quarta-feira, 11 de janeiro de 2023
O estabelecimento comercial - em funcionamento e aberto ao público – não pode receber a proteção que a Constituição Federal confere à casa
Imagine
a seguinte situação hipotética:
A polícia
recebeu denúncia anônima relatando que João utilizava sua borracharia como
depósito de armas e munições.
Os
policiais se dirigiram até o local para investigar.
Após breve
monitoramento, quando não havia mais clientes e João fechava seu
estabelecimento, os policiais realizaram o abordaram e, após ser-lhes
franqueada a entrada no local, localizaram e apreenderam diversas caixas
contendo munições e armamentos, posteriormente identificadas como objeto de
roubo.
Em razão
disso, João foi preso em flagrante e, no interrogatório, disse que foi coagido
a guardar o material apreendido e que “colaborou com a polícia” porque se
sentiu aliviado.
João foi condenado.
Em
apelação, a defesa argumentou que o flagrante foi ilegal porque motivado por
denúncia anônima, o que não seria suficiente para ensejar a violação de
domicílio.
Sustentou
não ser crível a alegação de que o acusado tenha permitido a entrada dos
agentes públicos em sua residência.
O
Tribunal de Justiça manteve a condenação e destacou que:
“(...) em que pese
a ação policial tenha se originado de denúncia anônima, a entrada dos agentes
públicos no estabelecimento comercial do acusado foi por ele franqueada, sem
qualquer oposição. Inclusive, ele mesmo aduz, em seu interrogatório, que ‘colaborou
com a polícia’, pelo que inexiste qualquer dúvida de que o agir dos policiais
estava legitimado.”
A defesa
impetrou habeas corpus no STJ insistindo no argumento de que a entrada dos
policiais no domicílio do paciente foi ilegal, o que invalidaria as provas dela
obtidas.
O STJ
concordou com os argumentos da defesa?
NÃO.
Algumas
premissas teóricas
Nos
termos do art. 5º, inciso XI, da Constituição Federal, “a casa é asilo
inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do
morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar
socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
Sobre
o tema, o STF decidiu que:
A
entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período
noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a
posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante
delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da
autoridade, e de nulidade dos atos praticados.
STF.
Plenário. RE 603616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015
(repercussão geral – Tema 280) (Info 806).
Caso
concreto
No caso
concreto, o STJ considerou que que a abordagem policial foi realizada em um
imóvel no qual funcionava estabelecimento comercial.
Mesmo que a
diligência tenha ocorrido quando não havia mais clientes, no horário em que o
proprietário iria fechar a borracharia, deve ser considerado como local aberto
ao público.
Desse modo,
como se trata de estabelecimento comercial - em funcionamento e aberto ao
público - não pode receber a proteção que a Constituição Federal confere à
casa. Assim, não há violação à garantia constitucional da inviolabilidade do
domicílio, a caracterizar a ocorrência de constrangimento ilegal:
(...)
1. Na hipótese dos autos, policiais militares lograram êxito em apreender com o
paciente considerável quantidade de substância entorpecente, em condições de
fracionamento típicas da mercancia ilícita, além de apetrechos que indicavam o
manuseio e preparação da droga, no interior de um bar - embaixo do balcão -,
estabelecimento comercial que estava aberto ao público.
2.
Desta forma, verifica-se que o estabelecimento comercial - em funcionamento e
aberto ao público - não pode receber a proteção que a Constituição Federal
confere à casa. Assim, não há violação à garantia constitucional da
inviolabilidade do domicílio, a caracterizar a ocorrência de constrangimento
ilegal. (...)
STJ.
5ª Turma. AgRg nos EDcl no HC 704.252/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik,
julgado em 29/03/2022.
Em
suma:
A abordagem policial em estabelecimento
comercial, ainda que a diligência tenha ocorrido quando não havia mais
clientes, é hipótese de local aberto ao público, que não recebe a proteção
constitucional da inviolabilidade do domicílio.
STJ. 6ª Turma. HC 754.789-RS, Rel. Ministro Olindo Menezes (Desembargador convocado do
TRF 1ª Região), julgado em 6/12/2022 (Info 760).
Vamos
analisar um aspecto de direito penal: no caso concreto, João foi condenado por
crime do estatuto do desarmamento em concurso com receptação. Seria possível,
no presente caso, reconhecer o princípio da consunção para ele responder apenas
por um dos delitos?
NÃO.
É
inaplicável o princípio da consunção entre os delitos de receptação e posse ilegal
de arma de fogo, por serem diversas a natureza jurídica dos tipos penais.
STJ. 6ª Turma. HC 754.789/RS, Rel. Min.
Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), julgado em
6/12/2022.
DOD
Plus – julgados correlatos
É
lícita a entrada de policiais, sem autorização judicial e sem o consentimento
do hóspede, em quarto de hotel, desde que presentes fundadas razões da
ocorrência de flagrante delito
É
lícita a entrada de policiais, sem autorização judicial e sem o consentimento
do hóspede, em quarto de hotel não utilizado como morada permanente, desde que
presentes as fundadas razões que sinalizem a ocorrência de crime e hipótese de
flagrante delito.
O
quarto de hotel constitui espaço privado que, segundo entendimento do Supremo
Tribunal Federal, é qualificado juridicamente como “casa” (desde que ocupado)
para fins de tutela constitucional da inviolabilidade domiciliar. No entanto, o
STJ fez uma interessante ressalva. O STJ afirmou que, embora o quarto de hotel
regularmente ocupado seja, juridicamente, qualificado como “casa” para fins de
tutela constitucional da inviolabilidade domiciliar (art. 5º, XI), a exigência,
em termos de standard probatório, para que policiais ingressem em um quarto de
hotel sem mandado judicial não pode ser igual às fundadas razões exigidas para
o ingresso em uma residência propriamente dita, a não ser que se trate (o
quarto de hotel) de um local de moradia permanente do suspeito. Isso porque é
diferente invadir uma casa habitada permanentemente pelo suspeito e até por
várias pessoas (crianças e idosos, inclusive) e um quarto de hotel que, como no
caso, é aparentemente utilizado não como uma morada permanente, mas para outros
fins, inclusive, ao que tudo indica, o comércio de drogas.
No
caso concreto, o STJ afirmou que, antes do ingresso no quarto, os policiais
realizaram diligências investigativas para apurar a veracidade da informação
recebida no sentido de que havia entorpecentes no local.
STJ. 6ª Turma HC 659527-SP, Rel. Min.
Rogerio Schietti Cruz, julgado em 19/10/2021 (Info 715).
A
habitação em prédio abandonado de escola municipal pode caracterizar o conceito
de domicílio em que incide a proteção disposta no art. 5º, XI da Constituição
O
prédio abandonado da escola pública por estar servindo como espaço de moradia
para João, deve receber a proteção constitucional do art. 5º, XI, da CF/88.
No
entanto, no caso concreto, o ingresso dos policiais foi legítimo porque o
prédio abandonado estava em situação precária e, a partir da área externa, era
possível ver o interior da escola, razão pela qual os policiais avistaram João
armado e com a droga. Desse modo, os policiais, da parte de fora da “casa”,
viram que João estava em flagrante delito, o que autoriza o ingresso dos mesmo
sem autorização do morador e independentemente de ordem judicial.
STJ.
5ª Turma AgRg no HC 712529-SE, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 25/10/2022
(Info 755).