A situação concreta, com
adaptações, foi a seguinte:
Determinada companhia aérea possui um
programa de fidelidade baseado em pontos/bônus de milhagem aérea. Assim, quanto
mais se viaja, mais se acumula pontos e se pode adquirir passagens com essa
milhagem.
Ocorre que o regulamento desse
programa tem uma cláusula dizendo que se a pessoa que participa do programa falecer,
os pontos acumulados se extinguem e não passam para os herdeiros.
Veja a redação da cláusula:
“A
Pontuação obtida na forma deste Regulamento é pessoal e intransferível, sendo vedada
sua transferência para terceiros, a qualquer título, inclusive por sucessão ou herança,
dessa forma, no caso de falecimento do Cliente titular do Programa, a conta-corrente
será encerrada e a Pontuação existente e as passagens prêmio emitidas serão
canceladas.”
Em outras palavras, se a pessoa
morrer, as suas milhas não vão para os seus herdeiros.
A PRO TESTE, associação de defesa do
consumidor, ajuizou ação civil pública contra essa companhia aérea alegando
que essa cláusula é abusiva e pedindo que fosse reconhecido que os herdeiros
têm direito de receber esses pontos em caso de falecimento do titular.
O STJ concordou os argumentos da
autora? Essa cláusula é abusiva?
NÃO.
Antes de se adentrar ao tema
propriamente dito da validade ou não da cláusula do regulamento, importante
destacar que, atualmente, existem duas formas de acúmulo de pontos.
A primeira é aquela na qual o consumidor
ganha os pontos, a título “gratuito”, como um bônus por sua fidelidade na
aquisição de um produto ou serviço diretamente contratado com a companhia
aérea. Os pontos funcionam como meio de prestigiar o consumidor fiel.
A segunda é aquela na qual o
consumidor se inscreve, de maneira onerosa, em um programa de aceleração de acúmulo
de pontuação e outros benefícios. É como se fosse um clube premium de
benefícios, mas desde que se pague um valor.
O pedido formulado na ACP se volta
unicamente contra as cláusulas do primeiro programa.
Feita a diferenciação, passemos à
análise dos fundamentos invocados pelo STJ.
Contrato de adesão
Inicialmente, importante esclarecer
que a adesão ao Regulamento do programa de benefícios instituído pela companhia
aérea deve ser considerada como contrato de adesão. Isso porque as cláusulas
são estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor do serviço, sem que o
consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo (art. 54
do CDC).
Vale
ressaltar, contudo, que nos contratos de adesão não existe ilegalidade intrínseca, razão
pela qual só serão declaradas abusivas e, portanto, nulas, aquelas cláusulas
que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, que coloquem o consumidor em
desvantagem exagerada, que tragam desequilíbrio de direitos e obrigações
típicos àquele contrato específico, que frustrem os interesses básicos das
partes presentes naquele tipo de relação, ou sejam incompatíveis com a boa-fé
ou equidade, nos termos do art. 51, IV, CDC:
Art. 51. São nulas de pleno
direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de
produtos e serviços que:
(...)
IV - estabeleçam obrigações
consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem
exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
Contrato unilateral
Apesar de ser um contrato de adesão, o
presente pacto também pode ser considerado como um contrato unilateral. Isso
porque somente gera obrigações para a companhia aérea.
Contrato gratuito/benéfico
A adesão ao regulamento do programa de
benefícios também deve ser considerada como sendo um contrato
gratuito/benéfico, pois ao passo que gera obrigações somente à instituidora do
programa, o consumidor que pretende a ele aderir e dele se beneficiar, não
precisa desembolsar nenhuma quantia. Ou seja, pelo fornecimento do serviço de
acúmulo de pontos não há uma contraprestação pecuniária do consumidor.
Não há desvantagem exagerada
Assim, neste contrato, somente a
companhia aérea instituidora do programa assumirá obrigações e o consumidor não
pagará nada. Por essa razão, não se tem como dizer que a impossibilidade de
transferência dos pontos gratuitos acumulados pelo consumidor, após o seu
falecimento, acarretará, aos seus sucessores, excessiva desvantagem apta a ser
coibida pelo Poder Judiciário.
Interpretação deve ser restritiva
Sendo contrato gratuito, o pacto deve ser interpretado de
forma restritiva, nos termos do art. 114 do CC:
Art. 114. Os negócios jurídicos
benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.
Contratos gratuitos são intuito
personae
Conforme ensina o professor Sílvio de Salvo Venosa, os
contratos gratuitos são intuito personae:
“Nos
contratos gratuitos, toda carga de responsabilidade contratual fica por conta
de um dos contratantes; o outro só pode auferir benefícios do negócio. Daí a
denominação também consagrada de contratos benéficos. (...) a pessoa do
contratante beneficiado nos contratos gratuitos é tida como essencial. Por
isso, tais contratos são intuito personae (o que não impede que existam
contratos onerosos personalíssimos, como é curial). (...) Essa classificação é
de muita importância, porque cada categoria terá regras próprias. A começar
pela interpretação, os contratos benéficos, por disposição do Código, sofrem
interpretação restritiva (art. 114; antigo, art. 1.090). Na dúvida, não se
amplia o alcance de um contrato benéfico” (Direito Civil: teoria geral das
obrigações e teoria geral dos contratos. 2º vol., 5ª ed. São Paulo: Atlas,
2005p. 433/434).
Conclusões
De forma resumida, de se
considerar que:
1) como o consumidor nunca foi
obrigado a se cadastrar no mencionado programa de benefícios e tal fato não o
impede de se utilizar dos serviços, dentre eles o de transporte aéreo
oferecidos pela companhia aérea, ou seus parceiros;
2) quando se cadastrou, de livre
e espontânea vontade, era sabedor das regras benéficas que são claras em
relações aos direitos, obrigações e limitações; e,
3) como benefício por ele
concedido nada paga e sequer assume deveres em face de outros, não há mesmo
como se admitir o reconhecimento de abusividade da cláusula que impede a
transferência dos pontos bônus após a morte do seu titular.
Assim, inexistindo ilegalidade ou
abusividade, se o consumidor não concorda com as regras do programa de
benefícios, era só a ele não aderir. E se aderiu, deve prevalecer a cláusula rebus
sic stantibus.
Em suma:
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.878.651-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 04/10/2022 (Info
753).