Imagine a seguinte situação
hipotética:
Carla estava sendo investigada por
tráfico de drogas e associação para o tráfico.
O juiz autorizou a realização de busca
e apreensão na residência onde mora Carla.
A medida foi cumprida, tendo sido
apreendidos diversos materiais que pertenciam à investigada.
Até aí, tudo bem, não se imaginava que
haveria maiores controvérsias.
O problema é que Carla morava em um
apartamento com a sua mãe Regina.
Regina, por sua vez, é Promotora de
Justiça. Ela argumentou, então, que a busca e apreensão realizada em sua
residência foi nula considerando que a ordem judicial foi exarada por um juiz
de 1ª instância e os membros do Ministério Público possuem foro por prerrogativa
de função, sendo julgados pelo Tribunal de Justiça (e não pelos juízos em 1ª instância).
Assim, segundo argumentou Regina, quem
deveria ter autorizado a busca e apreensão em sua casa teria que ser um
Desembargador do Tribunal de Justiça (e não um juiz de 1ª instância).
O argumento invocado foi acolhido pelo
STJ?
NÃO.
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer
que, segundo a orientação fixada pelo STF na Questão de Ordem na AP 937, o foro
por prerrogativa de função é restrito a crimes cometidos ao tempo do exercício
do cargo e que tenham relação com este. Vale ressaltar, contudo, que o STJ já
decidiu que:
A competência para o julgamento de crime praticado por Promotor
de Justiça, em contexto que não guarda relação com as atribuições do cargo, é
do Tribunal de Justiça, revelando-se inviável a extensão do entendimento exarado
pelo STF na QO na AP 937.
STJ. 5ª Turma. HC
684.254-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 23/11/2021.
Assim, prevalece o entendimento
de que, mesmo se o Promotor de Justiça praticar um crime fora do exercício de
suas funções, a competência para julgá-lo seria do Tribunal de Justiça.
Ocorre que a presente situação é
diferente. Não se está tratando de crime cometido por membro do Ministério
Público, mas sim de infração praticada por um familiar seu.
O foro “privilegiado” consiste em
uma garantia conferida a determinadas autoridades para assegurar-lhes o livre
exercício do cargo. Não se trata de imunidade penal ou de garantia de não ser
importunado.
No caso, considerando que a
pessoa que a Promotora de Justiça não é objeto da investigação, não há razão
para se estender à sua filha a prerrogativa de foro, ainda que compartilhem o
mesmo domicílio.
Sobre o tema, o STF também já decidiu que a prerrogativa de
foro se relaciona à autoridade, e não à titularidade de um imóvel. No
julgamento da Reclamação 36.956/SP, de relatoria do ministro Gilmar Mendes,
ficou definido que a questão central para validar a admissibilidade da
diligência é a incomunicabilidade do seu resultado com o titular da
prerrogativa de foro. Confira as palavras do Ministro Gilmar Mendes na oportunidade:
“(...) o Supremo Tribunal Federal pacificou o
entendimento de que a prerrogativa de foro junto à Corte se relaciona à autoridade,
e não à titularidade de um imóvel. Na ocasião do julgamento da Reclamação
24.473/SP, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, ficou definido que a questão
central para validar a admissibilidade de diligência e de qualquer medida
invasiva, deferida por juízo diverso do STF, é a incomunicabilidade do resultado
da diligência com o titular da prerrogativa de foro.
Mais
recentemente, na Reclamação 25.537/DF (Rel. Min. Edson Fachin), o Plenário reafirmou
sua jurisprudência no sentido de que a Constituição Federal não elegeu o local
da realização da diligência como fator de determinação da competência desta
Corte.”
Ficou demonstrado, na situação concreta,
que foram apreendidos unicamente bens de exclusiva propriedade da investigada
Carla e estritamente relacionados com a prática criminosa, não tendo sido
apreendidos bens ou materiais pertencentes à autoridade com foro privativo,
razão pela qual não há que se falar em ilegalidade da diligência.
Em suma:
STJ. 5ª
Turma. AgRg no REsp 2.020.411/SC, Rel. Ministro Reynaldo Soares da
Fonseca, julgado em 25/10/2022 (Info 759).
DOD Plus –
julgado correlato
Em casos como o acima narrado, o
fundamental é saber se a pessoa com foro por prerrogativa de função acabou
sendo também, indiretamente, investigada, ou seja, se também foram colhidos
materiais que pertenciam à autoridade.
Nesse sentido, confira esse outro
caso no qual o STF reconheceu a ilicitude da diligência:
Busca e apreensão ordenada
contra o marido da Senadora, mas cujo cumprimento ocorreu no imóvel funcional
onde ambos residem: deve-se observar as regras de foro privativo
Paulo Bernardo era investigado e o juiz de 1º grau determinou,
contra ele, busca e apreensão.
Ocorre que Paulo Bernardo residia com a sua esposa, a Senadora
Gleisi Hoffmann, em um imóvel funcional cedido pelo Senado.
Desse modo, a busca e apreensão foi realizada neste imóvel
funcional.
O STF entendeu que esta prova foi ilícita (art. 5º, LVI, da
CF/88) e determinou a sua inutilização e o desentranhamento dos autos de todas
as provas obtidas por meio da referida diligência.
O Supremo entendeu que a ordem judicial de busca e apreensão foi
ampla e vaga, sem prévia individualização dos bens que seriam de titularidade
da Senadora e daqueles que pertenciam ao seu marido.
Diante disso, o STF entendeu que o juiz, ao dar essa ordem
genérica, acabou por também determinar medida de investigação contra a própria
Senadora. Logo, como ela tinha foro por prerrogativa de função no STF (art.
102, I, “b”, da CF/88), somente o Supremo poderia ter ordenado qualquer medida
de investigação contra a parlamentar federal. Isso significa que o juiz de 1ª
instância usurpou uma competência que era do STF.
Reconheceu, por conseguinte, a ilicitude da prova obtida (art.
5º, LVI, da CF/88) e de outras diretamente dela derivadas.
STF. 2ª Turma.
Rcl 24473/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 26/6/2018 (Info 908).