Imagine
a seguinte situação hipotética:
Regina, servidora pública estadual, ajuizou ação pedindo a concessão
de determinada gratificação.
O juiz julgou o pedido improcedente, fazendo com
que a autora interpusesse apelação, distribuída para a 5ª Câmara Cível do TJ.
Antes que o recurso fosse julgado, a recorrente
Regina ingressou com petição dirigida ao Desembargador Relator noticiando que a
mesma Câmara Cível do TJ prolatou acórdão em caso idêntico ao seu, envolvendo a
servidora Francisca, no qual o órgão julgador reconheceu que ela teria direito à
referida gratificação.
Mesmo assim, a 5ª Câmara Cível do TJ negou
provimento ao recurso de Regina expondo, de forma fundamentada, os motivos
pelos quais entendia que essa gratificação não seria devida.
Vale ressaltar, contudo, que o acórdão nada
mencionou sobre a petição de Regina nem a respeito do julgamento envolvendo
Francisca.
Inconformada, Regina opôs embargos de
declaração alegando que o órgão julgador se omitiu em relação ao acórdão por
ela juntado, proferido pela mesma câmara cível, de modo que, ao julgar de forma
diversa, incorreu em violação ao art. 926 e ao art. 489, § 1º, VI do CPC:
Art. 926.
Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e
coerente.
Art. 489.
(...) § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela
interlocutória, sentença ou acórdão, que:
(...)
VI -
deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado
pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a
superação do entendimento.
þ (Fafipa/PGM/Foz_do_Iguaçu/Procurador/2019)
A decisão judicial que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou
precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no
caso em julgamento ou a superação do entendimento, será considerada sem
fundamentação. (certo)
Os embargos de declaração foram rejeitados, tendo
sido aplicada multa por caráter protelatório.
Irresignada, Regina interpôs recurso especial
alegando que o Tribunal de origem teria se negado a promover a distinção ou
superação de precedente do mesmo órgão jurisdicional, que teria decidido a
questão em sentido contrário. Com isso, teria descumprido o art. 489, §1º, VI,
do Código vigente.
O STJ concordou com os argumentos de Regina?
Houve violação do art. 489, § 1º, VI, do CPC?
NÃO.
O art. 489, § 1º, VI, do CPC prevê que
há negativa de prestação jurisdicional quando o órgão julgador “deixar de
seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte,
sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação
do entendimento”.
No caso, a parte interessada, antes da
oposição de embargos de declaração, indicou um único acórdão do Tribunal de
origem supostamente em confronto com a decisão recorrida, por tratar de mesma
questão.
Logo, a indicação de julgado simples e
isolado não ostenta a natureza jurídica de “súmula, jurisprudência ou
precedente” para fins de aplicação do art. 489, § 1º, VI, do CPC.
Não é jurisprudência, porque essa
pressupõe multiplicidade de julgamentos no mesmo sentido, raciocínio que, de
boa lógica, também exclui a hipótese de considerar um caso isolado como súmula
de entendimento.
Também não se pode considerar que a
expressão “precedente” abrange o julgamento de qualquer acórdão. Isso porque a
interpretação sistemática do Código de Processo Civil, notadamente a leitura do
art. 927, que dialoga diretamente com o 489, evidencia que “precedente” abarca
somente os casos julgados na forma qualificada pelo primeiro comando normativo
citado, não tendo o termo abarcado de maneira generalizada nenhuma decisão
judicial:
Art. 927.
Os juízes e os tribunais observarão:
I - as
decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de
constitucionalidade;
II - os
enunciados de súmula vinculante;
III - os
acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas
repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os
enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e
do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a
orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
A recorrente também alegou que a
decisão do TJ, ao não mencionar nada sobre o outro julgado da Câmara Cível,
revelou-se nula por se caracterizar como decisão-surpresa, violando o art. 10
do CPC:
Art. 10.
O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a
respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar,
ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
O STJ também não concordou.
A proteção conferida pelo Código de
Processo Civil contra decisões-surpresa não pode inviabilizar que o juiz
conheça do direito alegado e determine a exegese a ser aplicada ao caso.
No caso concreto a causa foi decidida
nos limites do objeto da ação, não podendo ter causado surpresa à parte se era uma
das consequências previsíveis do julgamento.
Não se pode falar em decisão-surpresa
quando o magistrado, diante dos limites da causa de pedir, do pedido e do
substrato fático delineado nos autos, realiza a tipificação jurídica da
pretensão no ordenamento jurídico posto, aplicando a lei adequada à solução do
conflito, ainda que as partes não a tenham invocado (iura novit curia) e
independentemente de ouvi-las, até porque a lei deve ser de conhecimento de
todos, não podendo ninguém se dizer surpreendido com a sua aplicação (STJ. 2ª
Turma. AgInt no AREsp 2.028.275/MS, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 29/6/2022).
Em
suma:
STJ. 1ª Turma. AREsp 1.267.283-MG, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 27/09/2022 (Info
760).