Dizer o Direito

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

É possível que o Poder Judiciário conceda autorização para que a pessoa faça o cultivo de maconha com objetivos medicinais

 

Imagine a seguinte situação hipotética

Marta apresenta quadro grave de Epilepsia Refratária. Essa condição a faz ter dezenas de crises epilépticas diárias, além de ter sensibilidade extrema a ruídos, o que a impede de ter uma vida com qualidade e bem-estar.

Diante da ineficiência dos tratamentos convencionais, Marta passou a fazer uso do óleo de canabidiol (CBD Oil – um dos princípios ativos da maconha) para fins terapêuticos, o que resultou em expressiva melhora no seu quadro de saúde, controlando suas crises epilépticas, trazendo avanços significativos em sua qualidade de vida.

Marta possui autorização da ANVISA e faz periodicamente a importação legalizada do óleo que contém canadibiol. No entanto, o processo é burocrático e caro, o que tem dificultado a continuidade do tratamento prescrito.

 

Habeas corpus preventivo

Diante desse cenário, Marta procurou um advogado e impetrou habeas corpus preventivo, na Justiça Federal, pedindo para obter salvo-conduto para que ela fosse autorizada a realizar o cultivo da maconha e a extração doméstica do óleo, por ser essa a melhor forma de prosseguir com o tratamento.

No writ, foi pedido para se “afastar qualquer interpretação ou atuação das autoridades que considerem como infração penal a sua conduta de cultivar a maconha estritamente para fins medicinais”.

Desse modo, o pedido foi para que a paciente pudesse cultivar 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses, chegando-se a 60 plantas ao ano para fins de produção de canabidiol.

 

Segundo a atual jurisprudência do STJ, o pedido pode ser acolhido?

SIM.

Inicialmente, importante ressaltar que havia divergência entre a 5ª e a 6ª Turmas do STJ.

A 5ª Turma negava pedidos semelhantes a esse, enquanto que a 6ª Turma deferia o pleito.

A 5ª Turma, contudo, mudou de entendimento e passou a se alinhar com a 6ª Turma.

Assim, atualmente, o tema está pacificado.

 

 

 

Julgados da 6ª Turma

É cabível a concessão de salvo-conduto para o plantio e o transporte de Cannabis Sativa para fins exclusivamente terapêuticos, com base em receituário e laudo subscrito por profissional médico especializado, e chancelado pela Anvisa.

STJ. 6ª Turma. RHC 147.169, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 14/06/2022.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.972.092, Rel. Min. Rogerio Schietti, julgado em 14/06/2022 (Info 742).

 

Resumo dos principais argumentos:

A previsão legal acerca da possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006, permite concluir tratamento legal díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de tipicidade com a norma penal incriminadora, o uso medicinal, científico ou mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares.

Embora a legislação brasileira possibilite, há anos, a permissão, pelas autoridades competentes, de plantio, cultura e colheita de Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos, fato é que até hoje a matéria não tem regulamentação ou norma específica, o que bem evidencia o descaso, ou mesmo o desprezo – quiçá por razões morais ou políticas – com a situação de uma número incalculável de pessoas que poderiam se beneficiar com tal regulamentação.

O cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica, apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade.

A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco à saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina.

O que se pretende com o plantio da Cannabis não é a extração de droga (maconha) com o fim de entorpecimento – potencialmente causador de dependência – próprio ou alheio, mas, tão somente, a extração das substâncias com reconhecidas propriedades medicinais contidas na planta. Não há, portanto, vontade livre e consciente de praticar o fim previsto na norma penal, qual seja, a extração de droga, para entorpecimento pessoal ou de terceiros.

 

Julgado da 5ª Turma se alinhando à 6ª Turma

As condutas de plantar maconha para fins medicinais e importar sementes para o plantio não preenchem a tipicidade material, motivo pelo qual se faz possível a expedição de salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento.

STJ. 5ª Turma. HC 779.289/DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 22/11/2022 (Info 758).

 

O Tema diz respeito ao direito fundamental à saúde, constante do art. 196 da Carta Magna, que, na hipótese, toca o direito penal, uma vez que o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, determina a repressão ao tráfico e ao consumo de substâncias entorpecentes e psicotrópicas, determinando que essas condutas sejam tipificadas como crime inafiançável e insuscetível de graça e de anistia.

Pela simples leitura da epígrafe da Lei nº 11.343/2006, constata-se que, a contrario sensu, ela não proíbe o uso devido e a produção autorizada. Vale ressaltar, inclusive, que o uso medicinal é previsto expressamente no art. 2º, parágrafo único:

Art. 2º (...)

Parágrafo único.  Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.

 

Os dispositivos da Lei de Drogas que tipificam os crimes, trazem um elemento normativo do tipo redigido nos seguintes termos: “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Portanto, havendo autorização ou determinação legal ou regulamentar, não há se falar em crime.

A despeito da extrema relevância para a saúde de muitas pessoas, até o presente momento, não há qualquer regulamentação da matéria, o que tem ensejado inúmeros pedidos perante Poder Judiciário.

Diante da omissão estatal em regulamentar o plantio para uso medicinal da maconha, não é coerente que o mesmo Estado, que preza pela saúde da população e já reconhece os benefícios medicinais da cannabis sativa, condicione o uso da terapia canábica àqueles que possuem dinheiro para aquisição do medicamento, em regra importado, ou à burocracia de se buscar judicialmente seu custeio pela União.

Desde 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) vem autorizando o uso medicinal de produtos à base de cannabis sativa, havendo, atualmente, autorização sanitária para o uso de 18 fármacos.

A ANVISA já classificou a maconha como planta medicinal (RDC nº 130/2016) e incluiu medicamentos à base de canabidiol e THC que contenham até 30mg/ml de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria nº 344/1998, de modo que a prescrição passou a ser autorizada por meio de Notificação de Receita A e de Termo de Consentimento Informado do Paciente.

Trazendo o exame da matéria mais especificamente para o direito penal, tem-se que o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas é a saúde pública, a qual não é prejudicada pelo uso medicinal da cannabis sativa. Dessa forma, ainda que eventualmente presente a tipicidade formal, não se revelaria presente a tipicidade material ou mesmo a tipicidade conglobante, haja vista ser do interesse do Estado, conforme anteriormente destacado, o cuidado com a saúde da população.

Dessa forma, apesar da ausência de regulamentação pela via administrativa, o que tornaria a conduta atípica formalmente - por ausência de elemento normativo do tipo -, tem-se que a conduta de plantar para fins medicinais não preenche a tipicidade material, motivo pelo qual se faz mister a expedição de salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento, evitando-se, assim, criminalizar pessoas que estão em busca do seu direito fundamental à saúde.

Quanto à importação das sementes para o plantio, tem-se que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça sedimentaram o entendimento de que a conduta não tipifica os crimes da Lei de Drogas, porque tais sementes não contêm o princípio ativo inerente à cannabis sativa. Ficou assentado, outrossim, que a conduta não se ajustaria igualmente ao tipo penal de contrabando, em razão do princípio da insignificância.

Entretanto, considerado o potencial para tipificar o crime de contrabando, importante deixar consignado que, cuidando-se de importação de sementes para plantio com objetivo de uso medicinal, o salvo-conduto deve abarcar referida conduta, para que não haja restrição, por via transversa do direito à saúde.

 

Como ficou o dispositivo do acórdão da 5ª Turma neste caso concreto (informações mais relevantes para a atuação prática – e não tanto para concurso):

Com base nesses argumentos, a Quinta Turma, em evolução de entendimento, passou se alinhar com a Sexta Turma, no sentido de que “sendo possível, em tese, que o ora recorrido tenha sua conduta enquadrada no art. 33, § 1º, da Lei 11.343/2006, punível com pena privativa de liberdade, é indiscutível a adequação da via do habeas corpus para os fins almejados: concessão de salvo-conduto para o plantio e o transporte de Cannabis sativa, da qual se pode extrair, para fins medicinais, a substância necessária para a produção artesanal de medicamentos prescritos”. (REsp 1.988.528/RJ, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 11/10/2022, DJe de 17/10/2022.)

Assim, no caso concreto, como o impetrante comprovou a necessidade do tratamento por meio de canabidiol, bem como evidenciado o risco de vir a sofrer constrangimento ilegal, foi concedido o salvo-conduto, para que ele possa importar sementes e cultivá-las, exclusivamente para fins medicinais, respeitadas as devidas prescrições médicas e o uso estritamente pessoal e intransferível, sendo proibida a sua entrega a terceiros, doação, venda ou qualquer utilização diferente da indicada.

A ordem foi concedida nos seguintes termos:

“expedir salvo-conduto em benefício do paciente, para que as autoridades responsáveis pelo combate ao tráfico de drogas, inclusive da forma transnacional, abstenham-se de promover qualquer medida de restrição de liberdade, bem como de apreensão e/ou destruição dos materiais destinados ao tratamento da saúde do paciente, dentro dos limites da prescrição médica, incluindo a possibilidade de transporte das plantas, partes ou preparados dela, em embalagens lacradas, ao Laboratório de Toxicologia da Universidade de Brasília, ou a qualquer outra instituição dedicada à pesquisa, para análise do material”.



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