Dizer o Direito

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

A condenação deve ser mantida se ela foi lastreada não apenas no ato de reconhecimento realizado pela vítima (considerado inválido), mas também nas demais provas coligidas aos autos

 

O que é o reconhecimento de pessoas e coisas?

É um meio de prova, previsto nos arts. 226 a 288 do CPP.

Um indivíduo conhece ou viu determinada pessoa ou coisa que supostamente está relacionado com um crime que está sendo apurado.

Esse indivíduo é chamado pelos órgãos de persecução penal para dizer se a pessoa ou coisa que lhe será mostrada realmente é aquela que ele conhece ou que viu.

Ex: uma testemunha viu a pessoa que matou a vítima e depois fugiu. Tempos depois, a polícia prende um homem suspeito de ser o autor do crime. Esse suspeito será mostrado à testemunha para que ela diga se ele é, ou não, o indivíduo que viu no momento do crime.

 

Formalidades

O art. 226 do CPP descreve um procedimento para a realização do reconhecimento de pessoas e coisas:

1ª etapa: o indivíduo que tiver de fazer o reconhecimento será convidado a descrever a pessoa que deva ser reconhecida. Ex: a pessoa tem aproximadamente 1,80m, pele branca, cabelo preto, uma cicatriz no rosto etc.

2ª etapa: a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança. Em seguida, pede-se para o indivíduo que fará o reconhecimento apontar qual é daquelas pessoas que estão lado a lado.

Algumas vezes, o fato de o indivíduo estar face a face com a pessoa a ser reconhecida pode gerar intimidação ou outra influência negativa que lhe impeça de dizer a verdade. Por isso, a lei permite que a pessoa a ser reconhecida não veja o indivíduo que fará o reconhecimento. Isso é feito, por exemplo, por meio de “vidros espelhados” nos quais somente um dos lados enxerga o outro. Obs: vale ressaltar essa cautela só pode ser feita na fase de investigação pré-processual. Na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento a pessoa a ser reconhecida terá direito de também ver o indivíduo que está lhe reconhecendo, sendo esse ato feito ainda na presença do juiz, do Ministério Público e da defesa.

3ª etapa: será lavrado um auto pormenorizado narrando o que ocorreu no ato de reconhecimento. Esse auto deverá ser subscrito pela autoridade, pelo indivíduo que foi chamado para fazer o reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

 

Obs: no caso de reconhecimento de objeto também deverão ser observadas, no que couber, as cautelas previstas para o reconhecimento pessoal (art. 227).

Obs2: se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas (art. 228).

 

Como vimos acima, o art. 226 do CPP estabelece formalidades para o reconhecimento de pessoas (reconhecimento pessoal). O descumprimento dessas formalidades enseja a nulidade do reconhecimento?

SIM. A partir do entendimento firmado no HC 598.886-SC, o STJ passou a entender que:

1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime;

2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo;

3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento;

4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.

STJ. 6ª Turma. HC 598.886-SC, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 27/10/2020 (Info 684).

 

Imagine agora a seguinte situação adaptada:

No dia 26/06, Antônio e Inácio, Investigadores de Polícia Civil, no exercício da função, abordaram o veículo da vítima Marcelo e exigiram a quantia de R$ 10 mil para permitir que este transportasse eletrônicos provenientes do Paraguai até Londrina/PR.

A vítima negociou com os policiais a redução da quantia exigida para R$ 8 mil, divididos em duas parcelas de R$ 4 mil cada uma.

Na ocasião, os policiais ainda exigiram que a vítima entregasse R$ 400,00, disponíveis em sua carteira, o que foi feito, e marcaram o encontro para a entrega da primeira parcela da quantia exigida para três dias depois, em um posto de combustíveis.

No dia 29/06, quando a vítima entregava a Antônio a quantia de R$ 4 mil, primeira parcela exigida, policiais civis lotados na Corregedoria, cientes do encontro, efetuaram a prisão em flagrante de Antônio. Vale ressaltar que Inácio não estava no local neste dia.

Após o flagrante, todos os envolvidos foram conduzidos à delegacia. Na ocasião, foram mostradas fotos dos policiais que trabalham na região, oportunidade em que a vítima reconheceu Inácio, com sendo o outro policial que exigiu dinheiro.

Na sequência, ao pesquisarem fotos de Inácio no Facebook, a vítima reconheceu em umas das imagens que o policial estava com a mesma touca usada no momento do delito. Segundo a vítima, esse segundo policial “sempre estava usando um gorro na cabeça e tinha barba grisalha”.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra Antônio e Inácio.

Em juízo, a vítima e os policiais da Corregedoria foram ouvidos.

A defesa de Inácio alegou a nulidade do reconhecimento fotográfico porque foi desrespeitado por completo o art. 226 do CPP. Logo, postulou pela absolvição do agente.

O caso chegou ao STJ.

 

Inácio foi absolvido?

NÃO.

No julgamento do HC 598.886/SC, a 6ª Turma do STJ determinou que, a partir daquele entendimento, deveria ser reconhecida “a invalidade de qualquer reconhecimento formal - pessoal ou fotográfico - que não siga estritamente o que determina o art. 226 do CPP, sob pena de continuar-se a gerar uma instabilidade e insegurança de sentenças judiciais”.

Posteriormente, em sessão ocorrida no dia 15/03/2022, a 6ª Turma, por ocasião do julgamento do HC 712.781/RJ, avançou em relação à compreensão anteriormente externada no HC 598.886/SC e decidiu que, mesmo se realizado em conformidade com o modelo legal (art. 226 do CPP), o reconhecimento pessoal, embora seja válido, não tem força probante absoluta, de sorte que não pode induzir, por si só, à certeza da autoria delitiva, em razão de sua fragilidade epistêmica.

Todavia, no caso, a condenação não foi baseada apenas no reconhecimento realizado pela vítima, mas, também, nas demais provas coligidas aos autos, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.

Desse modo, se as demais provas que compuseram o acervo fático-probatório amealhado aos autos foram produzidas por fonte independente da que culminou com o elemento informativo obtido por meio do reconhecimento fotográfico realizado na fase inquisitiva, de maneira que, ainda que o reconhecimento haja sido feito em desacordo com o modelo legal e, assim, não possa ser sopesado, nem mesmo de forma suplementar, para fundamentar a condenação do réu, aquelas provas, independentes e suficientes o bastante, produzidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, podem lastrear o decreto condenatório.

 

Em suma:

Ainda que o reconhecimento fotográfico esteja em desacordo com o procedimento previsto no art. 226 do CPP, deve ser mantida a condenação quando houver outras provas produzidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, independentes e suficientes o bastante, para lastrear o decreto condenatório.

STJ. 6ª Turma. AgRg nos EDcl no HC 656.845-PR, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 04/10/2022 (Info 758).

 

No mesmo sentido:

A desconformidade ao regime procedimental determinado no art. 226 do CPP deve acarretar a nulidade do ato e sua desconsideração para fins decisórios, justificando-se eventual condenação somente se houver elementos independentes para superar a presunção de inocência.

STF. 2ª Turma. RHC 206846/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 22/2/2022 (Info 1045).



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