sábado, 3 de dezembro de 2022
São atípicas as condutas de submeter-se à vacinação contra Covid-19 em local diverso do agendado e/ou com aplicação de imunizante diverso do reservado e/ou de submeter-se à vacinação sem a realização de agendamento (Caso Wesley Safadão)
A situação concreta, com
adaptações, foi a seguinte:
Outra conduta diz respeito à Thyane Dantas (esposa
do cantor). Ela teria tomado a vacina sem ter feito agendamento prévio, utilizando-se,
supostamente, da influência do marido para ser imunizada antes do prazo.
O Ministério Público do
Estado do Ceará iniciou investigação para apurar eventuais crimes que pudessem
ter sido cometidos pelos três nas condutas acima narradas.
A
defesa, contudo, impetrou habeas corpus pedindo o trancamento da investigação
criminal.
O Tribunal de
Justiça do Ceará entendeu que a apuração deveria continuar considerando que as
condutas poderiam, em tese, na visão daquela Corte, configurar os crimes de
peculato (art. 312 do CP) ou corrupção passiva (art. 317, § 2º):
Peculato
Art.
312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro
bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou
desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: (...)
Corrupção
passiva
Art.
317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem
indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:
(...)
§
2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com
infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem: (...)
Inconformada
por não ter seu pleito atendido, a defesa interpôs recurso ordinário contra o
acórdão do TJ/CE e a questão chegou ao STJ.
Para
o STJ, a conduta dos três investigados caracterizou algum crime?
NÃO.
A
pandemia de Covid-19 gerou uma situação de pânico e angústia, levando o país a
uma crise sanitária sem precedentes. O desespero tomou conta de muitos,
provocando a prática de condutas moralmente reprováveis, noticiadas diariamente
pela imprensa, de tentativa de burla à ordem estabelecida pelos planos
nacionais, estaduais ou municipais.
Essas
condutas de desrespeito às regras de vacinação, embora moralmente reprováveis,
não caracterizam ilícito penal, em especial em face do princípio da legalidade
(art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal), que estabelece que somente pode
haver responsabilização criminal por condutas previamente criminalizadas,
adequada e claramente descritas pelo legislador.
No
caso em análise, são atípicas, por falta de previsão legal, a conduta de
submeter-se à vacinação contra covid-19 em local diverso do agendado e/ou com aplicação
de imunizante diverso do reservado e/ou de submeter-se à vacinação contra Covid-19
sem a realização de agendamento.
Por
que não é o crime de peculato?
As
condutas imputadas não se amoldam ao tipo em questão porque ausentes os
elementos objetivos (verbos nucleares) contidos no art. 312 do Código Penal.
Não
houve apropriação, tampouco desvio de doses de vacina contra a Covid-19, já que
destinadas à população em geral, grupo em que se enquadram os investigados, uma
vez que tinham o direito de ser vacinados (embora em local ou momento diverso).
A saúde é um direito de todos, direito social que é assegurado pelo art. 6º da CF/88.
Por
que não é o crime de corrupção passiva privilegiada?
O crime de
corrupção passiva privilegiada está descrito nos seguintes termos:
§
2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com
infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem: (...)
O
tipo penal em questão criminaliza, de maneira mais branda, a conduta do agente
que pratica ato de ofício, com violação de dever funcional a pedido de alguém
que exerce algum tipo de influência sobre sua atuação, sem solicitação ou
recebimento de vantagem ilícita.
No
caso, entende o Ministério Público que os funcionários envolvidos teriam facilitado
a vacinação questionada pelo fato de Wesley Safadão ser cantor de renome
nacional. Logo, esses funcionários teriam praticado o crime de corrupção
passiva privilegiada e, consequentemente, Wesley, sua assessora e sua esposa
também teriam cometido o delito.
Ocorre
que os crimes de corrupção passiva e ativa configuram uma exceção à teoria
monista do concurso de pessoas, sendo tipos penais autônomos. Assim, a
circunstância de encontrarem tipificação distinta faz com que a atividade
criminosa do corruptor seja distinta daquela realizada pelo corrupto.
Por
esse motivo, não se admite a configuração de concurso de pessoas entre os supostos
corruptos e os supostos corruptores em um mesmo tipo penal, pois a existência
de tipos penais diversos torna inviável essa coautoria. Dito de modo mais
simples: o corruptor responde pelo crime do art. 333 do CP (corrupção ativa)
enquanto que o corrompido responde pelo art. 317 do CP (corrupção passiva).
Na
corrupção ativa não existe uma modalidade privilegiada, como existe no art. 317,
§ 2º. Para o corruptor responder pelo crime ele precisa “oferecer ou prometer
vantagem indevida a funcionário público”, o que não foi o caso.
A
opção do legislador de não prever, na corrupção ativa, uma modalidade privilegiada,
denota o claro desejo de não criminalizar a conduta daquele que exerce algum
tipo de influência social (que não envolva oferta ou pagamento de vantagem
ilícita) sobre o funcionário público, sendo, portanto, uma escolha do
legislador de não criminalizar o agente corruptor por coautoria na corrupção
passiva privilegiada.
Incabível,
portanto, a pretensão do MP de responsabilizar os investigados por corrupção passiva
em coautoria com funcionários públicos que supostamente a praticaram.
Projeto
de lei 25/2021
A
reprovabilidade das condutas dos “fura-filas” levou a Câmara dos Deputados a
aprovar o Projeto de Lei nº 25/2021, que acresce os arts. 268-A, 312-A e 317-A
ao Código Penal para tipificar as condutas de infração de medida de imunização,
bem como de corrupção em planos de imunização, projeto que aguarda apreciação
pelo Senado Federal.
O
indicado projeto de lei tramita conjuntamente com outros que tipificam a
conduta de burlar a ordem de vacinação estabelecida pelo Poder Público durante
situação de emergência em saúde pública de importância nacional.
Assim,
a movimentação do Poder Legislativo para criminalizar as condutas de burla aos planos
de vacinação robustece a conclusão de inadequação do ordenamento jurídico em
vigor para subsunção dos fatos narrados na denúncia ofertada em desfavor dos investigados.
Registre-se
que o direito penal não admite punição por interpretação extensiva ou
analógica, exatamente em face do princípio da reserva legal.
Portanto,
é incabível, por falta de amparo legal, a pretensão do Ministério Público de
exercer pretensão punitiva ancorada em interpretação extensiva, através do
desvirtuamento da mens legis.
Incabível
a utilização do processo penal para se estabelecer um poder punitivo despido de
limites. Ao contrário, o limite está exatamente na prévia previsão legal da
conduta típica em tese punida.
Em suma:
STJ. 5ª Turma. AgRg no RHC 160.947-CE, Rel. Min. João Otávio de Noronha,
julgado em 27/09/2022 (Info 752).