Dizer o Direito

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

O inadimplemento de pensão alimentícia apenas configura crime de abandono material quando o agente possui recursos para prover o pagamento e deixa de fazê-lo propositadamente

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João deixou de pagar pensão alimentícia judicialmente fixada aos seus filhos.

Em razão disso, ele foi denunciado pela prática do crime de abandono material, delito tipificado no art. 244, do Código Penal:

Abandono material

Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País. (Redação dada pela Lei nº 5.478, de 1968)

Parágrafo único - Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.

 

No curso da instrução foram ouvidas testemunhas e interrogado o réu.

As testemunhas afirmaram que o réu “não para no emprego”.

Outra testemunha disse que ele tem boa convivência com os filhos.

Em interrogatório, o réu disse que parou de pagar os valores acordados quando perdeu o emprego, mas não deixou de dar assistência aos filhos. Afirma também que já chegou a ser preso em razão da inadimplência da pensão.

Ao final da instrução, o juiz condenou o réu, alegando, entre outros fundamentos que “a situação do acusado de encontrar-se na informalidade, realizando bicos, não o exime da responsabilidade de auxílio no sustento dos filhos, não sendo tal circunstância causa para afastar a tipicidade de sua conduta omissa.”

O réu interpôs apelação, porém o Tribunal de Justiça negou provimento e manteve a condenação.

De acordo com o TJ, “a alegação de desemprego formal, quando desacompanhada de outros elementos probatórios aptos a confirmar a efetiva impossibilidade financeira do acusado de cumprir o dever de sustento dos filhos, não é suficiente para afastar o dolo de abandono material dos menores”.

O réu impetrou, então, habeas corpus perante o STJ alegando que a mera “falta de pagamento da pensão alimentícia judicialmente fixada é insuficiente para a caracterização do delito de abandono material, sendo necessária prova de que havia condições para o sustento da prole e que o inadimplemento ocorreu sem justa causa”.

 

O STJ concordou com os argumentos do impetrante?

SIM.

 

Algumas informações sobre o crime de abandono material

O caput do art. 244 do CP prevê três figuras típicas:

a) deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, de filho menor de 18 anos ou inapto para o trabalho ou de ascendente inválido ou maior de 60 anos, não lhes proporcionando os recursos necessários;

b) faltar, sem justa causa, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; e

c) deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo.

 

O parágrafo único do mencionado dispositivo legal estabelece que incide nas mesmas penas “quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada”.

 

Trata-se de tipo misto cumulativo, na modalidade omissiva pura, de natureza permanente.

A norma determina que o agente faça uma ação, de modo que a infração consiste na omissão desse fazer.

 

Dever constitucional e legal de prestar alimentos

A Constituição Federal prescreve ser dever da família assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à alimentação, à saúde e à dignidade, além de delegar à instituição familiar, em conjunto com a sociedade e com o Estado, a obrigatoriedade de assistir, criar e educar os filhos menores.

O Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, em sentido similar, exigem dos genitores o dever de sustento da prole.

A seu turno, a lei penal, visando a compelir o disposto na legislação civil, pune aquele que deixa, sem justificativa idônea, de prover a subsistência do filho menor de 18 anos, faltando com o adimplemento de pensão alimentícia que está relacionada, em última análise, com a integridade do organismo familiar.

 

Direito Penal, contudo, é a ultima ratio

Vale ressaltar, no entanto, que o Direito Penal opera como ultima ratio. Em razão disso, só é punível a frustração dolosa do pagamento da pensão alimentícia, isto é, exige-se a vontade livre e consciente de não adimplir a obrigação. Assim, nem todo ilícito civil que envolve o dever de assistência material aos filhos configurará o ilícito penal previsto no art. 244 do CP.

 

Elemento subjetivo

O crime de abandono material exige o dolo, isto é, a vontade livre e consciente de não adimplir a obrigação familiar. A esse respeito, assim consta na exposição de motivos do Código Penal:

“Segundo o projeto, só é punível o abandono intencional ou doloso, embora não se indague do motivo determinante: se por egoísmo, cupidez, avareza, ódio, etc.”.

Nessa perspectiva, o STJ já decidiu que:

Para a imputação do crime de abandono material, mostra-se indispensável a demonstração, com base em elementos concretos, de que a conduta foi praticada sem justificativa para tanto, ou seja, deve ser demonstrado o dolo do agente de deixar de prover a subsistência da vítima.

STJ. 6ª Turma. RHC 27.002/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 18/9/2013.

 

Só há crime se a inadimplência ocorre sem justa causa

Cumpre registrar, também, que o delito em tela apenas se configura quando o agente deixa de efetuar o pagamento sem justa causa. Trata-se de elemento normativo do tipo que traduz uma causa de justificação capaz de tornar a conduta lícita.

Nesse contexto, aquele que não cumpre decisão judicial que fixou os alimentos por absoluta hipossuficiência econômica, por exemplo, não pratica o crime estabelecido no art. 244 do Código Penal, porque presente a justa causa.

Da mesma forma, o mero inadimplemento da pensão não é suficiente, por si só, para, automaticamente, justificar o oferecimento de denúncia ou a condenação pelo delito em comento. Do contrário, estar-se-ia diante de odiosa responsabilidade penal objetiva.

Assim, o inadimplemento da pensão alimentícia apenas configura crime quando o agente possui recursos para prover o pagamento e deixa de fazê-lo propositadamente. É insuficiente, portanto, a mera afirmativa genérica de que o inadimplemento dos alimentos ocorreu sem justa causa. Tal assertiva deve estar comprovada com elementos concretos dos autos, pois, ao revés, toda e qualquer insolvência seria crime.

 

Como se comprova o dolo?

De acordo com o acórdão, se as provas demonstrarem que a omissão foi deliberadamente dirigida por alguém que podia adimplir a obrigação - a partir, por exemplo, da comprovação de que o acusado possui emprego fixo, é proprietário de veículo automotor e/ou ostenta uma vida financeira confortável -, está configurada a ausência de justa causa e, consequentemente, o delito de abandono material.

 

Em suma:

 

No caso concreto, a mãe das crianças reconheceu que o acusado realiza pagamentos esporádicos e informou que usou o cartão dele para sacar os valores devidos sob a rubrica de auxílio emergencial. Ademais, o paciente, além de não ter emprego formal, já foi preso civilmente em virtude da dívida - medida coercitiva extrema que foi incapaz de compelir o devedor a cumprir com sua obrigação.

Nesse contexto, não ficou comprovado o dolo (elemento subjetivo do tipo) do agente nem que o inadimplemento ocorreu sem justa causa (elemento normativo do tipo). Por essa razão, o acusado foi absolvido.

 

DOD Plus

Responsabilidade civil por abandono material do pai em relação ao filho

A omissão voluntária e injustificada do pai quanto ao amparo MATERIAL do filho gera danos morais, passíveis de compensação pecuniária.

O descumprimento da obrigação pelo pai, que, apesar de dispor de recursos, deixa de prestar assistência MATERIAL ao filho, não proporcionando a este condições dignas de sobrevivência e causando danos à sua integridade física, moral, intelectual e psicológica, configura ilícito civil, nos termos do art. 186 do Código Civil.

STJ. 4ª Turma. REsp 1.087.561-RS, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 13/6/2017 (Info 609).



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