Dizer o Direito

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

O simples fato de o tráfico de drogas ter ocorrido em uma comunidade dominada por facção criminosa não significa que o indivíduo tenha praticado também o crime de associação para o tráfico

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

Alexandre e Gilson foram presos em flagrante em uma operação da Polícia Militar realizada na Comunidade Nova Holanda, região dominada pela organização criminosa “Comando Vermelho”.

Os dois foram presos em flagrante porque os policiais os encontraram com cocaína e petrechos para endolação, tais como balança de precisão, peneira, maisena, sacos plásticos pequenos, papel filme, prensa, grampeadores, fita adesiva etc.

Obs: endolação é o processo de preparo da droga para a sua comercialização; o entorpecente é misturado com outras substâncias para aumentar o volume e embalado para venda.

 

Alexandre e Gilson foram denunciados pelo Ministério Público mas não apenas por tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006). O Promotor também imputou a eles o crime de associação para o tráfico, delito tipificado no art. 35 da mesma Lei:

Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º , e 34 desta Lei:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei.

 

Para justificar a imputação pelo delito de associação para o tráfico, o Promotor de Justiça assim se manifestou na denúncia:

“Ademais, ainda é possível afirmar que os denunciados, de forma livre e consciente, associaram-se a indivíduos ainda não identificados para a prática do crime de tráfico de drogas.

Com efeito, é sabido que a Comunidade Nova Holanda é dominada pela facção criminosa denominada Comando Vermelho e que apenas pessoas efetivamente ligadas à tal associação criminosa têm “permissão e liberdade” para exercerem a traficância no local.

Além disso, é sabido que o tráfico local atua fortemente armado, como forma de intimidação difusa da população local e de tentar refutar legítimas ações policiais de repressão, além de investidas de outras facções criminosas.”

 

Os réus foram condenados por tráfico de drogas (art. 33) e por associação ao tráfico (art. 35), em concurso material (art. 69 do CP).

A sentença foi mantida pelo TJ/RJ.

Houve o trânsito em julgado.

A defesa impetrou, então, habeas corpus, dirigido ao STJ, no qual sustentou a atipicidade quanto ao crime de associação para o tráfico de drogas, ao argumento de que não foram demonstradas a estabilidade e a permanência.

Pugnou pela absolvição pelo crime previsto no art. 35 da Lei nº 11.343/2006 e o afastamento da causa de aumento de pena, prevista no artigo 40, IV da Lei nº 11.343/2006.

 

O STJ concordou com o pedido da defesa?

SIM.

No crime de associação para o tráfico de drogas (art. 35 da LD), há um vínculo associativo duradouro e estável entre seus integrantes, com o objetivo de fomentar especificamente o tráfico de drogas, por meio de uma estrutura organizada e divisão de tarefas para a aquisição e venda de entorpecentes, além da divisão de seus lucros.

A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que:

Para a configuração do delito de associação para o tráfico de drogas, é necessário o dolo de se associar com estabilidade e permanência, sendo que a reunião de duas ou mais pessoas sem o animus associativo não se subsume ao tipo do art. 35 da Lei n. 11.343/2006. Trata-se, portanto, de delito de concurso necessário.

STJ. 5ª Turma. HC 434.972/RJ, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 26/6/2018.

 

De forma resumida: para caracterizar o crime do art. 35 exige-se estabilidade e permanência.

Jurisprudência em Teses (ed. 131)

26) Para a caracterização do crime de associação para o tráfico de drogas (art. 35 da Lei n. 11.343/2006) é imprescindível o dolo de se associar com estabilidade e permanência.

 

No caso concreto, esses elementos (estabilidade e permanência), exigidos para a configuração do crime de associação para o tráfico, foram deduzidos (houve uma dedução) em razão de ter sido apreendida significativa quantidade de drogas e de petrechos comuns na prática da narcotraficância.

Além disso, essa dedução foi corroborada pelos depoimentos policiais que atestaram que é notória a existência de uma facção criminosa naquela comunidade e que não seria possível que os acusados estivessem ali sem prévia associação com os demais integrantes dessa facção.

Para o STJ, contudo, isso não é suficiente.

Não houve investigação prévia ou qualquer elemento de prova capaz de apontar que os acusados estavam associados, de forma estável (sólida) e permanente (duradoura), entre si ou a outrem. Não foi indicada a existência de alvos específicos na citada operação policial nem sequer mencionado o lapso temporal durante o qual os agentes supostamente estavam associados ou quais seriam as suas funções no grupo.

Não se pode referendar uma condenação por associação para o tráfico pautada apenas em ilações a respeito do local em que apreendidas as drogas etiquetadas e os petrechos comumente utilizados na endolação de entorpecentes, pois isso equivaleria a validar a adoção de uma seleção criminalizante norteada pelo critério espacial, em que as vilas e favelas são mais frequentemente percebidas como “lugares de tráfico”, em razão das representações desses espaços territoriais como necessariamente associados ao comércio varejista de drogas, conforme apontam os crescentes estudos a respeito do espaço como elemento da seletividade penal, especialmente em crimes dessa natureza.

Admitir-se que o simples fato de o flagrante ter ocorrido em comunidade dominada por facção criminosa - e não em outros locais da cidade - comprove, ipso facto (por si só), a prática do crime em comento significa, em última instância, inverter o ônus probatório e atribuir prova diabólica de fato negativo à defesa, pois exige-se, de certo modo, que o acusado comprove que não está envolvido com facção criminosa.

Nessa conjuntura, conclui-se que foi demonstrada tão somente a configuração do delito de tráfico de drogas, não tendo sido apontados fatos objetivos que demonstrassem o dolo e a existência de vínculo estável e permanente entre agentes.

Por isso, mostra-se indevida a condenação pelo crime de associação para o tráfico de drogas, no qual o sistema acusatório impõe o ônus de que seja declinada a configuração do elemento subjetivo do tipo, com “a demonstração concreta da estabilidade e da permanência da associação criminosa” (STJ. 6ª Turma. HC 462.888/RJ, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe 05/11/2018).

 

Em suma:

 

Diante disso, foi concedida a ordem de habeas corpus para absolver os condenados quanto ao delito de associação para o tráfico (art. 35 da Lei nº 11.343/2006).

 

DOD Questões

ý (FGV/MPE/RJ/Estágio_Forense/2018) Frederico, primário, mas com maus antecedentes, acorda com grande traficante de Comunidade do Rio de Janeiro, que tinha conhecido naquele dia, de transportar, uma única vez, 500g de maconha, 30g de cocaína e 20g de crack para Comunidade localizada em Minas Gerais. Enquanto estava no interior de uma van com a mala contendo todo aquele material entorpecente, ainda no estado do Rio de Janeiro, vem a ser abordado por policiais militares, que identificam a droga. Em sede policial, observadas as formalidades legais, Frederico confessa o transporte do material, diz que é a primeira vez que adotava aquele tipo de comportamento, que conhecera o traficante no Rio de Janeiro através de um amigo no dia dos fatos e esclarece que o material deveria ser entregue para João em Minas Gerais. Com base nas informações narradas, de acordo com a jurisprudência majoritária dos Tribunais Superiores, é correto afirmar que é possível o oferecimento de denúncia pelo crime de associação para o tráfico, ainda que a conduta de Frederico e do traficante em comunhão de ações e desígnios fosse eventual. (errado)

 

Comentário:

Jurisprudência em Teses (ed. 131)

26) Para a caracterização do crime de associação para o tráfico de drogas (art. 35 da Lei n. 11.343/2006) é imprescindível o dolo de se associar com estabilidade e permanência.

 

 


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