NOÇÕES GERAIS
SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Princípio
da autonomia patrimonial
As pessoas jurídicas são sujeitos de
direitos. Isso significa que possuem personalidade jurídica distinta de seus
instituidores. Assim, por exemplo, não é porque o sócio morreu que,
obrigatoriamente, a pessoa jurídica será extinta.
De igual modo, o patrimônio da pessoa
jurídica é diferente do patrimônio de seus sócios.
Ex.1: se uma sociedade empresária
possui um veículo, esse automóvel não pertence aos sócios, mas sim à própria
pessoa jurídica.
Ex.2: se uma sociedade empresária
possui uma dívida, este débito deverá ser pago com os bens da própria
sociedade, não podendo para isso, em regra, ser utilizado o patrimônio pessoal
dos sócios.
Vigora, portanto, o princípio da
autonomia patrimonial entre os bens do sócio e da pessoa jurídica.
Desconsideração
da personalidade jurídica
O ordenamento jurídico prevê algumas
situações em que essa autonomia patrimonial pode ser afastada.
Tais hipóteses são chamadas de
“desconsideração da personalidade jurídica” (disregard of legal entity ou teoria do superamento da personalidade
jurídica).
Quando se aplica a desconsideração da
personalidade jurídica, os bens particulares dos administradores ou sócios são
utilizados para pagar dívidas da pessoa jurídica.
Por
que foi idealizada essa teoria da desconsideração da personalidade jurídica?
A autonomia patrimonial das pessoas
jurídicas sempre foi um instrumento muito importante para o desenvolvimento da
economia e da atividade empresarial. Isso porque serviu para estimular os
indivíduos a praticarem atividades econômicas, uma vez que, constituindo
pessoas jurídicas, as pessoas físicas sabiam que apenas o patrimônio da
sociedade empresária responderia pelas dívidas em caso de insucesso. Com isso,
as pessoas físicas ficavam mais seguras, já que, mesmo que o empreendimento não
prosperasse, elas não perderiam também o seu patrimônio pessoal não investido
na sociedade.
Ocorre que alguns indivíduos começaram
a abusar da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, utilizando-a como um meio
de praticar fraudes. A pessoa jurídica, após adquirir diversas dívidas,
transferia todo lucro e patrimônio para o nome dos sócios e, com isso, não
tinha como pagar os compromissos assumidos, não sobrando bens da sociedade que
pudessem ser executados pelos credores.
Percebendo esse abuso, a jurisprudência
passou a permitir a desconsideração da personalidade jurídica nessas hipóteses.
Posteriormente, foram editadas leis prevendo expressamente a possibilidade da
desconsideração.
Histórico
da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil
• CC-1916: não previa a possibilidade
de desconsideração da personalidade jurídica.
• Na década de 60, Rubens Requião foi
um dos primeiros doutrinadores brasileiros a defender a aplicação da teoria no
Brasil, mesmo sem previsão legal.
• Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do
Consumidor): foi a primeira lei a prever a possibilidade de desconsideração da
personalidade jurídica no Brasil (art. 28).
• Lei nº 8.884/94 (antiga Lei
Antitruste): também previu a desconsideração.
• Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes
Ambientais): também disciplinou a desconsideração.
• Código Civil de 2002: trouxe previsão
expressa no art. 50.
• Lei nº 12.529/2011: desconsideração
em caso de infrações da ordem econômica (art. 34).
• Lei nº 13.105/2015 (“novo” CPC):
previu um procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica.
• Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade
Econômica), fruto da conversão da MP 881/2019: produziu profundas mudanças no
regime da desconsideração da personalidade jurídica previsto no Código Civil.
TEORIAS MAIOR
E MENOR
A
desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito das relações civis gerais,
está disciplinada no art. 50 do CC.
Podemos dizer que
esse art. 50 traz a regra geral sobre a desconsideração jurídica no ordenamento
jurídico brasileiro, havendo algumas previsões específicas em diplomas próprios
(como é o caso do CDC).
Art.
50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte,
ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo,
desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de
sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (redação dada pela
Lei nº 13.874/2019)
Espécies
de abuso da personalidade jurídica
Somente
poderá ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica nas relações
jurídicas regidas pelo Código Civil se ficar caracterizado que houve abuso da
personalidade jurídica.
O abuso
da personalidade jurídica pode ocorrer em duas situações:
1) Desvio
de finalidade;
2)
Confusão patrimonial.
Além
disso, para que se atinja o patrimônio do administrador ou do sócio deve ser
provado que essa pessoa foi beneficiada com o abuso da personalidade jurídica.
Teorias
maior e menor da desconsideração
Como vimos acima, a desconsideração da personalidade
jurídica não é prevista apenas no Código Civil. Existem outros importantes
diplomas que tratam sobre o tema, como é o caso do CDC e da Lei Ambiental.
Ocorre que nem todas as leis trazem os mesmos requisitos para a desconsideração.
A partir daí surgiram dois grupos de legislações separadas a partir dos
requisitos impostos para a desconsideração. Confira:
Teoria MAIOR |
Teoria MENOR |
O
Direito Civil brasileiro adotou, como regra geral, a chamada teoria maior da
desconsideração. Isso porque o art. 50 exige que se prove o desvio de
finalidade (teoria maior subjetiva) ou a confusão patrimonial (teoria maior
objetiva). |
No
Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, adotou-se a teoria menor da
desconsideração. Isso porque, para que haja a desconsideração da
personalidade jurídica nas relações jurídicas envolvendo consumo ou
responsabilidade civil ambiental não se exige desvio de finalidade nem
confusão patrimonial. |
Deve-se
provar: 1) Abuso
da personalidade (desvio de finalidade ou confusão patrimonial); 2) Que
os administradores ou sócios da pessoa jurídica foram beneficiados direta ou
indiretamente pelo abuso (novo requisito trazido pela Lei nº 13.874/2019). |
De
acordo com a Teoria Menor, a incidência da desconsideração se justifica: a) pela
comprovação da insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas
obrigações, somada à má administração da empresa (art. 28, caput, do CDC); ou
b) pelo
mero fato de a personalidade jurídica representar um obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, nos termos do § 5º do
art. 28 do CDC. STJ. 3ª
Turma. REsp 1735004/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 26/06/2018. |
Prevê a
possibilidade de se estender as obrigações da empresa a sócios e
administradores (mesmo que não sejam sócios). |
Somente
prevê a possibilidade de se estender obrigações da empresa a sócios (não fala
em “administradores”). |
Adotada
pelo art. 50 do CC. |
Prevista
no art. 4º da Lei nº 9.605/98 (Lei Ambiental) e no art. 28, § 5º do CDC. |
Dica para
você não confundir: teoria maior porque exige um maior número de requisitos.
Veja como o tema já
foi cobrado em prova:
(Juiz TJ/AP FGV 2022)
A consumidora Samantha propôs incidente de desconsideração de personalidade
jurídica em face de determinada loja de bijuterias construída na forma de
sociedade limitada. Narra a autora que, na fase de cumprimento de sentença que
condenou a empresa a pagar indenização à consumidora, não logrou êxito em
localizar bens para satisfazer a execução, embora diversas tenham sido as
tentativas para tanto. Samantha alega ainda que, na fase cognitiva, a
fornecedora foi declarada revel e sequer compareceu às audiências designadas
pelo Juízo.
A respeito disso, é
correto afirmar que o pedido deve ser julgado:
(A) improcedente,
pois a revelia e a ausência de participação no processo judicial não sugerem
abuso da personalidade jurídica, requisito para o deferimento do requerido;
(B) improcedente,
pois, para a desconsideração requerida, deverá restar efetivada falência,
estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica
provocados por má administração;
(C) procedente, ainda
que o Código de Defesa do Consumidor não preveja a desconsideração da
personalidade jurídica, quando caracterizado abuso da personalidade jurídica
evidenciado no caso pleiteado por Samantha;
(D) procedente, à luz
da aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica,
prevista no Código de Defesa do Consumidor;
(E) improcedente, pois,
ainda que prevista no Código de Defesa do Consumidor, a desconsideração
requerida não pode ser aplicada de forma a implicar a perda da finalidade de
responsabilidade limitada das sociedades, exceto no uso fraudulento da
personalidade jurídica.
Gabarito: Letra D
CASO CONCRETO JULGADO PELO STJ
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João ingressou com execução
contra a empresa Alfa Empreendimentos Imobiliários.
Não se conseguiu localizar bens
penhoráveis em nome da empresa.
Em razão disso, o juiz autorizou
a desconsideração da personalidade jurídica para buscar bens pessoais dos
sócios. Ocorre que também não se encontrou bens penhoráveis dos sócios.
O exequente pediu, então, que fosse
aplicada a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica para
permitir a responsabilização pessoal de Pedro, administrador da empresa. O
pedido do exequente se fundamentou unicamente no § 5º do art. 28 do CDC, não
tendo sido demonstrados os requisitos exigidos pelo art. 50 do Código Civil.
O problema é que Pedro não
integra o quadro societário da empresa. Trata-se de administrador não sócio.
A discussão chegou até o
STJ. É possível a aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade
jurídica para admitir a responsabilização pessoal de quem não integra o quadro
societário da empresa (administrador não sócio)?
NÃO.
Para a aplicação da teoria menor da desconsideração da
personalidade jurídica (art. 28, § 5º, do CDC), revela-se suficiente que
consumidor demonstre o estado de insolvência do fornecedor ou o fato de a
personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos
causados. Confira o dispositivo:
Art. 28. O juiz poderá
desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do
consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou
ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração
também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência,
encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
(...)
§ 5º Também poderá ser
desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma
forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
A citada teoria encontra como
pressuposto o fato de que o risco empresarial, inerente ao exercício da
atividade econômica, deve ser suportado por aqueles que integram os quadros
societários, com capacidade de gestão, e não o consumidor.
Assim, “em se tratando de vínculo
de índole consumerista, (é possível) a utilização da chamada Teoria Menor da
desconsideração da personalidade jurídica, a qual se contenta com o estado de
insolvência do fornecedor, somado à má administração da empresa, ou, ainda, com
o fato de a personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento de
prejuízos causados aos consumidores (art. 28 e seu § 5º, do Código de Defesa do
Consumidor)” (STJ. 4ª Turma. REsp 1.111.153/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão,
julgado em 06/12/2012).
Entretanto, diversamente do que
ocorre com a teoria maior, prevista no Código Civil, o § 5º do art. 28 do CDC
não contempla a previsão específica acerca da possibilidade de extensão da
responsabilidade ao administrador não sócio, isto é, àquele que, embora
desempenhe as funções gerenciais, não integra o quadro societário.
Oportuno destacar que, na redação
original do diploma consumerista, havia alusão/menção expressa sobre o
atingimento do patrimônio do administrador, ainda que não-sócio,
especificamente no § 1º do art. 28. Todavia, o artigo em comento foi vetado,
não havendo, portanto, no diploma em questão, previsão para desconsideração em
relação àquele que não integre o quadro societário.
Ainda que o caput
do art. 28 pudesse ser conjugado com a norma prevista no art. 50 do Código
Civil - pois ambos versam acerca da teoria maior -, a fim de reconhecer a
possibilidade de desconsideração para estender a responsabilidade obrigacional
aos administradores não integrantes do quadro societário, infere-se a
inviabilidade de o fazer em relação ao disposto no § 5º do art. 28 do Código de
Defesa do Consumidor, lastreado na teoria menor. Isso porque, o dispositivo em
comento, autônomo em relação ao caput, afigura-se mais gravoso, pois tem
incidência em hipóteses mais flexíveis, exigindo menos requisitos, isto é, sem
a necessidade de demonstração do abuso da personalidade jurídica, prática de
ato ilícito ou de infração. Aplica-se, por conseguinte, a casos de mero
inadimplemento, em que se observe, por exemplo, a ausência de bens de titularidade
da pessoa jurídica, hábeis a saldar o débito. Nesse sentido:
O art. 50 do CC, que adota a teoria maior e permite a
responsabilização do administrador não-sócio, não pode ser analisado em
conjunto com o parágrafo 5º do art. 28 do CDC, que adota a teoria menor, pois
este exclui a necessidade de preenchimento dos requisitos previstos no caput do
art. 28 do CDC permitindo a desconsideração da personalidade jurídica, por
exemplo, pelo simples inadimplemento ou pela ausência de bens suficientes para
a satisfação do débito. Microssistemas independentes.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.658.648/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro,
julgado em 7/11/2017.
Nesse contexto, dada
especificidade do parágrafo em questão, e as consequências decorrentes de sua
aplicação - extensão da responsabilidade obrigacional -, afigura-se inviável a
adoção de um interpretação extensiva, com a atribuição de abrangência apenas
prevista no art. 50 do CC/2002, particularmente no que concerne ao atingimento
do patrimônio de administrador não sócio.
Em suma:
Para fins de aplicação da Teoria Menor da
desconsideração da personalidade jurídica, o § 5º do art. 28 do CDC não dá
margem para admitir a responsabilização pessoal de quem não integra o quadro
societário da empresa (administrador não sócio).
STJ. 4ª
Turma. REsp 1.860.333-DF, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 11/10/2022 (Info
754).
No mesmo sentido:
(...) 2. Para fins de aplicação da Teoria Menor da
desconsideração da personalidade jurídica (art. 28, § 5º, do CDC), basta que o
consumidor demonstre o estado de insolvência do fornecedor ou o fato de a
personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos
causados.
3. A despeito de não exigir prova de abuso ou fraude para fins
de aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica,
tampouco de confusão patrimonial, o § 5º do art. 28 do CDC não dá margem para
admitir a responsabilização pessoal de quem não integra o quadro societário da
empresa, ainda que nela atue como gestor. Precedente.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.862.557/DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas
Cueva, julgado em 15/6/2021.