Imagine a seguinte situação
hipotética:
De acordo com a denúncia oferecida
pelo Ministério Público, os policiais militares estavam fazendo patrulhamento
de rotina no bairro, ocasião em que avistaram João, que foi reconhecido por um
informante da polícia como sendo um dos envolvidos no tráfico de drogas no local.
Diante disso, os policiais abordaram o
suspeito e perguntaram onde estava a droga. João indicou o local onde estava
armazenado o material entorpecente, em um terreno baldio.
Em juízo, os policiais confirmaram o
relato acima.
Por outro lado, no interrogatório, João
negou a versão dada pelos policiais, dizendo que a droga não era sua e que não
indicou o referido local.
Em alegações finais, a defesa suscitou
a tese de que o flagrante teria sido forjado.
Ao final da instrução, o juiz absolveu o réu, com base no art.
386, VII, do CPP, por considerar que os depoimentos dos policiais não seriam
suficientes para demonstrar a culpabilidade do acusado:
Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa
na parte dispositiva, desde que reconheça:
(...)
VII – não existir prova
suficiente para a condenação.
O Ministério Público interpôs
apelação.
O Tribunal de Justiça deu provimento
ao recurso para condenar o réu pela prática do delito de tráfico de drogas.
Irresignada, a defesa de interpôs
recurso especial sustentando a tese de que o depoimento dos policiais deve
sempre ser considerado como suspeito já que ele teria interesse na condenação
do réu.
Essa tese, em abstrato, é acolhida
pelo STJ? O testemunho policial é sempre suspeito?
NÃO.
O
depoimento do policiais tem a natureza jurídica de prova testemunhal e assim
deve ser valorado pelo juiz.
Dessa forma, o testemunho
policial não pode ser, aprioristicamente, sobrevalorizado, sob o único
argumento de que o policial goza de fé pública.
Por outro lado, o testemunho
policial não pode ser subvalorizado, sob a justificativa de que sua palavra não
seria confiável para, isoladamente, fundamentar uma condenação.
Exigir a corroboração sistemática
do testemunho policial em toda e qualquer circunstância, equivale a inadmiti-lo
ou destituí-lo de valor probante. Isso seria uma limitação desproporcional e
nada razoável de seu âmbito de validade na formação do conhecimento judicial.
Legalmente, o agente policial não
sofre qualquer limitação ou ressalva quanto à sua capacidade de ser testemunha.
Faticamente, inexiste também qualquer óbice ou condição limitativa da
capacidade de o policial perceber os fatos e, posteriormente, narrar suas
percepções sensoriais às autoridades. Não há que se falar em vieses ou
interesses prévios superiores aos das demais testemunhas, uma vez que os
vieses, assim como os estereótipos, são intrínsecos a todos os seres humanos, e
os interesses, se existentes, devem ser aferidos casuisticamente e não
estabelecidos a priori.
Cabe ao magistrado, em análise do
caso concreto, valorar racionalmente a prova, verificando se preenche os
critérios de consistência, verossimilhança, plausibilidade e completude da
narrativa, bem como se presentes a coerência e adequação com os demais
elementos produzidos nos autos.
A avaliação judicial da superação
do standard probatório mínimo para a condenação não pode ser limitada a uma prévia
determinação quantitativa e qualitativa da prova, porquanto tal representaria
uma restrição ao livre convencimento motivado do magistrado e resultaria
potencialmente em uma perda de qualidade epistemológica da decisão.
Por fim, por determinação do art.
20 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), cabe ao
magistrado, toda vez que decidir com base em conceitos normativos
indeterminados, considerar as consequências práticas de sua decisão. No caso,
verifica-se que não são poucas nem irrelevantes as prováveis consequências
advindas da decisão de atribuir valor probatório inferior aos depoimentos
policiais: desde inevitáveis impactos no orçamento estatal e no planejamento de
políticas públicas até a inviabilização do funcionamento do próprio sistema de
justiça criminal com riscos reais de estímulo a uma impunidade generalizada,
ante os obstáculos práticos de produção de outras provas, sobretudo nos casos
envolvendo tráfico de drogas.
Em suma:
STJ. 5ª
Turma. AREsp 1.936.393-RJ, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 25/10/2022 (Info
756).
Posição minoritária
Os Ministros Ribeiro Dantas e
Reynaldo Soares da Fonseca entendiam que a palavra do agente policial quanto
aos fatos que afirma ter testemunhado o acusado praticar não é suficiente para
a demonstração de nenhum elemento do crime em uma sentença condenatória. Seria
necessária, para tanto, sua corroboração mediante a apresentação de gravação
dos mesmos fatos em áudio e vídeo.
Essa posição, contudo, não foi a
vencedora.
No caso concreto, o STJ
acolheu o recurso da defesa para absolver o réu?
SIM. No caso concreto, os
Ministros entenderam que os testemunhos policiais não foram suficientes para
comprovar a autoria do delito e, assim, para superar o standard probatório
mínimo para a condenação.
Os depoimentos judiciais dos
agentes policiais que efetuaram a prisão do réu em flagrante apresentam
inconsistências, detectadas pela sentença absolutória, que não foram
adequadamente ponderadas no acórdão do Tribunal de Justiça, que reformou a
sentença para condenar o acusado.
Logo, foi dado provimento ao
recurso para absolver o recorrente do crime previsto no art. 33, caput, da Lei
nº 11.343/2006, com fundamento no art. 386, VII, do CPP.