segunda-feira, 12 de dezembro de 2022
Os advogados têm o direito de, caso sejam presos, ficarem recolhidos em sala de Estado Maior; essa regra, contudo, não se aplica para os casos de prisão civil
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Francisco, advogado, deixou de
pagar pensão alimentícia ao seu filho. O menor, assistido por sua mãe, ajuizou
execução de alimentos e o juiz decretou a prisão civil do pai devedor.
Prisão especial
Francisco formulou, então, requerimento ao juiz afirmando
que ele é advogado e que, portanto, não pode ficar preso em uma unidade
prisional comum, devendo ser recolhido em sala de Estado Maior, conforme
previsto no art. 7º, V, da Lei n.°
8.906/94 (Estatuto da OAB):
Art. 7º São direitos do advogado:
(...)
V - não ser recolhido preso,
antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com
instalações e comodidades condignas, assim reconhecidas pela OAB, e, na sua
falta, em prisão domiciliar;
Sala de Estado-Maior é o
compartimento localizado na unidade militar que é utilizado por eles para o
exercício de suas funções (STF HC 81632/SP DJU em 21.3.2003). Assim, quando se
fala que determinada pessoa deve ficar presa em sala de Estado-Maior, isso
significa que ela deverá ficar recolhida em um gabinete (escritório), sem
celas, sem grades, e que ofereça instalações condignas, com condições adequadas
de higiene e segurança.
O pedido de Francisco pode ser
aceito? A prisão especial de que trata o art. 7º, V, do Estatuto da OAB
aplica-se também para os casos de prisão civil?
Havia divergência no STJ:
NÃO (3ª Turma do
STJ) |
SIM (4ª Turma do
STJ) |
O art. 7º, V, da Lei n.° 8.906/94 somente se
aplica às prisões cautelares penais, não se refletindo nas prisões civis. |
A regra contida no art. 7º, V,
da Lei n.°
8.906/94 também se aplica para os casos de prisão civil de advogado. |
A prisão civil e a prisão
criminal possuem naturezas e fundamentos jurídicos distintos. Não é
recomendável, portanto, o devedor de alimentos inadimplente cumprir a medida
restritiva da liberdade em sala de Estado Maior ou Casa do Albergado ou,
ainda, obter o benefício da prisão domiciliar. O instituto da prisão civil por
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia não
constitui sanção penal, não ostentando, portanto, índole punitiva ou
retributiva, mas, ao revés, é uma medida coercitiva, imposta com a finalidade
de compelir o devedor recalcitrante a cumprir a obrigação de manter o
sustento dos alimentandos, de modo que são inaplicáveis as normas que regulam
o Direito Penal e a Execução Criminal. |
O legislador, ao disciplinar os
direitos do advogado, entendeu incluir entre eles o de ser recolhido em sala
especial, não devendo o Poder Judiciário restringir esse direito apenas aos
processos penais. “Se quando é malferido um bem
tutelado pelo direito penal, permite-se ao acusado, se advogado for, o
recolhimento em sala de estado maior, a lógica adotada no ordenamento
jurídico impõe seja estendido igual direito àquele que infringe uma norma
civil, porquanto, na linha do regramento lógico, quem pode o mais, pode o
menos” (Min. Raul Araújo). Assim, o advogado que tenha
contra si decretada prisão civil por inadimplemento de obrigação alimentícia
tem direito a ser recolhido em prisão domiciliar na falta de sala de Estado
Maior, mesmo que Delegacia de Polícia possa acomodá-lo sozinho em cela
separada. |
RHC 41.472/SP, Rel. Min. Paulo
de Tarso Sanseverino, julgado em 12/11/2013. |
HC 271.256-MS, Rel. Min. Raul
Araújo, julgado em 11/2/2014. |
A 2ª Seção se reuniu e
pacificou a divergência. Qual corrente prevaleceu? A prisão especial de que
trata o art. 7º, V, do Estatuto da OAB aplica-se também para os casos de prisão
civil?
NÃO, mas desde que seja garantido
ao advogado um local apropriado, separado de presos comuns.
Documentos internacionais determinam
atenção especial à inadimplência da obrigação alimentar
Na ordem internacional há
diversos normativos retratando o objetivo global de se incentivar os Estados a
criar expedientes para o enfrentamento do problema social grave da
inadimplência da obrigação alimentar. Podemos citar nesse sentido:
i) a Convenção sobre os Direitos
da Criança, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989,
instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal, ratificado
por 196 países. Ela prevê que os Estados, dentro de suas possibilidades, adotem
medidas apropriadas, com o objetivo de auxiliar os pais e demais responsáveis
pela criança a tornar efetivo o direito ao seu desenvolvimento, exigindo que os
Estados-Partes adotem meios adequados para o adimplemento da prestação
alimentar (art. 27, 4);
ii) o Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) das Nações Unidas, de
dezembro 1966 - ratificado no Brasil pelo Decreto n. 591, de 6 de Julho de 1992
-, determina que se reconheça o direito de toda pessoa a um nível de vida
adequado, inclusive à alimentação, devendo-se tomar as “medidas apropriadas
para assegurar a consecução desse direito” (art. 11, 1.);
iii) o Comentário Geral n. 12 do
Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de
Direitos Humanos da ONU, de 1999, traz a obrigatoriedade dos Estados Membros em
adotar todas as medidas que se façam necessárias para assegurar a satisfação, a
facilitação e o provimento dos alimentos (item 15). O Estado deve garantir um
ambiente que facilite a implementação das responsabilidades pelo descumprimento
(item 20), além de adotar todas as maneiras e os meios necessários para
assegurar a implementação do direito à alimentação adequada (item 21);
iv) Por meio da Recomendação n. R
(82)2, de 4 de Fevereiro de 1982, o Conselho da Europa recomendou que os estados
membros desenvolvessem um sistema de pagamento antecipado dos alimentos ante a
inadimplência do devedor, conforme os seus princípios de regência (n. 1).
A própria Constituição
Federal determina a prisão civil do devedor de alimentos
O legislador constituinte
promoveu uma ponderação entre direitos fundamentais - o direito de liberdade e
de dignidade humana do devedor versus o direito à tutela jurisdicional efetiva,
à sobrevivência, à subsistência e à dignidade humana do credor -, dando prevalência
ao direito deste último. Admitiu-se a prisão civil do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia (art. 5º,
LXVII, da CF/88).
Tem a doutrina reconhecido na
prisão civil uma técnica de grande serventia em razão dos seus “altos índices
de eficiência”, em que “os dados estatísticos do cotidiano forense não escondem
que a prisão civil do devedor de alimentos cumpre, em larga medida, a sua
finalidade: fazer com que o alimentante pague a dívida alimentar”.
CPC assegura que o devedor
de alimentos fique separado dos presos comuns
Vale ressaltar que o CPC já garante que o devedor da prisão
civil fique separado dos presos comuns:
Art. 528 (...)
§ 4º A prisão será cumprida em
regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns.
STF vem admitindo que o
advogado fique recolhido em local diverso da sala de Estado-Maior, desde que com
instalações condignas
O STF reconhece a
constitucionalidade do art. 7º, V, da Lei nº 8.906/94, afirmando se tratar de direito
público subjetivo do advogado de ser recolhido preso em sala de Estado-Maior e,
na sua falta, em prisão domiciliar enquanto não transitar em julgado a sentença
penal que o condenou, definindo que “a prisão do advogado em sala de Estado
Maior é garantia suficiente para que fique provisoriamente detido em condições
compatíveis com o seu múnus público [...] O múnus constitucional exercido pelo
advogado justifica a garantia de somente ser preso em flagrante e na hipótese
de crime inafiançável” (ADI 1127, Rel. p/ Ac. Ricardo Lewandowski, Tribunal
Pleno, DJ 10/06/2010).
Mais recentemente, no entanto, o
próprio Supremo vem adotando uma nova orientação, passando a considerar que, na
ausência de dependência que se qualifique como Sala de Estado-Maior, atende à
exigência da lei nº 8.906/94 (art. 7º, V, parte final), “o recolhimento
prisional em vaga especial na unidade penitenciária, desde que provida de
instalações e comodidades condignas e localizada em área separada dos demais
detentos” (Rcl 19286 AgR, Rel. Celso de Mello, Segunda Turma, DJ 01/06/2015).
Dessarte, é possível a prisão de
profissional de advocacia em unidade penitenciária que possua vaga especial,
desde que provida de instalações com comodidades condignas e localizada em área
separada dos demais detentos. Inclusive, a “existência de grades nas
dependências da Sala de Estado-Maior onde o reclamante se encontra recolhido,
por si só, não impede o reconhecimento do perfeito atendimento ao disposto no
art. 7º, V, da Lei nº 8.906/94” (Rcl 6.387/SC, Rel. Min. Ellen Gracie, Pleno).
Assim, é o caso de rever o antigo
posicionamento da 4ª Turma acima explicado (HC 271.256/MS) para, agora,
reconhecer que a prerrogativa da sala de estado-maior não pode incidir na
prisão civil do advogado que for devedor alimentar, desde que lhe seja
garantido, por óbvio, um local apropriado, devidamente segregado dos presos
comuns, nos termos expressos do art. 528, §§ 4º e 5º do CPC/2015. Isso porque,
numa ponderação entre direitos fundamentais - o direito de liberdade e de
dignidade humana do devedor advogado inadimplente de obrigação alimentícia
versus o direito à tutela jurisdicional efetiva, à sobrevivência, à
subsistência e à dignidade humana do credor -, promoveu o legislador
constituinte a sua opção política em dar prevalência ao direito deste último,
sem fazer qualquer ressalva.
Prisão civil deve ser
analisa à luz da norma constitucional
Não se pode olvidar que a lei
civil dever ser interpretada e aplicada à luz da norma constitucional - que
conferiu ao direito à alimentação estatura constitucional e autorizou a prisão
civil do devedor de alimentos - e não o contrário.
A autorização da prisão civil do
devedor de alimentos é endereçada a assegurar o mínimo existencial ao credor.
Admitir o seu cumprimento em sala de estado-maior ou de forma domiciliar, em
nome da prerrogativa do profissional advogado, redundaria, no limite, em
solapar todo o arcabouço erigido para preservar a dignidade humana do credor de
alimentos.
Prerrogativa do art. 7º, V,
do Estatuto da OAB é voltada eminentemente para a prisão penal
A prerrogativa estipulada no art.
7º, V, do Estatuto da OAB é voltado eminentemente em relação à prisão penal,
mais precisamente às prisões cautelares determinadas antes do trânsito em
julgado da sentença penal condenatória.
Portanto, a aplicação dos
regramentos da execução penal, como forma de abrandar a prisão civil, acabará
por desvirtuar a técnica executiva e enfraquecer a política pública estatal,
afetando a sua coercibilidade, justamente o móvel que induz a conduta do
devedor alimentar.
Em suma:
A prerrogativa de ser recolhido em sala de
estado-maior não pode incidir na prisão civil do advogado devedor de alimentos,
desde que lhe seja garantido um local apropriado, separado de presos comuns.
STJ. 2ª Seção.
HC 740.531-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 26/10/2022 (Info 755).