Dizer o Direito

domingo, 18 de dezembro de 2022

O requerido (autor da violência) não será citado para contestar o pedido de medidas cautelares dos incisos I, II e III do art. 22 da Lei Maria da Penha

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina foi agredida pelo seu marido João e solicitou medidas protetivas de urgência no plantão judiciário.

O juízo plantonista decretou as medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do art. 22 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha):

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003 ;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

 

As partes foram intimadas da decisão ainda no plantão.

Na segunda-feira, os autos foram distribuídos ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. O juiz do Juizado proferiu decisão mantendo as medidas cautelares decretadas pelo magistrado plantonista. Contudo, determinou a citação do requerido para apresentar contestação, sob pena de revelia.

A Promotora de Justiça que oficia no Juizado ingressou com correição parcial contra esse despacho do juiz argumentando que a citação e a aplicação dos efeitos da revelia são incompatíveis com a Lei Maria da Penha e as regras processuais penais. A Promotora explicou que a Lei nº 11.340/2006 em seus arts. 18 e 24, ao tratar das medidas protetivas, não fala em citação, mas apenas em intimação e notificação, haja vista que não há a intenção de chamar o requerido ao processo para se defender de algo.

O Tribunal de Justiça julgou improcedente a correição parcial sob o argumento de que seria possível determinar a citação do requerido, na forma do Código de Processo Civil, conforme prevê o art. 13 da Lei nº 11.340/2006:

Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei.

 

O Ministério Público interpôs recurso especial insistindo na tese de que a Lei Maria da Penha não prevê a possibilidade de citação do suposto autor do delito para contestar a medida protetiva aplicada.

 

O STJ concordou com os argumentos do Ministério Público?

SIM.

 

Medidas protetivas de urgência não podem ser classificadas como tutela inibitória

De início, não figura viável incluir as medidas protetivas de urgência como espécies de tutela inibitória.

As medidas previstas na Lei Maria da Penha são concedidas em caráter provisório, a título precário, visto que se baseiam não em juízo de certeza da prática ou da ameaça da prática do ato ilícito pelo agressor, mas em juízo de probabilidade, fundado em elementos indiciários colhidos em fase procedimental preliminar. Dessa forma, as medidas devem ser, por sua natureza, revogáveis e reversíveis, quando constatada a superveniente ausência dos motivos autorizadores de sua aplicação.

Quanto à distinção entre tutelas antecipadas ou tutelas cautelares, o objeto das medidas protetivas não coincide com o objeto da tutela jurisdicional final. Não se pretende precipuamente, por meio da decretação dessas medidas, antecipar os efeitos da sentença ou antecipar a fruição do bem jurídico desejado pelo autor da demanda, que apenas seria obtido ao final do processo de conhecimento, em caso de procedência da pretensão deduzida em juízo. Ao se decretar uma medida protetiva, visa-se, antes de tudo, proteger a vida e a incolumidade física e psíquica da vítima e, com isso, de uma forma mais ampla, acautelar a ordem pública, uma das finalidades das cautelares previstas no Código de Processo Penal.

 

As medidas protetivas de urgência previstas no art. 22 são medidas cautelares de natureza penal ou cível?

Natureza das medidas cautelares do art. 22 da Lei Maria da Penha

Incisos I, II e III: natureza CRIMINAL

Incisos IV, V, VI e VII: natureza CÍVEL

I - suspensão/restrição de armas;

II - afastamento do lar;

III - proibição de aproximação ou contato.

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores;

V - prestação de alimentos.

VI - comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação;

VII - acompanhamento psicossocial do agressor. 

 

Razões pelas quais as medidas dos incisos I, II e III possuem natureza criminal

1) as medidas previstas nos incisos I, II e III do art. 22 implicam, de um lado, relevante restrição à liberdade de ir e vir do acusado, enquanto buscam, de outro vértice, preservar os direitos fundamentais à vida e à integridade física e psíquica da suposta vítima. O status elevado dos direitos em contraste justifica uma tutela de ordem penal, tanto para o acusado, pois sua liberdade não pode vir a ser restringida de forma temerária e sem a observância de requisitos mínimos, quanto para a ofendida, que busca na esfera penal uma tutela célere e efetiva de seus direitos.

 

2) É possível a decretação de prisão preventiva do suposto agressor para assegurar a execução das medidas protetivas de urgência, nos crimes que envolvem violência doméstica e familiar, a teor do inciso III do art. 313 do CPP. Ou seja, eventual renitência do acusado em descumprir as medidas impostas pelo juiz, especialmente aquelas que determinam seu afastamento da vítima e a proibição de com ela manter contato, podem fundamentar a decretação de prisão provisória do suposto agressor. Se tais medidas fossem consideradas de natureza cível, a possibilidade de decretação de prisão ficaria prejudicada, ante a impossibilidade de se criar, por lei, nova hipótese de prisão civil, para além da expressa previsão constitucional relativa ao devedor de alimentos (art. 5º, inciso LXVII, da CF/88). Assim, se o próprio diploma processual penal passou a prever expressamente a possibilidade de decretação de prisão preventiva ao acusado que descumpre medida protetiva anteriormente imposta, pode-se concluir que o legislador considerou ter natureza penal a cautelar em questão, pois de outra forma não se poderia cogitar de hipótese de privação temporária da liberdade do renitente.

 

3) É possível fazer um paralelismo entre as medidas protetivas dos incisos I, II e III do art. 22 da Lei nº 11.340/2006 e as medidas alternativas à prisão trazidas nos incisos II e III do art. 319 do CPP:

Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão:

I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;

II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;

III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

(...)

 

Dessa forma, tanto a proibição de acessar ou frequentar determinados lugares para evitar a prática de novas infrações penais, quanto a proibição de manter contato com pessoa determinada têm grande semelhança com as medidas de proibição de aproximar-se da vítima e de com ela manter contato, previstas na lei protetiva à mulher.

 

4) Reconhecer a natureza penal das medidas cautelares dos incisos I, II e III do art. 22 da Lei Maria da Penha traz uma dúplice proteção:

• de um lado, protege a vítima, pois concede a ela um meio célere e efetivo de tutela de sua vida e de sua integridade física e psicológica, pleiteada diretamente à autoridade policial, e reforçada pela possibilidade de decretação da prisão preventiva do suposto autor do delito;

• de outro lado, protege o acusado, porquanto concede a ele a possibilidade de se defender da medida a qualquer tempo, sem risco de serem a ele aplicados os efeitos das revelia.

 

A lei não prevê a citação do requerido

Não há previsão de procedimento específico para concessão das medidas protetivas de urgência, restringindo-se a lei a determinar, em seu art. 18, que caberá ao juiz, a requerimento do Ministério Público ou da ofendida, no prazo de 48 horas, decidir sobre as medidas protetivas, entre outras providências. Dessa feita, não cabe a instauração de um processo, com citação do requerido para ciência e contestação, sob pena de decretação de sua revelia, nos moldes do estabelecido na lei processual civil.

 

Não se aplica subsidiariamente o CPC, mas sim o CPP

Aplicável, sim, o regramento do Código Processual Penal que, em caso de risco à efetividade da medida, determina a intimação do suposto agressor após a decretação da cautelar, facultando-lhe a possibilidade de manifestar-se nos autos a qualquer tempo, sem a aplicação dos efeitos da revelia.

O parágrafo único do art. 21 também reforça a não adoção do regramento previsto no CPC, porquanto determina que “a ofendida não poderá entregar intimação ou notificação ao agressor”, nada mencionando sobre citação.

Portanto, deve-se aplicar às medidas protetivas de urgência o regramento previsto pelo Código de Processo Penal no que tange às medidas cautelares. Dessa forma, não cabe falar em instauração de processo próprio, com citação do requerido, tampouco com a possibilidade de decretação de sua revelia em caso de não apresentação de contestação no prazo de cinco dias. Aplicada a cautelar inaudita altera pars, para garantia de sua eficácia, o acusado será intimado de sua decretação, facultando-lhe, a qualquer tempo, a apresentação de razões contrárias à manutenção da medida.

 

Em suma:

As medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do art. 22 da Lei Maria da Penha têm natureza de cautelares penais, não cabendo falar em citação do requerido para apresentar contestação, tampouco a possibilidade de decretação da revelia, nos moldes da lei processual civil.

STJ. 5ª Turma. REsp 2.009.402-GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Rel. Acd. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 08/11/2022 (Info 756).

 

 

 


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