Imagine
a seguinte situação hipotética:
A polícia
recebeu denúncia anônima de que havia um homem armado nas imediações do bairro
Ana Jacinta, em São Paulo (SP). A pessoa que fez a denúncia descreveu como
seria esse homem.
Os
policiais se dirigiram até o local e se depararam com um indivíduo com as
características informadas na denúncia. Ao realizarem revista pessoal,
encontraram uma pistola. Os policiais descobriram o nome completo do indivíduo
por meio de seu documento pessoal que estava com ele.
Ainda na
abordagem policial, em via pública, por meio do COPOM (Centro de Operações da
Polícia Militar do Estado de São Paulo), os policiais checaram que o indivíduo possuía
antecedente criminal por tráfico de drogas.
Diante
dessa informação, os policiais decidiram colocar o indivíduo na viatura e seguir
até a residência do suspeito para ali procurarem drogas.
Chegando ao
local, os policiais afirmam que o indivíduo autorizou que eles entrassem na
casa.
Com o
auxílio de cães farejadores, os policiais encontram droga na residência do
suspeito.
Com base
nesses elementos informativos, o indivíduo foi condenado por:
a)
porte ilegal de arma de fogo (art. 14, caput, da Lei nº 10.826/2003);
e
b)
por tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006).
A defesa
questionou a condenação por tráfico afirmando que a apreensão da droga foi nula
por ofensa à inviolabilidade de domicílio.
O STJ
concordou com os argumentos da defesa?
SIM.
Inviolabilidade
de domicílio
A
CF/88 prevê, em seu art. 5º, a seguinte garantia:
XI
- a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou
para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
A
inviolabilidade do domicílio é uma das expressões do direito à intimidade do
indivíduo.
Entendendo
o inciso XI:
Só
se pode entrar na casa de alguém sem o consentimento do morador nas seguintes
hipóteses:
Durante o DIA |
Durante a NOITE |
• Em caso de flagrante delito; • Em caso de desastre; • Para prestar socorro; • Para cumprir determinação judicial
(ex: busca e apreensão; cumprimento de prisão preventiva). |
• Em caso de flagrante delito; • Em caso de desastre; • Para prestar socorro. |
Assim,
guarde isso: não se pode invadir a casa de alguém durante a noite para cumprir
ordem judicial.
Flagrante
delito
Vimos
acima que, havendo flagrante delito, é possível ingressar na casa mesmo sem
consentimento do morador, seja de dia ou de noite.
Um
exemplo comum no cotidiano é o caso do tráfico de drogas. Diversos verbos do
art. 33 da Lei nº 11.343/2006 fazem com que este delito seja permanente:
Art.
33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir,
vender, expor
à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que
gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar:
Assim,
se a casa do traficante funciona como boca-de-fumo, onde ele armazena e vende
drogas, a todo momento estará ocorrendo o crime, considerando que ele está
praticando os verbos “ter em depósito” e “guardar”.
Diante
disso, havendo suspeitas de que existe droga em determinada casa, será possível
que os policiais invadam a residência mesmo sem ordem judicial e ainda que
contra o consentimento do morador?
SIM.
No entanto, no caso concreto, devem existir fundadas razões que indiquem que
ali está sendo cometido um crime (flagrante delito). Essas razões que motivaram
a invasão forçada deverão ser posteriormente expostas pela autoridade, sob pena
de ela responder nos âmbitos disciplinar, civil e penal. Além disso, os atos
praticados poderão ser anulados.
O STF possui uma tese fixada sobre o tema:
A
entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período
noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a
posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante
delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da
autoridade, e de nulidade dos atos praticados.
STF.
Plenário. RE 603616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015
(repercussão geral – Tema 280) (Info 806).
O
STJ também possui alguns julgados a respeito do assunto:
O
ingresso regular da polícia no domicílio, sem autorização judicial, em caso de
flagrante delito, para que seja válido, necessita que haja fundadas razões
(justa causa) que sinalizem a ocorrência de crime no interior da residência.
A
mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente, embora
pudesse autorizar abordagem policial em via pública para averiguação, não
configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem
o seu consentimento e sem determinação judicial.
STJ.
6ª Turma. REsp 1574681-RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em
20/4/2017 (Info 606).
No
referido julgamento, concluiu-se, portanto, que, para legitimar-se o ingresso
em domicílio alheio, é necessário tenha a autoridade policial fundadas razões
para acreditar, com lastro em circunstâncias objetivas, no atual ou iminente
cometimento de crime no local onde a diligência vai ser cumprida.
Voltando ao
caso concreto
No
caso, os policiais receberam uma denúncia anônima segundo a qual o acusado
estava com uma arma de fogo em via pública, razão por que o abordaram e
encontraram a referida arma. Depois disso, decidiram ir até a sua residência e
entraram no imóvel com a suposta autorização do paciente, oportunidade em que
soltaram cães farejadores de drogas, sob a justificativa de que o réu tinha um
antecedente por tráfico.
Não
houve referência a prévia investigação, monitoramento ou campanas no local, a
afastar a hipótese de que se tratava de averiguação de informações robustas e
atuais acerca da existência de drogas naquele lugar. Da mesma forma, não se fez
menção a nenhuma atitude suspeita, externalizada em atos concretos, tampouco
movimentação de pessoas típica de comercialização de drogas. A denúncia
anônima, aliás, nem sequer tratava da presença de entorpecentes no imóvel, mas
sim do porte de arma de fogo em via pública distante do domicílio, a qual já
havia sido encontrada e apreendida.
STJ. 6ª Turma. HC 762.932-SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em
22/11/2022 (Info 760).
Admitir
a validade desse fundamento para, isoladamente, autorizar essa diligência
invasiva, implicaria, em última análise, permitir que todo indivíduo que um dia
teve algum registro criminal na vida tenha seu lar diuturnamente vasculhado
pelas forças policiais, a ensejar, além da inadmissível prevalência do “Direito
Penal do autor” sobre o “Direito Penal do fato”, uma espécie de perpetuação da
pena restritiva de liberdade, por vezes até antes que ela seja imposta. Isso
porque, mesmo depois de cumprida a sanção penal (ou até antes da condenação),
todo sentenciado (ou acusado ou investigado) poderia ter sua residência
vistoriada, a qualquer momento, para “averiguação” da existência de drogas,
como se a anotação criminal lhe despisse para todo o sempre da presunção de
inocência e da garantia da inviolabilidade domiciliar, além de lhe impingir uma
marca indelével de suspeição.
As
regras de experiência e o senso comum, somados às peculiaridades do caso
concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes policiais de que
o paciente, depois de ser abordado e preso por porte de arma de fogo em via
pública distante de sua residência, sabendo ter drogas em casa, haveria livre e
espontaneamente franqueado a realização de buscas no imóvel com cães
farejadores, os quais fatalmente encontrariam tais substâncias.
Em
verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo
inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que, na
espécie, havia em curso na residência uma clara situação de comércio espúrio de
droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido
do morador.
Mesmo se ausente coação direta e
explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em
flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho -
sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento
sobre seus direitos -, diante de dois policiais armados, poderiam macular a
validade de eventual consentimento para a realização de busca domiciliar, em
virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial.
STJ. 6ª Turma. HC 762.932-SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em
22/11/2022 (Info 760).
Isso
porque a prova do consentimento do morador é um requisito necessário, mas não
suficiente, por si só, para legitimar a diligência policial, porquanto deve ser
assegurado que tal consentimento, além de existente, seja válido, isto é, livre
de vícios aptos a afetar a manifestação de vontade.
O
art. 152 do Código Civil, ao disciplinar a coação como um dos vícios do
consentimento nos negócios jurídicos, dispõe que: “No apreciar a coação,
ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do
paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela”.
Se,
no Direito Civil, que envolve, em regra, direitos patrimoniais disponíveis, em
uma relação equilibrada entre particulares, todas as circunstâncias que possam
influir na liberdade de manifestação da vontade devem ser consideradas, com
muito mais razão isso deve ocorrer no Direito Penal (lato sensu), que trata de
direitos indisponíveis de um indivíduo diante do poderio do Estado, em relação
manifestamente desigual.
Retomando
a situação em análise, uma vez que o acusado já estava preso por porte de arma
de fogo em via pública, sozinho, diante de dois policiais armados, sem a opção
de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus
direitos, não é crível que estivesse em plenas condições de prestar livre e
válido consentimento para que os agentes de segurança estendessem a diligência
com uma varredura especulativa auxiliada por cães farejadores em seu domicílio
à procura de drogas, a ponto de lhe impor uma provável condenação de 5 a 15
anos de reclusão, além da pena prevista para o crime do art. 14 do Estatuto do
Desarmamento, no qual já havia incorrido.
A
diligência policial, no caso dos autos, a rigor, configurou verdadeira pescaria
probatória (fishing expedition) no domicílio do acusado, definida pela
doutrina como a:
“Apropriação
de meios legais para, sem objetivo traçado, 'pescar' qualquer espécie de
evidência, tendo ou não relação com o caso concreto. Trata-se de uma
investigação especulativa e indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado,
que, de forma ampla e genérica, 'lança' suas redes com a esperança de 'pescar'
qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação ou para tentar justificar
uma ação já iniciada”. (SILVA, Viviani Ghizoni da; MELO E SILVA, Philipe
Benoni; MORAIS DA ROSA. Fishing expedition e encontro fortuito na busca e na
apreensão: um dilema oculto do processo penal. 2ª ed. Florianópolis: Emais,
2022, p. 50).
Com
efeito, uma vez que a arma de fogo mencionada na denúncia anônima já havia sido
apreendida com o paciente em via pública (distante da residência, frise-se) e
não existia nenhum indício concreto, nem sequer informação apócrifa, quanto à presença
de drogas no interior do imóvel, não havia razão legítima para que os agentes
de segurança se dirigissem até o local e realizassem varredura meramente
especulativa à procura de entorpecentes com cães farejadores. Cabia-lhes,
apenas, diante do encontro da arma de fogo em via pública, conduzir o réu à
delegacia para a lavratura do auto de prisão em flagrante.
Resultado
do julgamento
Diante
do exposto, a ordem foi concedida para reconhecer a ilicitude das provas por
esse meio obtidas, bem como de todas as que delas decorreram, e, por
conseguinte, absolvê-lo em relação à prática do delito de tráfico de drogas.