Procedimento do Tribunal do Júri
Quando a
pessoa pratica um crime doloso contra a vida, ela responde a um processo penal
que é regido por um procedimento especial próprio do Tribunal do Júri (arts.
406 a 497 do CPP).
Procedimento bifásico do Tribunal do Júri
O
procedimento do Tribunal do Júri é chamado de bifásico (ou escalonado) porque
se divide em duas etapas:
1) Fase do
sumário da culpa (iudicium accusationis):
é a fase de acusação e instrução preliminar (formação da culpa). Inicia-se com
o oferecimento da denúncia (ou queixa) e termina com a preclusão da sentença de
pronúncia.
2) Fase de
julgamento (iudicium causae).
Sentença que encerra o sumário da culpa
Ao final da 1ª fase do procedimento do júri (sumário da culpa), o
juiz irá proferir uma sentença, que poderá ser de quatro modos:
Pronúncia |
Impronúncia |
Absolvição sumária |
Desclassificação |
O réu será pronunciado quando o juiz se
convencer de que existem prova da materialidade do fato e indícios
suficientes de autoria ou de participação. |
O réu será impronunciado quando o juiz não
se convencer: § da materialidade do fato; § da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. Ex.: a única testemunha que havia
reconhecido o réu no IP não foi ouvida em juízo. |
O réu será absolvido, desde logo, quando
estiver provado (a): § a inexistência do fato; § que o réu não é autor ou partícipe do fato; § que o fato não constitui crime; § que existe uma causa de isenção de pena ou de exclusão
do crime. Ex.: todas as testemunhas ouvidas afirmaram
que o réu não foi o autor dos disparos. |
Ocorre quando o juiz se convencer de que o
fato narrado não é um crime doloso contra a vida, mas sim um outro delito,
devendo, então, remeter o processo para o juízo competente. Ex.: juiz entende que não houve homicídio
doloso, mas sim latrocínio. |
Recurso cabível: RESE. |
Recurso cabível: APELAÇÃO. |
Recurso cabível: APELAÇÃO. |
Recurso cabível: RESE. |
Fundamentação da sentença de pronúncia e excesso de linguagem
A sentença de pronúncia deve ser fundamentada. No entanto, é
necessário que o juiz utilize as palavras com moderação, ou seja, valendo-se de
termos sóbrios e comedidos, a fim de se evitar que fique demonstrado na decisão
que ele acredita firmemente que o réu é culpado pelo crime.
Se o magistrado exagera nas palavras utilizadas na sentença
de pronúncia, dizemos que houve um “excesso de linguagem”, também chamado de
“eloquência acusatória”.
Ex: na sentença de pronúncia, o juiz afirma: “não tenho
nenhuma dúvida de que o réu foi o autor do homicídio da vítima Fulano. Na
verdade, em todos os meus anos de magistratura, nunca vi um homicida tão frio,
cruel e desprezível, sendo esse um crime brutal que merece ser gravemente
reprimido”. Ora, no caso houve claramente excesso de linguagem por parte do
juiz.
Por que não pode haver o excesso de linguagem?
Porque o CPP afirma que os jurados irão receber uma cópia da
sentença de pronúncia e das decisões posteriores que julgaram admissível a
acusação e do relatório do processo (art. 472, parágrafo único). Assim, se o
juiz se excede nos argumentos empregados na sentença de pronúncia, o jurado irá
ler essa decisão e certamente será influenciado pela opinião do magistrado. O
jurado poderá, inclusive, pensar o seguinte: “se o juiz, que estudou e conhece das leis, está aqui no papel dizendo
que o réu é culpado, deve ser porque ele realmente é culpado. Vou ter que
condená-lo também.”
Perceba, portanto, que existe claro prejuízo para a defesa.
Havendo excesso de linguagem, o que o Tribunal deve fazer?
Se o Tribunal reconhecer que houve excesso de linguagem na
sentença de pronúncia, ele deverá anular a decisão, assim como atos processuais
seguintes, determinando que outra sentença de pronúncia seja prolatada.
Em vez de anular, o Tribunal pode apenas determinar que a sentença seja
desentranhada (retirada do processo) ou seja envelopada (isolada)? Isso já não
seria suficiente, com base no princípio da economia processual?
NÃO. Não basta o desentranhamento e envelopamento. É necessário anular a sentença e
determinar que outra seja prolatada. Isso porque, como já dito acima, a lei
determina que a sentença de pronúncia seja distribuída aos jurados. Logo, não
há como desentranhar a decisão, já que uma cópia dela deverá ser entregue aos
jurados. Se essa cópia não for entregue, estará sendo descumprido o art. 472,
parágrafo único, do CPP.
Assim, não há outro jeito. A providência adequada é a
anulação da sentença e os consecutivos atos processuais que ocorreram no
processo principal para que outra decisão seja proferida:
Havendo excesso de linguagem, o Tribunal deverá ANULAR a
sentença de pronúncia e os consecutivos atos processuais, determinando-se que
outra seja prolatada.
Não basta o desentranhamento e envelopamento. É necessário
anular a sentença e determinar que outra seja prolatada.
STF. 1ª Turma.
RHC 127522/BA, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 18/8/2015 (Info 795).
STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1.442.002-AL, Rel. Min. Sebastião
Reis Júnior, julgado em 28/4/2015 (Info 561).
Feita esta breve revisão, imagine a seguinte situação adaptada:
O Ministério Público denunciou João pelo homicídio de Pedro.
O réu foi pronunciado pela prática do crime de
homicídio qualificado.
Na sentença de pronúncia, o juiz escreveu:
“(...) pela dinâmica dos fatos,
conforme relatado pelas testemunhas, demonstrou-se que o réu, agindo com ânimo
homicida, por motivo fútil e empregando recurso que dificultou a defesa da
vítima, matou Pedro da Silva.
(...)
Não há que se falar em
desclassificação já que o dolo de matar é evidente nos autos”.
Irresignada, a defesa interpôs recurso em sentido estrito perante o
Tribunal de Justiça, alegando, em suma, nulidade da decisão, por excesso de linguagem
(decisão com eloquência acusatória).
O Tribunal de Justiça rejeitou a nulidade e negou provimento ao
recurso por entender que não houve excesso de linguagem, mantendo a pronúncia
do réu.
Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus ao STJ
alegando que houve “excesso acusatório, pois o juízo expressa a certeza de que
há dolo de matar, em que pese a tese desclassificatória para crime não doloso
contra a vida ter sido alegada pela defesa em sede de alegações finais e de
recurso em sentido estrito”.
O STJ concedeu a ordem? Os argumentos da defesa foram acolhidos?
SIM.
Na primeira fase do procedimento especial do tribunal do
júri, o magistrado deve realizar apenas um juízo de admissibilidade da acusação, ou seja, deverá avaliar se a
conduta do agente pode se enquadrar na descrição de crime doloso,
tentado ou consumado, contra a vida. Não é feito um juízo de certeza. Isso
porque o juízo de certeza
acerca da autoria e a deliberação acerca de dúvidas só podem provir do conselho
de sentença (jurados), que é o juiz natural da causa.
Justamente por isso, a jurisprudência do STJ é pacífica no
sentido de que a
sentença de pronúncia deve limitar-se a um juízo de dúvida a respeito da
acusação, evitando considerações incisivas ou valorações sobre as teses em
confronto nos autos.
No caso, o magistrado afirmou que “pela dinâmica dos fatos,
conforme relatado pelas testemunhas, demonstrou-se que o réu, agindo com ânimo
homicida, por motivo fútil e empregando recurso que dificultou a defesa da
vítima, matou Pedro da Silva”. Essa sentença denota (indica) juízo de certeza
quanto à culpabilidade do acusado. Sua redação mostra-se absolutamente
imprópria à decisão de pronúncia, já que pode induzir o ânimo dos jurados em
favor das teses acusatórias, em prejuízo da defesa.
Da mesma forma, o uso da contundente afirmação de que “o
dolo de matar é evidente nos autos” ultrapassou, efetivamente, as barreiras da
legalidade - com isso incorrendo o magistrado no chamado vício de excesso de
linguagem -, tendo em vista o juízo peremptório acerca do dolo do acusado.
Assim, verifica-se configurada manifesta ilegalidade a
justificar a concessão da ordem de ofício, ante a nulidade da decisão de
pronúncia por vício de excesso de linguagem.
Em suma:
A sentença de pronúncia deve limitar-se a um juízo de
dúvida a respeito da acusação, evitando considerações incisivas ou valorações
sobre as teses em confronto nos autos.
STJ. 5ª
Turma. AgRg no HC 673.891-SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik,
Rel. Acd. Ministro
João Otávio de Noronha, julgado em 23/8/2022 (Info Especial 10).