Dizer o Direito

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

A indicação de julgado simples e isolado não ostenta a natureza jurídica de ‘súmula, jurisprudência ou precedente’ para fins de aplicação do art. 489, § 1º, VI, do CPC

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina, servidora pública estadual, ajuizou ação pedindo a concessão de determinada gratificação.

O juiz julgou o pedido improcedente, fazendo com que a autora interpusesse apelação, distribuída para a 5ª Câmara Cível do TJ.

Antes que o recurso fosse julgado, a recorrente Regina ingressou com petição dirigida ao Desembargador Relator noticiando que a mesma Câmara Cível do TJ prolatou acórdão em caso idêntico ao seu, envolvendo a servidora Francisca, no qual o órgão julgador reconheceu que ela teria direito à referida gratificação.

Mesmo assim, a 5ª Câmara Cível do TJ negou provimento ao recurso de Regina expondo, de forma fundamentada, os motivos pelos quais entendia que essa gratificação não seria devida.

Vale ressaltar, contudo, que o acórdão nada mencionou sobre a petição de Regina nem a respeito do julgamento envolvendo Francisca.

Inconformada, Regina opôs embargos de declaração alegando que o órgão julgador se omitiu em relação ao acórdão por ela juntado, proferido pela mesma câmara cível, de modo que, ao julgar de forma diversa, incorreu em violação ao art. 926 e ao art. 489, § 1º, VI do CPC:

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

 

Art. 489. (...) § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

(...)

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

 

þ (Fafipa/PGM/Foz_do_Iguaçu/Procurador/2019) A decisão judicial que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, será considerada sem fundamentação. (certo)

 

Os embargos de declaração foram rejeitados, tendo sido aplicada multa por caráter protelatório.

Irresignada, Regina interpôs recurso especial alegando que o Tribunal de origem teria se negado a promover a distinção ou superação de precedente do mesmo órgão jurisdicional, que teria decidido a questão em sentido contrário. Com isso, teria descumprido o art. 489, §1º, VI, do Código vigente.

 

O STJ concordou com os argumentos de Regina? Houve violação do art. 489, § 1º, VI, do CPC?

NÃO.

O art. 489, § 1º, VI, do CPC prevê que há negativa de prestação jurisdicional quando o órgão julgador “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

No caso, a parte interessada, antes da oposição de embargos de declaração, indicou um único acórdão do Tribunal de origem supostamente em confronto com a decisão recorrida, por tratar de mesma questão.

Logo, a indicação de julgado simples e isolado não ostenta a natureza jurídica de “súmula, jurisprudência ou precedente” para fins de aplicação do art. 489, § 1º, VI, do CPC.

Não é jurisprudência, porque essa pressupõe multiplicidade de julgamentos no mesmo sentido, raciocínio que, de boa lógica, também exclui a hipótese de considerar um caso isolado como súmula de entendimento.

Também não se pode considerar que a expressão “precedente” abrange o julgamento de qualquer acórdão. Isso porque a interpretação sistemática do Código de Processo Civil, notadamente a leitura do art. 927, que dialoga diretamente com o 489, evidencia que “precedente” abarca somente os casos julgados na forma qualificada pelo primeiro comando normativo citado, não tendo o termo abarcado de maneira generalizada nenhuma decisão judicial:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

 

A recorrente também alegou que a decisão do TJ, ao não mencionar nada sobre o outro julgado da Câmara Cível, revelou-se nula por se caracterizar como decisão-surpresa, violando o art. 10 do CPC:

Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

 

O STJ também não concordou.

A proteção conferida pelo Código de Processo Civil contra decisões-surpresa não pode inviabilizar que o juiz conheça do direito alegado e determine a exegese a ser aplicada ao caso.

No caso concreto a causa foi decidida nos limites do objeto da ação, não podendo ter causado surpresa à parte se era uma das consequências previsíveis do julgamento.

Não se pode falar em decisão-surpresa quando o magistrado, diante dos limites da causa de pedir, do pedido e do substrato fático delineado nos autos, realiza a tipificação jurídica da pretensão no ordenamento jurídico posto, aplicando a lei adequada à solução do conflito, ainda que as partes não a tenham invocado (iura novit curia) e independentemente de ouvi-las, até porque a lei deve ser de conhecimento de todos, não podendo ninguém se dizer surpreendido com a sua aplicação (STJ. 2ª Turma. AgInt no AREsp 2.028.275/MS, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 29/6/2022).

 

Em suma:

 


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