Imagine a seguinte situação adaptada:
Alexandre e Gilson foram presos em
flagrante em uma operação da Polícia Militar realizada na Comunidade Nova
Holanda, região dominada pela organização criminosa “Comando Vermelho”.
Os dois foram presos em flagrante porque
os policiais os encontraram com cocaína e petrechos para endolação, tais como
balança de precisão, peneira, maisena, sacos plásticos pequenos, papel filme, prensa,
grampeadores, fita adesiva etc.
Obs: endolação é o processo de preparo
da droga para a sua comercialização; o entorpecente é misturado com outras
substâncias para aumentar o volume e embalado para venda.
Alexandre e Gilson foram denunciados pelo Ministério Público
mas não apenas por tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006). O Promotor
também imputou a eles o crime de associação para o tráfico, delito tipificado
no art. 35 da mesma Lei:
Art. 35. Associarem-se duas ou
mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes
previstos nos arts. 33, caput e § 1º , e 34 desta Lei:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 10
(dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos)
dias-multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas
do caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime
definido no art. 36 desta Lei.
Para justificar a imputação pelo delito de associação para o
tráfico, o Promotor de Justiça assim se manifestou na denúncia:
“Ademais,
ainda é possível afirmar que os denunciados, de forma livre e consciente, associaram-se
a indivíduos ainda não identificados para a prática do crime de tráfico de
drogas.
Com
efeito, é sabido que a Comunidade Nova Holanda é dominada pela facção criminosa
denominada Comando Vermelho e que apenas pessoas efetivamente ligadas à tal
associação criminosa têm “permissão e liberdade” para exercerem a traficância
no local.
Além
disso, é sabido que o tráfico local atua fortemente armado, como forma de
intimidação difusa da população local e de tentar refutar legítimas ações
policiais de repressão, além de investidas de outras facções criminosas.”
Os réus foram condenados por tráfico
de drogas (art. 33) e por associação ao tráfico (art. 35), em concurso material
(art. 69 do CP).
A sentença foi mantida pelo TJ/RJ.
Houve o trânsito em julgado.
A defesa impetrou, então, habeas
corpus, dirigido ao STJ, no qual sustentou a atipicidade quanto ao crime de
associação para o tráfico de drogas, ao argumento de que não foram demonstradas
a estabilidade e a permanência.
Pugnou pela absolvição pelo crime
previsto no art. 35 da Lei nº 11.343/2006 e o afastamento da causa de aumento
de pena, prevista no artigo 40, IV da Lei nº 11.343/2006.
O STJ concordou com o pedido da
defesa?
SIM.
No crime de associação para o tráfico
de drogas (art. 35 da LD), há um vínculo associativo duradouro e estável entre
seus integrantes, com o objetivo de fomentar especificamente o tráfico de
drogas, por meio de uma estrutura organizada e divisão de tarefas para a
aquisição e venda de entorpecentes, além da divisão de seus lucros.
A jurisprudência do STJ firmou-se no
sentido de que:
Para a configuração do delito de associação para o tráfico de
drogas, é necessário o dolo de se associar com estabilidade e permanência, sendo que a
reunião de duas ou mais pessoas sem o animus associativo não se subsume ao tipo
do art. 35 da Lei n. 11.343/2006. Trata-se, portanto, de delito de concurso
necessário.
STJ. 5ª Turma. HC 434.972/RJ, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado
em 26/6/2018.
De forma resumida: para caracterizar o
crime do art. 35 exige-se estabilidade e permanência.
Jurisprudência em Teses (ed. 131)
26) Para a caracterização do crime de associação para o tráfico
de drogas (art. 35 da Lei n. 11.343/2006) é imprescindível o dolo de se
associar com estabilidade e permanência.
No caso concreto, esses elementos (estabilidade
e permanência), exigidos para a configuração do crime de associação para o
tráfico, foram deduzidos (houve uma dedução) em razão de ter sido apreendida significativa
quantidade de drogas e de petrechos comuns na prática da narcotraficância.
Além disso, essa dedução foi
corroborada pelos depoimentos policiais que atestaram que é notória a
existência de uma facção criminosa naquela comunidade e que não seria possível
que os acusados estivessem ali sem prévia associação com os demais integrantes dessa
facção.
Para o STJ, contudo, isso não é
suficiente.
Não houve investigação prévia ou
qualquer elemento de prova capaz de apontar que os acusados estavam associados,
de forma estável (sólida) e permanente (duradoura), entre si ou a outrem. Não
foi indicada a existência de alvos específicos na citada operação policial nem
sequer mencionado o lapso temporal durante o qual os agentes supostamente
estavam associados ou quais seriam as suas funções no grupo.
Não se pode referendar uma
condenação por associação para o tráfico pautada apenas em ilações a respeito
do local em que apreendidas as drogas etiquetadas e os petrechos comumente
utilizados na endolação de entorpecentes, pois isso equivaleria a validar a
adoção de uma seleção criminalizante norteada pelo critério espacial, em que as
vilas e favelas são mais frequentemente percebidas como “lugares de tráfico”,
em razão das representações desses espaços territoriais como necessariamente
associados ao comércio varejista de drogas, conforme apontam os crescentes
estudos a respeito do espaço como elemento da seletividade penal, especialmente
em crimes dessa natureza.
Admitir-se que o simples fato de
o flagrante ter ocorrido em comunidade dominada por facção criminosa - e não em
outros locais da cidade - comprove, ipso facto (por si só), a prática do
crime em comento significa, em última instância, inverter o ônus probatório e
atribuir prova diabólica de fato negativo à defesa, pois exige-se, de certo
modo, que o acusado comprove que não está envolvido com facção criminosa.
Nessa conjuntura, conclui-se que
foi demonstrada tão somente a configuração do delito de tráfico de drogas, não
tendo sido apontados fatos objetivos que demonstrassem o dolo e a existência de
vínculo estável e permanente entre agentes.
Por isso, mostra-se indevida a
condenação pelo crime de associação para o tráfico de drogas, no qual o sistema
acusatório impõe o ônus de que seja declinada a configuração do elemento
subjetivo do tipo, com “a demonstração concreta da estabilidade e da
permanência da associação criminosa” (STJ. 6ª Turma. HC 462.888/RJ, Rel. Min. Rogério
Schietti Cruz, DJe 05/11/2018).
Em suma:
STJ. 6ª
Turma. HC 739.951-RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 09/08/2022, DJe
18/08/2022 (Info 753).
Diante disso, foi concedida a ordem de
habeas corpus para absolver os condenados quanto ao delito de associação
para o tráfico (art. 35 da Lei nº 11.343/2006).
DOD
Questões
ý
(FGV/MPE/RJ/Estágio_Forense/2018) Frederico, primário, mas com maus
antecedentes, acorda com grande traficante de Comunidade do Rio de Janeiro, que
tinha conhecido naquele dia, de transportar, uma única vez, 500g de maconha,
30g de cocaína e 20g de crack para Comunidade localizada em Minas Gerais.
Enquanto estava no interior de uma van com a mala contendo todo aquele material
entorpecente, ainda no estado do Rio de Janeiro, vem a ser abordado por
policiais militares, que identificam a droga. Em sede policial, observadas as
formalidades legais, Frederico confessa o transporte do material, diz que é a
primeira vez que adotava aquele tipo de comportamento, que conhecera o
traficante no Rio de Janeiro através de um amigo no dia dos fatos e esclarece
que o material deveria ser entregue para João em Minas Gerais. Com base nas
informações narradas, de acordo com a jurisprudência majoritária dos Tribunais
Superiores, é correto afirmar que é possível o oferecimento de denúncia pelo
crime de associação para o tráfico, ainda que a conduta de Frederico e do
traficante em comunhão de ações e desígnios fosse eventual. (errado)
Comentário:
Jurisprudência em Teses (ed. 131)
26) Para a caracterização do crime de associação para o
tráfico de drogas (art. 35 da Lei n. 11.343/2006) é imprescindível o dolo de se
associar com estabilidade e permanência.