Dizer o Direito

sábado, 3 de dezembro de 2022

São atípicas as condutas de submeter-se à vacinação contra Covid-19 em local diverso do agendado e/ou com aplicação de imunizante diverso do reservado e/ou de submeter-se à vacinação sem a realização de agendamento (Caso Wesley Safadão)

 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

Consta dos autos que, no dia 08/07/2021, o cantor Wesley Safadão e sua assessora Sabrina teriam tomado a vacina para Covid-19 em local diverso daquele que havia sido previamente agendado. Além disso, o agendamento seria para que Safadão e Sabrina tomassem a vacina do laboratório AstraZeneca, mas eles teriam agido com o propósito de receber outra vacina, qual seja, a da Janssen. O objetivo seria o de garantir acesso aos EUA, onde o artista faria shows.

Outra conduta diz respeito à Thyane Dantas (esposa do cantor). Ela teria tomado a vacina sem ter feito agendamento prévio, utilizando-se, supostamente, da influência do marido para ser imunizada antes do prazo.

O Ministério Público do Estado do Ceará iniciou investigação para apurar eventuais crimes que pudessem ter sido cometidos pelos três nas condutas acima narradas.

A defesa, contudo, impetrou habeas corpus pedindo o trancamento da investigação criminal.

O Tribunal de Justiça do Ceará entendeu que a apuração deveria continuar considerando que as condutas poderiam, em tese, na visão daquela Corte, configurar os crimes de peculato (art. 312 do CP) ou corrupção passiva (art. 317, § 2º):

Peculato

Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: (...)

 

Corrupção passiva

Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

(...)

 § 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem: (...)

 

Inconformada por não ter seu pleito atendido, a defesa interpôs recurso ordinário contra o acórdão do TJ/CE e a questão chegou ao STJ.

 

Para o STJ, a conduta dos três investigados caracterizou algum crime?

NÃO.

A pandemia de Covid-19 gerou uma situação de pânico e angústia, levando o país a uma crise sanitária sem precedentes. O desespero tomou conta de muitos, provocando a prática de condutas moralmente reprováveis, noticiadas diariamente pela imprensa, de tentativa de burla à ordem estabelecida pelos planos nacionais, estaduais ou municipais.

Essas condutas de desrespeito às regras de vacinação, embora moralmente reprováveis, não caracterizam ilícito penal, em especial em face do princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal), que estabelece que somente pode haver responsabilização criminal por condutas previamente criminalizadas, adequada e claramente descritas pelo legislador.

No caso em análise, são atípicas, por falta de previsão legal, a conduta de submeter-se à vacinação contra covid-19 em local diverso do agendado e/ou com aplicação de imunizante diverso do reservado e/ou de submeter-se à vacinação contra Covid-19 sem a realização de agendamento.

 

Por que não é o crime de peculato?

As condutas imputadas não se amoldam ao tipo em questão porque ausentes os elementos objetivos (verbos nucleares) contidos no art. 312 do Código Penal.

Não houve apropriação, tampouco desvio de doses de vacina contra a Covid-19, já que destinadas à população em geral, grupo em que se enquadram os investigados, uma vez que tinham o direito de ser vacinados (embora em local ou momento diverso). A saúde é um direito de todos, direito social que é assegurado pelo art. 6º da CF/88.

 

Por que não é o crime de corrupção passiva privilegiada?

O crime de corrupção passiva privilegiada está descrito nos seguintes termos:

§ 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem: (...)

 

O tipo penal em questão criminaliza, de maneira mais branda, a conduta do agente que pratica ato de ofício, com violação de dever funcional a pedido de alguém que exerce algum tipo de influência sobre sua atuação, sem solicitação ou recebimento de vantagem ilícita.

No caso, entende o Ministério Público que os funcionários envolvidos teriam facilitado a vacinação questionada pelo fato de Wesley Safadão ser cantor de renome nacional. Logo, esses funcionários teriam praticado o crime de corrupção passiva privilegiada e, consequentemente, Wesley, sua assessora e sua esposa também teriam cometido o delito.

Ocorre que os crimes de corrupção passiva e ativa configuram uma exceção à teoria monista do concurso de pessoas, sendo tipos penais autônomos. Assim, a circunstância de encontrarem tipificação distinta faz com que a atividade criminosa do corruptor seja distinta daquela realizada pelo corrupto.

Por esse motivo, não se admite a configuração de concurso de pessoas entre os supostos corruptos e os supostos corruptores em um mesmo tipo penal, pois a existência de tipos penais diversos torna inviável essa coautoria. Dito de modo mais simples: o corruptor responde pelo crime do art. 333 do CP (corrupção ativa) enquanto que o corrompido responde pelo art. 317 do CP (corrupção passiva).

Na corrupção ativa não existe uma modalidade privilegiada, como existe no art. 317, § 2º. Para o corruptor responder pelo crime ele precisa “oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público”, o que não foi o caso.

A opção do legislador de não prever, na corrupção ativa, uma modalidade privilegiada, denota o claro desejo de não criminalizar a conduta daquele que exerce algum tipo de influência social (que não envolva oferta ou pagamento de vantagem ilícita) sobre o funcionário público, sendo, portanto, uma escolha do legislador de não criminalizar o agente corruptor por coautoria na corrupção passiva privilegiada.

Incabível, portanto, a pretensão do MP de responsabilizar os investigados por corrupção passiva em coautoria com funcionários públicos que supostamente a praticaram.

 

Projeto de lei 25/2021

A reprovabilidade das condutas dos “fura-filas” levou a Câmara dos Deputados a aprovar o Projeto de Lei nº 25/2021, que acresce os arts. 268-A, 312-A e 317-A ao Código Penal para tipificar as condutas de infração de medida de imunização, bem como de corrupção em planos de imunização, projeto que aguarda apreciação pelo Senado Federal.

O indicado projeto de lei tramita conjuntamente com outros que tipificam a conduta de burlar a ordem de vacinação estabelecida pelo Poder Público durante situação de emergência em saúde pública de importância nacional.

Assim, a movimentação do Poder Legislativo para criminalizar as condutas de burla aos planos de vacinação robustece a conclusão de inadequação do ordenamento jurídico em vigor para subsunção dos fatos narrados na denúncia ofertada em desfavor dos investigados.

Registre-se que o direito penal não admite punição por interpretação extensiva ou analógica, exatamente em face do princípio da reserva legal.

Portanto, é incabível, por falta de amparo legal, a pretensão do Ministério Público de exercer pretensão punitiva ancorada em interpretação extensiva, através do desvirtuamento da mens legis.

Incabível a utilização do processo penal para se estabelecer um poder punitivo despido de limites. Ao contrário, o limite está exatamente na prévia previsão legal da conduta típica em tese punida.

 

Em suma:


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