ocupação.

O STJ, contudo, não acolheu essa argumentação.

O art. 37-A da Lei nº 9.514/97, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 13.465/2017, é posterior ao art. 402 do Código Civil e, também, específico, cuidando exatamente da consequência jurídica aplicável às hipóteses de ocupação indevida de imóvel pelo devedor fiduciário.

A mens legis da taxa de ocupação do art. 37-A da Lei nº 9.514/97 tem por objetivo compensar o novo proprietário em razão do tempo em que se vê privado da posse do bem adquirido, cabendo ao antigo devedor fiduciante, sob pena de evidente enriquecimento sem causa, desembolsar o valor correspondente ao período no qual, mesmo sem título legítimo, ainda usufrui do imóvel (STJ. 4ª Turma. REsp 1.328.656/GO, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 16/8/2012).

Nesse cenário, havendo mais de uma norma incidente sobre um mesmo fato jurídico, devem ser observados os critérios de especialidade e de cronologia estabelecidos no art. 2º, caput e §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

A partir desses parâmetros, é pacífico no STJ que, em face de uma (aparente) antinomia normativa, a existência de lei posterior e especial regendo o tema determina a norma aplicável à hipótese concreta.

Não se pode olvidar, ainda, que o panorama deflagrador do diálogo das fontes na esfera das relações de consumo, pressupõe a existência de uma norma mais benéfica fora do diploma consumerista. Nessa circunstância, então, seria possível a relativização do critério da especialidade para, afastando-se eventual regra específica contida no CDC, aplicar-se uma norma extravagante mais vantajosa para o consumidor, de modo a realizar o comando disposto no art. 7º do CDC.

Na hipótese, contudo, a norma do art. 402 do Código Civil, além de não ser específica, também não integra o CDC, o que afasta o mencionado diálogo das fontes e a possibilidade de relativização do critério de especialidade legalmente estabelecido.

 

Em suma:


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