Imagine a seguinte situação hipotética:
Miriam e Tiago viveram em união
estável durante cinco anos.
Depois
desse período, chegou ao fim a relação.
Durante a união, eles adquiriram seis
cachorros, que foram criados com muito amor e carinho.
Depois da separação em 2018, os cães
ficaram sob os cuidados de Miriam, que ficou arcando sozinha com todas as
despesas para a manutenção dos pets.
Ocorre que Miriam constituiu nova
família e teve filhos, o que aumentou significativamente seus gastos.
Diante desse
cenário, em 2022, Miriam ajuizou ação contra Tiago pedindo para que ele seja
condenado a pagar:
a) metade das despesas mensais que ela
teve com os pets desde o fim de união;
b) metade das despesas futuras que ela
ainda terá com a manutenção dos pets.
Tiago contestou afirmando que não
teria qualquer obrigação considerando que não é mais proprietário dos animais, tendo
em vista que eles se encontram sob a responsabilidade de Miriam.
O juiz julgou o
pedido parcialmente procedente afirmando que estão prescritas as parcelas de
2018 a 2020 (anteriores a 2 contados do ajuizamento da ação). Isso porque, para
o magistrado, deve ser aplicado o prazo prescricional bienal previsto no art.
206, § 2º, do Código Civil:
Art.
206. Prescreve:
(...)
§
2º Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da
data em que se vencerem.
(…)
Por outro lado, o juiz condenou Tiago
a pagar a metade das despesas que Miriam teve nos anos de 2020 a 2022, além de
determinar que o réu continue arcando com os custos para manutenção dos pets.
O Tribunal de Justiça confirmou a
sentença.
O juiz e o TJ entenderam que, embora o
Código Civil confira aos animais a natureza jurídica de bem móvel (semovente),
esta compreensão, sobretudo em relação a animais de estimação, os quais se
destinam ao preenchimento de necessidades humanas emocionais e afetivas, devem
ser considerados seres senciente, com capacidade de manifestar sentimentos.
Assim, concluíram que, uma vez
estabelecida a relação de afeto entre as partes com os animais, não se poderia
admitir, sob o ponto de vista ético, o abandono como causa de extinção da
propriedade e da inerente responsabilidade.
O réu interpôs recurso especial
insistindo no argumento de que não pode ser obrigado a pagar essas despesas
porque desde o fim da união estável, ocorrido há muitos anos, não é mais o dono
dos animais de estimação, tendo sido a propriedade transmitida à autora pela simples
tradição. Argumentou que os animais não são titulares de direito, possuindo a
natureza jurídica de bens.
A sentença e o acórdão do TJ foram
mantidos pelo STJ?
NÃO. Em uma caso parecido com o
narrado acima, por apertada maioria (3x2), a 3ª Turma do STJ deu provimento ao
recurso especial para julgar improcedentes os pedidos da autora.
Veja abaixo os argumentos do Ministro Marco
Aurélio Bellizze, autor do voto-vista que foi o vencedor:
Relação regida pelo direito das coisas
A relação entre o dono e o seu animal
de estimação encontra-se inserida no direito de propriedade e no direito das
coisas. Desse modo, a questão deve ser analisada de acordo com as regras previstas
para a partilha segundo o regime de bens do casamento ou da união estável.
A aplicação de tais regramentos,
contudo, submete-se a um filtro de compatibilidade de seus termos com a natureza
particular dos animais de estimação, seres que são dotados de sensibilidade, com
ênfase na proteção do afeto humano para com os animais.
As despesas com o custeio dos animais
cabem ao dono
Enquanto vigente a união estável, é
indiscutível que estas despesas podem e devem ser partilhadas entre os
companheiros, na forma do art. 1.315 do Código Civil:
Art.
1.315. O condômino é obrigado, na proporção de sua parte, a concorrer para as
despesas de conservação ou divisão da coisa, e a suportar os ônus a que estiver
sujeita.
Parágrafo
único. Presumem-se iguais as partes ideais dos condôminos.
Após a dissolução do casamento ou da
união estável, deve-se definir quem ficará com os animais
Vale
ressaltar que essa combinação não existe nenhuma formalidade, ainda que não
seja proibido que isso seja consignado expressamente no formal de partilha dos bens.
Se ficar combinado que o animal ficará
sob a responsabilidade de apenas um dos ex-companheiros, essa pessoa é quem
deverá arcar com os custos de sustento do pet
Não se poderia conceber em tal
hipótese – em que, extinta a união estável, com inequívoca definição a respeito
de quem, doravante, passaria a ser o dono do animal de estimação –, pudesse o
outro ex-companheiro, por exemplo, passado algum tempo e sem guardar nenhum
vínculo de afetividade com o animal, reivindicar algum direito inerente à
propriedade deste.
Da mesma forma, ao dono do pet, nesse
mesmo contexto, não seria dada a possibilidade de reivindicar, em relação ao
outro ex-companheiro (que não é mais dono), o cumprimento dos deveres para com
o animal de estimação.
Se, no momento da separação, o pet
ficou sob a responsabilidade de apenas um dos ex-conviventes, o vínculo com
esse animal cessou (é diferente de um vínculo com um filho)
O fato de o animal de estimação ter
sido adquirido na constância da união estável não pode representar a
consolidação de um vínculo obrigacional indissolúvel entre os companheiros (com
infindáveis litígios) ou entre um deles e o pet, sendo conferida às partes
promoverem a acomodação da titularidade dos animais de estimação, da forma como
melhor lhes for conveniente.
O único vínculo obrigacional de custear
a subsistência de outro ser vivo, independentemente da ruptura da relação
conjugal ou convivencial, estabelecido no ordenamento jurídico posto, decorre
da relação de filiação, o que não se trata do caso concreto.
A autora ficou com a responsabilidade
pelos pets
Após o fim da união estável, as partes
litigantes definiram, deliberadamente, que os animais de estimação ficariam sob
a posse e propriedade, única e exclusiva, da autora. Com isso, houve uma ruptura
da relação réu para com os animais.
Independentemente da possível
reprovação moral que se possa imputar ao demandado ficou evidente que a propriedade
exclusiva dos cães ficou com a sua ex-companheira, despojando-se ele de todo e
qualquer direito advindo da titularidade dos animais (e, por conseguinte,
também dos correlatos deveres).
Animais não ficaram em mancomunhão
No caso concreto, após o fim da união estável,
não houve, em relação aos animais de estimação, a manutenção do estado de mancomunhão
(copropriedade) entre os ex-companheiros.
Por estado de mancomunhão,
compreende-se o exercício simultâneo e conjunto da propriedade pelos
ex-companheiros (ou ex-cônjuges) em relação aos bens do casal, enquanto não
operada a partilha. Nesse interregno, caso um bem (integrante dessa unidade patrimonial
fechada) esteja na posse exclusiva de um deles, é possível que o outro exija
daquele a correspondente indenização pela privação da fruição da coisa,
abatida, proporcionalmente, das
despesas que, de igual modo, a ambos competem. Esta compreensão, registra-se, é
extraída da conjugação dos arts. 1.315 e 1.319 do Código Civil.
Sendo, portanto, incontroverso que os
pets não se encontravam em estado de mancomunhão entre os ex-companheiros, não
se pode permitir que a autora, única e exclusiva dona dos animais de estimação,
que usufrui, sozinha, da companhia dos pets, pleiteie o pagamento das despesas
ao ex-companheiro.
A imputação, ao demandado, da
obrigação de arcar com as despesas dos animais (que não mais pertencem a ele),
para que a demandante, exclusivamente, usufrua da companhia dos pets, não
atende ao preceito de equidade.
A autora, assim que tomou para si a
posse dos animais de estimação, caso não fosse a sua intenção de assumir,
sozinha, a titularidade dos pets, deveria, imediatamente – sobretudo porque a
providência se relaciona à subsistência dos animais – procurar o ex-companheiro
para definir como se daria o exercício conjunto da propriedade dos cães, o que
não foi feito.
Réu requereu ao juízo que os cães
fossem encaminhados para adoção
O demandado, logo em sua primeira
manifestação nos autos, requereu ao juízo que, caso a demandante não quisesse
permanecer com os cães, fosse dada a adequada destinação aos animais já
que, não nutria, há muito tempo, nenhum afeto pelos animais, não pretendendo
assumir a obrigação de custear a subsistência deles.
O réu, despojado da propriedade dos
animais, não pode ser condenado a custear os gastos com os animais porque não é
mais o dono e tampouco exerce quaisquer dos direitos inerentes à propriedade.
O demandado não é proprietário dos
animais, não usufrui da sua companhia nem pode dar a eles outra destinação
(como encaminhá-los à adoção). Assim, a prevalecer essa lógica, o demandado
somente se desobrigará de tal encargo, excluído o evento morte, se a proprietária,
ao seu alvedrio, quiser vender ou doá-los. À proprietária é dada a
possibilidade de dispor dos animais. Ao demandado que, desde o início, assumiu
essa condição de disposição dos animais, não levada a efeito pela providência
da demandante, impõe-se obrigação de custeio das despesas de subsistência.
Trata-se, a toda evidência, de uma
obrigação potestativa imposta ao ex-companheiro, sem nenhum respaldo no
ordenamento jurídico posto.
Questão regida pelo direito de propriedade
Com base em tais fundamentos, a
questão posta, atinente à obrigação de custear as despesas de subsistência dos
animais de estimação, tem regramento próprio e deve ser regido segundo o
direito de propriedade (direito das coisas), com a repercussão no regime de
bens regente do caso, atentando-se, em sua aplicação, ao afeto humano e à
natureza particular dos animais, como seres dotados de sensibilidade
Em suma:
Não é possível
aplicar por analogia as disposições acerca da pensão alimentícia, baseada na
filiação e regida pelo Direito de Família, aos animais de estimação adquiridos
durante união estável.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.944.228-SP,
Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio
Bellizze, julgado em 18/10/2022 (Info Especial 9).
Prazo prescricional não pode ser o do
art. 206, § 2º, do CC
Pelas mesmas razões
acima expostas, como não se trata de relação regida pelo Direito de Família,
não se pode aplicar por analogia o prazo prescricional bienal previsto no art.
206, § 2º, do Código Civil, que cuida da pretensão afeta à pensão alimentícia:
Art.
206. Prescreve:
(...)
§
2º Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da
data em que se vencerem.
(…)
Assim, o prazo
prescricional aplicável, no caso concreto, é o do art. 206, § 3º, IV, do Código
Civil, ou seja, o do enriquecimento sem causa do ex-companheiro e o correlato
empobrecimento da demandante que, segundo alega, arcou sozinha com despesas dos
animais de estimação, as quais, na sua ótica, também seriam de incumbência do
demandado:
Art.
206 (...)
§
3º Em três anos:
(...)
IV
- a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa;
Independentemente do modo como a pretensão é
veiculada pela parte, este é o fundamento do pedido, consoante o ordenamento
jurídico posto.
Conclusão quanto à discussão acerca da prescrição:
Encerrado o estado de mancomunhão,
aplica-se o prazo prescricional trienal à pretensão de que o ex-companheiro
arque com gastos de animais de estimação adquiridos durante a união estável.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.944.228-SP,
Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. Acd. Ministro Marco Aurélio Bellizze,
julgado em 18/10/2022 (Info Especial 9).
Distinção com o REsp 1.173.167/SP
No REsp 1.173.167/SP, a 4ª Turma do
STJ decidiu que, ao fim de um casamento ou união estável, é possível que o juiz
reconheça o direito de visita a animal de estimação adquirido durante a
constância do relacionamento:
Na dissolução de
entidade familiar, é possível o reconhecimento do direito de visita a animal de
estimação adquirido na constância da união, demonstrada a relação de afeto com
o animal.
Na dissolução da
entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação,
independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá
buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais,
atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e
do seu vínculo afetivo com o animal.
STJ. 4ª Turma. REsp
1713167-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 19/06/2018 (Info 634).
O caso aqui tratado, contudo, é
diferente do que o STJ julgou no REsp 1.173.167/SP. Isso porque aqui não se
discutiu a respeito dos direitos sobre os pets, mas sim sobre os deveres de
arcar com os custos de subsistência dos animais de estimação, adquiridos
durante a união estável, após a sua dissolução.
Naquele julgado, controvertia-se a
respeito da existência de direito de visita – instituto próprio de Direito de
Família, exercido pelo pai biológico ou socioafetivo que ficou sem a guarda de
seu filho – ao pet pelo ex-companheiro (o qual, ainda que desguarnecido da
convivência diária, manteve seu laço de afetividade com o animal de estimação,
bem como o estado de mancomunhão.