Imagine a seguinte situação
hipotética:
Regina foi agredida pelo seu marido
João e solicitou medidas protetivas de urgência no plantão judiciário.
O juízo plantonista decretou as medidas protetivas de
urgência previstas nos incisos I, II e III do art. 22 da Lei nº 11.340/2006
(Lei Maria da Penha):
Art. 22. Constatada a prática de
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz
poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as
seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou
restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da
Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003 ;
II - afastamento do lar,
domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas
condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de
seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre
estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus
familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) frequentação de determinados
lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
As partes foram intimadas da decisão
ainda no plantão.
Na segunda-feira,
os autos foram distribuídos ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher. O juiz do Juizado proferiu decisão mantendo as medidas cautelares
decretadas pelo magistrado plantonista. Contudo, determinou a citação do
requerido para apresentar contestação, sob pena de revelia.
A Promotora de Justiça que oficia no
Juizado ingressou com correição parcial contra esse despacho do juiz argumentando
que a citação e a aplicação dos efeitos da revelia são incompatíveis com a Lei
Maria da Penha e as regras processuais penais. A Promotora explicou que a Lei nº
11.340/2006 em seus arts. 18 e 24, ao tratar das medidas protetivas, não fala
em citação, mas apenas em intimação e notificação, haja vista que não há a
intenção de chamar o requerido ao processo para se defender de algo.
O Tribunal de Justiça julgou improcedente a correição
parcial sob o argumento de que seria possível determinar a citação do
requerido, na forma do Código de Processo Civil, conforme prevê o art. 13 da Lei
nº 11.340/2006:
Art. 13. Ao processo, ao
julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de
violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos
Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa
à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido
nesta Lei.
O Ministério Público interpôs recurso
especial insistindo na tese de que a Lei Maria da Penha não prevê a
possibilidade de citação do suposto autor do delito para contestar a medida
protetiva aplicada.
O STJ concordou com os argumentos do
Ministério Público?
SIM.
Medidas protetivas de urgência não
podem ser classificadas como tutela inibitória
De início, não figura viável
incluir as medidas protetivas de urgência como espécies de tutela inibitória.
As medidas previstas na Lei Maria
da Penha são concedidas em caráter provisório, a título precário, visto que se
baseiam não em juízo de certeza da prática ou da ameaça da prática do ato
ilícito pelo agressor, mas em juízo de probabilidade, fundado em elementos
indiciários colhidos em fase procedimental preliminar. Dessa forma, as medidas
devem ser, por sua natureza, revogáveis e reversíveis, quando constatada a
superveniente ausência dos motivos autorizadores de sua aplicação.
Quanto à distinção entre tutelas
antecipadas ou tutelas cautelares, o objeto das medidas protetivas não coincide
com o objeto da tutela jurisdicional final. Não se pretende precipuamente, por
meio da decretação dessas medidas, antecipar os efeitos da sentença ou
antecipar a fruição do bem jurídico desejado pelo autor da demanda, que apenas
seria obtido ao final do processo de conhecimento, em caso de procedência da
pretensão deduzida em juízo. Ao se decretar uma medida protetiva, visa-se,
antes de tudo, proteger a vida e a incolumidade física e psíquica da vítima e,
com isso, de uma forma mais ampla, acautelar a ordem pública, uma das
finalidades das cautelares previstas no Código de Processo Penal.
As medidas protetivas de urgência previstas no art. 22 são medidas
cautelares de natureza penal ou cível?
Natureza das medidas cautelares do art.
22 da Lei Maria da Penha |
|
Incisos
I, II e III: natureza CRIMINAL |
Incisos
IV, V, VI e VII: natureza CÍVEL |
I - suspensão/restrição de armas; II - afastamento do lar; III - proibição de aproximação ou
contato. |
IV - restrição ou suspensão de
visitas aos dependentes menores; V - prestação de alimentos. VI - comparecimento do agressor a
programas de recuperação e reeducação; VII - acompanhamento psicossocial do
agressor. |
Razões pelas quais as medidas dos
incisos I, II e III possuem natureza criminal
1) as medidas previstas nos
incisos I, II e III do art. 22 implicam, de um lado, relevante restrição à
liberdade de ir e vir do acusado, enquanto buscam, de outro vértice, preservar
os direitos fundamentais à vida e à integridade física e psíquica da suposta
vítima. O status elevado dos direitos em contraste justifica uma tutela de
ordem penal, tanto para o acusado, pois sua liberdade não pode vir a ser
restringida de forma temerária e sem a observância de requisitos mínimos,
quanto para a ofendida, que busca na esfera penal uma tutela célere e efetiva
de seus direitos.
2) É possível a decretação de
prisão preventiva do suposto agressor para assegurar a execução das medidas
protetivas de urgência, nos crimes que envolvem violência doméstica e familiar,
a teor do inciso III do art. 313 do CPP. Ou seja, eventual renitência do
acusado em descumprir as medidas impostas pelo juiz, especialmente aquelas que
determinam seu afastamento da vítima e a proibição de com ela manter contato,
podem fundamentar a decretação de prisão provisória do suposto agressor. Se
tais medidas fossem consideradas de natureza cível, a possibilidade de
decretação de prisão ficaria prejudicada, ante a impossibilidade de se criar,
por lei, nova hipótese de prisão civil, para além da expressa previsão
constitucional relativa ao devedor de alimentos (art. 5º, inciso LXVII, da CF/88).
Assim, se o próprio diploma processual penal passou a prever expressamente a
possibilidade de decretação de prisão preventiva ao acusado que descumpre
medida protetiva anteriormente imposta, pode-se concluir que o legislador
considerou ter natureza penal a cautelar em questão, pois de outra forma não se
poderia cogitar de hipótese de privação temporária da liberdade do renitente.
3) É possível fazer um paralelismo entre as medidas
protetivas dos incisos I, II e III do art. 22 da Lei nº 11.340/2006 e as
medidas alternativas à prisão trazidas nos incisos II e III do art. 319 do CPP:
Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
I - comparecimento periódico em
juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar
atividades;
II - proibição de acesso ou
frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao
fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar
o risco de novas infrações;
III - proibição de manter contato
com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o
indiciado ou acusado dela permanecer distante;
(...)
Dessa forma, tanto a proibição de
acessar ou frequentar determinados lugares para evitar a prática de novas
infrações penais, quanto a proibição de manter contato com pessoa determinada
têm grande semelhança com as medidas de proibição de aproximar-se da vítima e de
com ela manter contato, previstas na lei protetiva à mulher.
4) Reconhecer a natureza penal
das medidas cautelares dos incisos I, II e III do art. 22 da Lei Maria da Penha
traz uma dúplice proteção:
• de um lado, protege a vítima,
pois concede a ela um meio célere e efetivo de tutela de sua vida e de sua
integridade física e psicológica, pleiteada diretamente à autoridade policial,
e reforçada pela possibilidade de decretação da prisão preventiva do suposto
autor do delito;
• de outro lado, protege o acusado,
porquanto concede a ele a possibilidade de se defender da medida a qualquer
tempo, sem risco de serem a ele aplicados os efeitos das revelia.
A lei não prevê a citação
do requerido
Não há previsão de procedimento
específico para concessão das medidas protetivas de urgência, restringindo-se a
lei a determinar, em seu art. 18, que caberá ao juiz, a requerimento do
Ministério Público ou da ofendida, no prazo de 48 horas, decidir sobre as
medidas protetivas, entre outras providências. Dessa feita, não cabe a
instauração de um processo, com citação do requerido para ciência e
contestação, sob pena de decretação de sua revelia, nos moldes do estabelecido
na lei processual civil.
Não se aplica
subsidiariamente o CPC, mas sim o CPP
Aplicável, sim, o regramento do
Código Processual Penal que, em caso de risco à efetividade da medida,
determina a intimação do suposto agressor após a decretação da cautelar,
facultando-lhe a possibilidade de manifestar-se nos autos a qualquer tempo, sem
a aplicação dos efeitos da revelia.
O parágrafo único do art. 21
também reforça a não adoção do regramento previsto no CPC, porquanto determina
que “a ofendida não poderá entregar intimação ou notificação ao agressor”, nada
mencionando sobre citação.
Portanto, deve-se aplicar às
medidas protetivas de urgência o regramento previsto pelo Código de Processo
Penal no que tange às medidas cautelares. Dessa forma, não cabe falar em
instauração de processo próprio, com citação do requerido, tampouco com a possibilidade
de decretação de sua revelia em caso de não apresentação de contestação no
prazo de cinco dias. Aplicada a cautelar inaudita altera pars, para
garantia de sua eficácia, o acusado será intimado de sua decretação,
facultando-lhe, a qualquer tempo, a apresentação de razões contrárias à
manutenção da medida.
Em suma:
As medidas protetivas de urgência previstas nos
incisos I, II e III do art. 22 da Lei Maria da Penha têm natureza de cautelares
penais, não cabendo falar em citação do requerido para apresentar contestação,
tampouco a possibilidade de decretação da revelia, nos moldes da lei processual
civil.
STJ. 5ª
Turma. REsp 2.009.402-GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Rel. Acd. Min. Joel Ilan
Paciornik, julgado em 08/11/2022 (Info 756).