O caso concreto foi o seguinte:
Regina tentou matricular sua
filha de 3 anos na creche municipal, no entanto, não havia mais vagas
disponíveis.
Diante disso, foi ajuizada ação pedindo
para que o Poder Judiciário obrigasse o Município a fornecer vaga.
O pedido foi julgado procedente
em 1ª instância, tendo sido a sentença mantida no Tribunal de Justiça.
O
Município interpôs recurso extraordinário, argumentando que não cabe ao Poder
Judiciário interferir nas questões orçamentárias da municipalidade, porque não
é possível impor aos órgãos públicos obrigações que importem gastos, sem que
estejam previstos valores no orçamento para atender à determinação.
O STF manteve a decisão? O Estado
(em sentido amplo) tem o dever de assegurar o atendimento em creche e
pré-escola?
SIM.
O Estado
tem o dever constitucional de assegurar às crianças entre zero e cinco anos de
idade o atendimento em creche e pré-escola.
STF.
Plenário. RE 1008166/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 22/9/2022 (Info 1069).
Vejamos os principais argumentos
expostos no voto do Ministro Relator.
A relevância do acesso à
educação infantil
A educação infantil, como
primeira etapa do ciclo de educação básica, assume relevância singular no
início da formação da personalidade humana.
As primeiras experiências de
convívio educacional na primeira infância marcam etapas importantes na formação
de sua personalidade, bem como da sua socialização e inteligência emocional,
contribuindo para o desenvolvimento de capacidades psíquicas, físicas e
motoras, em metodologia lúdica que permita o cuidado e a proteção integral das
crianças.
Na primeira infância, o acesso à
educação infantil de qualidade é essencial para que se busque, mediante o
exercício de funções de cuidado, educação e atenção, a formação de componentes imprescindíveis
ao desenvolvimento integral das crianças, para que essas possam, de forma
ativa, começar a construir conhecimentos sobre si mesmas, bem como sobre o
mundo que as cerca.
Nesse
contexto, a necessidade de as famílias irem trabalhar fez surgir a necessidade
de creches, como estabelecimentos extradomiciliares específicos destinados ao
serviço de educação e cuidado para as crianças de primeira infância, enquanto
os demais integrantes de suas famílias se afastavam do lar para trabalhar.
Agenda 2030
Nesse sentido, destaque-se que a
Organização das Nações Unidas (ONU) elenca como Objetivo de Desenvolvimento
Sustentável nº 4 da Agenda 2030 a promoção de educação de qualidade, para
assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover
oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.
De forma mais específica, a meta
4.2 dispõe sobre o compromisso de assegurar a todas as crianças o
desenvolvimento integral na primeira infância (0 a 5 anos), mediante acesso a
cuidados e à educação infantil de qualidade, de modo que estejam preparadas
para etapas posteriores de sua vida escolar.
O status constitucional do
direito à educação infantil em creches e pré-escolas
O direito à educação é um dos direitos sociais, estando
expressamente elencado no art. 6º da CF/88:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.
A Carta de 1988 estabelece ainda que a educação é direito de
todos e dever do Estado e da família (art. 205), a ser efetivado mediante a
garantia de educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade:
Art. 7º (...)
XXV - assistência gratuita aos filhos e
dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e
pré-escolas;
Art. 208. O dever do Estado com a
educação será efetivado mediante a garantia de:
(...)
IV - educação infantil, em creche e
pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade;
A legislação infraconstitucional, por seu turno, reafirmou o
compromisso da Carta da República com o direito à educação infantil. Nesse
sentido, confira o que previu o Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 53. A criança e o adolescente têm
direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo
para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho,
assegurando-se-lhes:
I - igualdade de condições para o
acesso e permanência na escola;
(...)
Art. 54. É dever do Estado assegurar à
criança e ao adolescente:
(...)
IV - atendimento em creche e pré-escola
às crianças de zero a cinco anos de idade;
Da mesma forma, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei nº 9.394/96), expressamente determina:
Art. 4º O dever do Estado com educação
escolar pública será efetivado mediante a garantia de:
(...)
II - educação infantil gratuita às
crianças de até 5 (cinco) anos de idade;
Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão
de:
(...)
V - oferecer a educação infantil em
creches e pré-escolas (...)
Art. 29. A educação infantil, primeira
etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da
criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico,
intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.
(Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013)
Art. 30. A educação infantil será
oferecida em:
I - creches, ou entidades equivalentes,
para crianças de até três anos de idade;
II - pré-escolas, para as crianças de 4
(quatro) a 5 (cinco) anos de idade. (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013).
Nota-se, assim, que a educação
básica representa prerrogativa constitucional deferida a todos (art. 205),
notadamente às crianças (arts. 208, IV, e 227, “caput”), cujo adimplemento
impõe a satisfação de um dever de prestação positiva pelo Poder Público, consistente na
garantia de acesso pleno ao sistema educacional, inclusive ao atendimento em
creche e pré-escola.
Com efeito, a universalização
desse acesso tem potencial de contribuir substancialmente para a redução de
desigualdades sociais e raciais.
Papel dos Municípios
A educação infantil é direito
subjetivo assegurado no próprio texto constitucional, mediante norma de
aplicabilidade direta e eficácia plena, isto é, sem a necessidade de
regulamentação pelo Poder Legislativo. Nesse contexto, os entes municipais, por
meio de políticas públicas eficientes, são primariamente responsáveis por proporcionar a concretização da
educação infantil mediante a adoção de políticas públicas eficientes, que devem
alcançar especialmente a população mais vulnerável.
Eventual omissão estatal na
matéria revela uma violação direta ao texto constitucional, não se podendo
considerar que o oferecimento da educação infantil seja algo que está sujeito a
avaliações meramente discricionárias da Administração Pública.
Existe, portanto, um dever
constitucional de assegurar o atendimento em creche e pré-escola às crianças de
zero a cinco anos de idade (art. 208, IV), de sorte que eventual inércia
administrativa inaugura a possibilidade de proteção desse direito na via
judicial.
Possibilidade de
intervenção do Poder Judiciário para efetivar esse direito
Extrai-se da jurisprudência a
possibilidade de intervenção do Poder Judiciário mediante determinações à
Administração Pública para que efetue a matrícula de crianças em creches e
pré-escolas, a fim de realizar a promessa constitucional de prestação
universalizada de educação infantil.
A jurisprudência do STF firmou-se
pela possibilidade de se exigir judicialmente do Estado uma determinada
prestação material com o objetivo de concretizar um direito fundamental.
Teses fixadas
1. A
educação básica em todas as suas fases — educação infantil, ensino fundamental
e ensino médio — constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens,
assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta
e imediata.
2. A
educação infantil compreende creche (de zero a 3 anos) e a pré-escola (de 4 a 5
anos). Sua oferta pelo Poder Público pode ser exigida individualmente, como no
caso examinado neste processo.
3. O
Poder Público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas
constitucionais sobre acesso à educação básica.
STF.
Plenário. RE 1008166/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 22/9/2022 (Repercussão
Geral – Tema 548) (Info 1069).
Com base nesses entendimentos, o
Plenário, por maioria, ao apreciar o Tema 548 da repercussão geral, negou
provimento ao recurso extraordinário, confirmando o acórdão recorrido, para
assentar o dever de a municipalidade efetuar a matrícula de uma criança em
estabelecimento de educação infantil próximo de sua residência.