Imagine a seguinte situação
hipotética:
João e Pedro são irmãos
biológicos. Eles foram criados, desde criança, juntamente com Regina, que não
tem qualquer vínculo biológica com os dois.
Assim, os três cresceram juntos,
como se fossem três irmãos. Inclusive, João e Pedro sempre apresentavam a todos
Regina como sendo sua irmã. Apesar disso, nunca houve qualquer formalização
dessa situação.
Regina faleceu.
João e Pedro ajuizaram ação de
reconhecimento de vínculo parental socioafetivo “post mortem” contra o espólio
de Regina pedindo para que fosse declarado o vínculo socioafetivo fraternal (colateral
em segundo grau) entre eles e a falecida.
Assim, os autores propuseram uma
ação de reconhecimento da fraternidade/irmandade socioafetiva post mortem.
Queriam que fossem reconhecidos como “irmãos de criação” de Regina.
Juiz e TJ/SP
O juízo de primeiro grau
extinguiu o processo sem resolução do mérito, sob o fundamento de que o pedido
não teria amparo no ordenamento jurídico (impossibilidade jurídica do pedido).
O Tribunal de Justiça de São
Paulo manteve a sentença, por entender que a falecida não buscou ser
reconhecida como filha dos pais dos autores da ação, o que impossibilitaria o
reconhecimento de parentesco colateral socioafetivo unicamente para atribuir
direitos sucessórios aos irmãos.
Ainda irresignados, os autores
interpuseram recurso especial.
O que decidiu o STJ? Esse
pedido pode, em tese, ser admitido e julgado procedente?
SIM.
Atual concepção de família
A atual concepção de família tem
um conceito amplo. A afetividade é, atualmente, considerada como uma fonte de
parentesco.
A socioafetividade é contemplada pelo art. 1.593 do Código
Civil, que prevê:
Art. 1.593. O parentesco é
natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
Ao falar em “outra origem”, o
legislador permite que a paternidade seja reconhecida com base em outras fontes
que não apenas a relação de sangue. Logo, permite a paternidade com fundamento
no afeto. Assim, a paternidade socioafetiva é uma forma de parentesco civil.
Assim, o afeto solidário ínsito
às relações familiares consubstancia, por ele mesmo, fonte de parentesco.
Esse assunto já está pacificado
na jurisprudência:
É possível o reconhecimento da paternidade socioafetiva post
mortem, ou seja, mesmo após a morte do suposto pai socioafetivo.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.500.999-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas
Cueva, julgado em 12/4/2016 (Info 581).
A afetividade pode gerar o
parentesco não apenas em linha reta, mas também na linha colateral
A particularidade do presente
caso está no fato de não se tratar de investigação de filiação socioafetiva
(paternidade ou maternidade) - hipótese comumente submetida à apreciação do
Poder Judiciário -, mas sim do reconhecimento de parentesco colateral em
segundo grau, calcado em vínculo socioafetivo fraternal.
O STJ decidiu que isso é
possível.
A afetividade pode gerar o
parentesco não apenas em linha reta, mas também na linha colateral.
Assim, configurada a afetividade,
é possível não apenas o reconhecimento de paternidade/maternidade socioafetiva,
mas também a fraternidade/irmandade socioafetiva.
Importante, ainda, esclarecer que
essa fraternidade/irmandade socioafetiva pode ser reconhecida de forma
individual/autônoma, ou seja, mesmo que não se reconheça previamente a parentalidade
socioafetiva.
Desse modo, não se visualiza
óbice à pretensão autônoma deduzida, calcada na configuração da posse do estado
de irmãos. O Juiz agiu de forma prematura ao indeferir a petição inicial, sem
que os autores pudessem efetivamente demonstrar os requisitos necessários à
caracterização da irmandade socioafetiva.
Em suma:
Inexiste qualquer vedação legal ao reconhecimento da
fraternidade/irmandade socioafetiva, ainda que post mortem, pois a
declaração da existência de relação de parentesco de segundo grau na linha
colateral é admissível no ordenamento jurídico pátrio, merecendo a apreciação
do Poder Judiciário.
STJ. 4ª
Turma. Resp 1.674.372-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 04/10/2022 (Info
753).