Dizer o Direito

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

É ilegal a fixação ad eternum de medida protetiva, devendo o magistrado avaliar periodicamente a pertinência da manutenção da cautela imposta

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

No dia 15/01/2018, João ameaçou a sua companheira Regina, dizendo que iria matá-la.

No mesmo instante, Regina decidiu que não queria mais viver com ele e, com medo da ameaça, procurou o Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

O juiz deferiu medidas protetivas de urgência determinando que João mantivesse distância mínima de 500 metros de Regina e de seus familiares e não tentasse nenhum contato com ela por qualquer meio de comunicação (art. 22, III, “a” e “b”).

Em 23/04/2019, João foi condenado às penas de 1 mês e 10 dias de detenção, em regime inicial aberto, pela prática do crime de ameaça (art. 147 do CP). Na parte final da sentença, o magistrado afirmou: “torno definitiva a medida protetiva deferida em favor da ofendida” (proibição de aproximação).

O réu interpôs apelação no qual postulou a absolvição ou, alternativamente, o afastamento a medida protetiva de proibição de aproximação da vítima.

O Tribunal de Justiça negou provimento à apelação, mantendo a sentença na íntegra.

Em razão disso, a defesa impetrou habeas corpus alegando que a medida protetiva imposta com prazo indeterminado representa ilegal restrição à liberdade do paciente, ferindo o princípio da legalidade penal e da proibição de sanção de caráter perpétuo.

A defesa argumentou que, “ao estabelecer a medida protetiva de urgência de 'proibição de se aproximar da vítima' — cujo descumprimento pode ensejar a prisão do PACIENTE—'até que haja a cessão do risco à mulher', mas sem sequer estabelecer um período para a reavaliação da medida, o Magistrado sentenciante (endossado pelo TJ), na prática, impôs uma medida coercitiva por prazo indeterminado”.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

SIM.

 

Cautelaridade

As medidas protetivas de urgência possuem o caráter de cautelaridade, isto é, devem vigorar apenas enquanto forem necessárias ao processo e a seus fins (STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1.769.759/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 14/05/2019).

Sendo assim, as medidas protetivas possuem indiscutivelmente um caráter provisório, ainda que essa provisoriedade não signifique, necessariamente, um prazo previamente definido no tempo, até porque se mostra imprescindível que a proteção à vítima perdure enquanto o risco recair sobre ela, de forma que a mudança ou não no estado das coisas é que definirá a duração da providência emergencial.

Pelo fato de as medidas protetivas terem essa natureza provisória, “a manutenção de toda e qualquer medida protetiva de urgência depende da persistência dos motivos que evidenciaram a urgência da medida necessária à tutela do processo. São as medidas cautelares situacionais, pois tutelam uma situação fática de perigo. Desaparecido o suporte fático legitimador da medida, consubstanciado pelo fumus comissi delicti e pelo periculum libertatis, deve o magistrado revogar a constrição” (LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 3ª ed. rev., amp. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2015, p. 945).

 

Lei 13.964/2019 reforçou a roupagem acautelatória das prisões provisórias.

Vale ressaltar que nem mesmo a prisão preventiva pode se protrair no tempo indefinidamente. Isso significa que, desde 2019, a manutenção da prisão preventiva precisa ser periodicamente reavaliada acerca de sua necessidade, nos termos do art. 316, parágrafo único, do CPP:

Art. 316 (...)

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

 

Indeterminado não é o mesmo que permanente

Assim, fixar uma providência por prazo indeterminado não se confunde com tornar essa mesma providência permanente, eterna. É indeterminado aquilo que é impreciso, incerto, vago. Por outro lado, é permanente, eterno, aquilo que é definitivo, imutável. As medidas cautelares são indeterminadas, mas não são eternas.

Ao tornar definitiva, na sentença condenatória, a medida protetiva de proibição de aproximação da vítima, anteriormente imposta, o magistrado alterou a natureza e a razão de ser das medidas protetivas que, por serem “de urgência”, tal como o próprio nome diz, equivalem a uma tutela de defesa emergencial, a qual deve perdurar até que cessada a causa que motivou a sua imposição. Não é à toa que são chamadas de medidas acautelatórias “situacionais” e exigem, portanto, uma ponderação casuística.

Afirmar que a duração da medida deve estar atrelada aos motivos que a justificaram não autoriza o seu elastecimento inadvertido e sem base fática atual e contemporânea, com o intuito tão somente de justificar a perpetuação da providência de urgência, como se ela pudesse ser um fim em si mesma. O proceder do magistrado de manter de forma definitiva, no édito condenatório, a medida protetiva em comento viola o princípio da proporcionalidade e a proibição constitucional de aplicação de pena de caráter perpétuo.

 

Em suma:

É ilegal a fixação ad eternum de medida protetiva, devendo o magistrado avaliar periodicamente a pertinência da manutenção da cautela imposta.

STJ. 6ª Turma. HC 605.113-SC, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 08/11/2022 (Info 756).

 

Voltando ao caso concreto:

A medida protetiva é uma providência emergencial, acautelatória e de defesa da vítima, imposta assim que as ameaças chegaram ao conhecimento do Poder Judiciário, e que se eternizou no tempo para além do prazo da própria pena aplicada ao sentenciado, sem nenhum amparo em eventual perpetuação do suporte fático que a legitimou no início da persecução penal.

Diante disso, o STJ concedeu parcialmente a ordem para “tornar por prazo indeterminado a medida protetiva de proibição de aproximação da vítima, revogando-se a definitividade estabelecida na sentença condenatória, devendo o Juízo de primeiro grau avaliar, a cada 90 dias e mediante a prévia oitiva das partes, a necessidade da manutenção da cautela.”

 

DOD Plus – julgado correlato

É indevida a manutenção de medidas protetivas na hipótese de conclusão do inquérito policial sem indiciamento do acusado

No caso, foram deferidas medidas protetivas pelo prazo de seis meses. Ao término desse prazo, as medidas foram prorrogadas por mais seis meses. Todavia, apesar de as medidas protetivas terem sido devidamente fundamentadas, ocorreu a conclusão do inquérito policial sem indiciamento do investigado.

Diante disso, não faz mais sentido a manutenção dessas medidas.

As medidas de urgência, protetivas da mulher, do patrimônio e da relação familiar, somente podem ser entendidas por seu caráter de cautelaridade - vigentes de imediato, mas apenas enquanto necessárias ao processo e a seus fins.

STJ. 6ª Turma. RHC 159303/RS, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 20/09/2022 (Info 750).

 

 

 


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