Dizer o Direito

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

O testemunho prestado em juízo pelo policial deve ser valorado, assim como acontece com a prova testemunhal em geral

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

De acordo com a denúncia oferecida pelo Ministério Público, os policiais militares estavam fazendo patrulhamento de rotina no bairro, ocasião em que avistaram João, que foi reconhecido por um informante da polícia como sendo um dos envolvidos no tráfico de drogas no local.

Diante disso, os policiais abordaram o suspeito e perguntaram onde estava a droga. João indicou o local onde estava armazenado o material entorpecente, em um terreno baldio.

Em juízo, os policiais confirmaram o relato acima.

Por outro lado, no interrogatório, João negou a versão dada pelos policiais, dizendo que a droga não era sua e que não indicou o referido local.

Em alegações finais, a defesa suscitou a tese de que o flagrante teria sido forjado.

Ao final da instrução, o juiz absolveu o réu, com base no art. 386, VII, do CPP, por considerar que os depoimentos dos policiais não seriam suficientes para demonstrar a culpabilidade do acusado:

Art. 386.  O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:

(...)

VII – não existir prova suficiente para a condenação.

 

O Ministério Público interpôs apelação.

O Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso para condenar o réu pela prática do delito de tráfico de drogas.

Irresignada, a defesa de interpôs recurso especial sustentando a tese de que o depoimento dos policiais deve sempre ser considerado como suspeito já que ele teria interesse na condenação do réu.

 

Essa tese, em abstrato, é acolhida pelo STJ? O testemunho policial é sempre suspeito?

NÃO.

O depoimento do policiais tem a natureza jurídica de prova testemunhal e assim deve ser valorado pelo juiz.

Dessa forma, o testemunho policial não pode ser, aprioristicamente, sobrevalorizado, sob o único argumento de que o policial goza de fé pública.

Por outro lado, o testemunho policial não pode ser subvalorizado, sob a justificativa de que sua palavra não seria confiável para, isoladamente, fundamentar uma condenação.

Exigir a corroboração sistemática do testemunho policial em toda e qualquer circunstância, equivale a inadmiti-lo ou destituí-lo de valor probante. Isso seria uma limitação desproporcional e nada razoável de seu âmbito de validade na formação do conhecimento judicial.

Legalmente, o agente policial não sofre qualquer limitação ou ressalva quanto à sua capacidade de ser testemunha. Faticamente, inexiste também qualquer óbice ou condição limitativa da capacidade de o policial perceber os fatos e, posteriormente, narrar suas percepções sensoriais às autoridades. Não há que se falar em vieses ou interesses prévios superiores aos das demais testemunhas, uma vez que os vieses, assim como os estereótipos, são intrínsecos a todos os seres humanos, e os interesses, se existentes, devem ser aferidos casuisticamente e não estabelecidos a priori.

Cabe ao magistrado, em análise do caso concreto, valorar racionalmente a prova, verificando se preenche os critérios de consistência, verossimilhança, plausibilidade e completude da narrativa, bem como se presentes a coerência e adequação com os demais elementos produzidos nos autos.

A avaliação judicial da superação do standard probatório mínimo para a condenação não pode ser limitada a uma prévia determinação quantitativa e qualitativa da prova, porquanto tal representaria uma restrição ao livre convencimento motivado do magistrado e resultaria potencialmente em uma perda de qualidade epistemológica da decisão.

Por fim, por determinação do art. 20 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), cabe ao magistrado, toda vez que decidir com base em conceitos normativos indeterminados, considerar as consequências práticas de sua decisão. No caso, verifica-se que não são poucas nem irrelevantes as prováveis consequências advindas da decisão de atribuir valor probatório inferior aos depoimentos policiais: desde inevitáveis impactos no orçamento estatal e no planejamento de políticas públicas até a inviabilização do funcionamento do próprio sistema de justiça criminal com riscos reais de estímulo a uma impunidade generalizada, ante os obstáculos práticos de produção de outras provas, sobretudo nos casos envolvendo tráfico de drogas.

 

Em suma:

 

Posição minoritária

Os Ministros Ribeiro Dantas e Reynaldo Soares da Fonseca entendiam que a palavra do agente policial quanto aos fatos que afirma ter testemunhado o acusado praticar não é suficiente para a demonstração de nenhum elemento do crime em uma sentença condenatória. Seria necessária, para tanto, sua corroboração mediante a apresentação de gravação dos mesmos fatos em áudio e vídeo.

Essa posição, contudo, não foi a vencedora.

 

No caso concreto, o STJ acolheu o recurso da defesa para absolver o réu?

SIM. No caso concreto, os Ministros entenderam que os testemunhos policiais não foram suficientes para comprovar a autoria do delito e, assim, para superar o standard probatório mínimo para a condenação.

Os depoimentos judiciais dos agentes policiais que efetuaram a prisão do réu em flagrante apresentam inconsistências, detectadas pela sentença absolutória, que não foram adequadamente ponderadas no acórdão do Tribunal de Justiça, que reformou a sentença para condenar o acusado.

Logo, foi dado provimento ao recurso para absolver o recorrente do crime previsto no art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006, com fundamento no art. 386, VII, do CPP.

 

 

 

 


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