Imagine a seguinte situação hipotética:
João foi denunciado por tentativa
de homicídio.
O réu foi pronunciado e levado a julgamento.
O Tribunal do Júri desclassificou
o homicídio tentado para o crime de lesões corporais (art. 129 do CP).
O Promotor de Justiça interpôs apelação afirmando que a
decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos. Essa
hipótese de cabimento é prevista no art. 593, III, “d”, do CPP:
Art. 593. Caberá apelação no
prazo de 5 (cinco) dias:
(...)
III - das decisões do Tribunal do
Júri, quando:
(...)
d) for a decisão dos jurados
manifestamente contrária à prova dos autos.
O Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso para
determinar a realização de novo Júri, conforme preconiza o § 3º do art. 593 do
CPP:
Art. 593 (...)
§ 3º Se a apelação se fundar no
nº III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que
a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o
réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda
apelação.
A defesa impetrou habeas
corpus contra o acórdão do TJ alegando que não se pode falar que a decisão
dos jurados está manifestamente contrária à prova dos autos. Existiram
duas teses: uma de acusação e outra defensiva. Os jurados analisaram os fatos e
os argumentos e optaram pela tese defensiva. Logo, não poderia o Tribunal de
Justiça substituir a decisão dos jurados considerando que ela não foi teratológica.
O STJ concordou com os
argumentos da defesa?
SIM.
O art. 593, III, “d”, do CPP deve
ser interpretado de forma estrita. Isso porque o art. 5º, XXXVIII, da CF/88,
assegura a soberania dos veredictos. Assim, só se admite a rescisão do
veredicto popular quando ele tiver sido proferido ao arrepio de todo material
probatório produzido durante a instrução processual penal.
Se existir outra tese plausível,
ainda que frágil e questionável, e os jurados optarem por ela, a decisão deve
ser mantida, sobretudo considerando que os jurados julgam segundo sua íntima
convicção, sem a necessidade de fundamentar seus votos. Os jurados são livres
na valoração das provas.
Não é possível questionar a
interpretação dada aos acontecimentos pelo Conselho de Sentença, salvo quando
ausente elemento probatório que a corrobore.
Portanto, conforme a doutrina, o “ideal
é anular o julgamento, em juízo rescisório, determinando a realização de outro,
quando efetivamente o Conselho de Sentença equivocou-se, adotando tese
integralmente incompatível com as provas dos autos. Não cabe anulação quando os
jurados optam por umas das correntes de interpretação da prova possíveis de
surgir” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado.
Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1.237).
No caso em tela, o Tribunal de Justiça
entendeu que a decisão do Conselho de sentença seria manifestamente contrária à
prova dos autos, determinando a realização de novo julgamento.
Contudo, o STJ notou que a
decisão dos jurados não foi manifestamente contrária à prova dos autos, uma vez
que foi consignado no acórdão o debate da tese defensiva no Conselho de
Sentença.
Em suma:
O art. 563, inciso III, alínea “d”, do CPP deve ser
interpretado de forma estrita, permitindo a rescisão do veredicto popular
somente quando a conclusão alcançada pelos jurados seja teratológica,
completamente divorciada do conjunto probatório constante do processo.
STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 482.056-SP, Rel. Min. Antonio Saldanha
Palheiro, julgado em 02/08/2022 (Info 752).