Imagine a seguinte situação
hipotética:
No dia
15/01/2018, João ameaçou a sua companheira Regina, dizendo que iria matá-la.
No mesmo
instante, Regina decidiu que não queria mais viver com ele e, com medo da
ameaça, procurou o Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
O juiz
deferiu medidas protetivas de urgência determinando que João mantivesse
distância mínima de 500 metros de Regina e de seus familiares e não tentasse
nenhum contato com ela por qualquer meio de comunicação (art. 22, III, “a” e
“b”).
Em
23/04/2019, João foi condenado às penas de 1 mês e 10 dias de detenção, em
regime inicial aberto, pela prática do crime de ameaça (art. 147 do CP). Na
parte final da sentença, o magistrado afirmou: “torno definitiva a medida
protetiva deferida em favor da ofendida” (proibição de aproximação).
O réu
interpôs apelação no qual postulou a absolvição ou, alternativamente, o
afastamento a medida protetiva de proibição de aproximação da vítima.
O Tribunal
de Justiça negou provimento à apelação, mantendo a sentença na íntegra.
Em razão
disso, a defesa impetrou habeas corpus alegando que a medida protetiva
imposta com prazo indeterminado representa ilegal restrição à liberdade do
paciente, ferindo o princípio da legalidade penal e da proibição de sanção de
caráter perpétuo.
A defesa
argumentou que, “ao estabelecer a medida protetiva de urgência de 'proibição de
se aproximar da vítima' — cujo descumprimento pode ensejar a prisão do
PACIENTE—'até que haja a cessão do risco à mulher', mas sem sequer estabelecer
um período para a reavaliação da medida, o Magistrado sentenciante (endossado
pelo TJ), na prática, impôs uma medida coercitiva por prazo indeterminado”.
O STJ
concordou com os argumentos da defesa?
SIM.
Cautelaridade
As
medidas protetivas de urgência possuem o caráter de cautelaridade, isto é,
devem vigorar apenas enquanto forem necessárias ao processo e a seus fins (STJ.
6ª Turma. AgRg no REsp 1.769.759/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de
14/05/2019).
Sendo
assim, as medidas protetivas possuem indiscutivelmente um caráter provisório,
ainda que essa provisoriedade não signifique, necessariamente, um prazo
previamente definido no tempo, até porque se mostra imprescindível que a proteção
à vítima perdure enquanto o risco recair sobre ela, de forma que a mudança ou
não no estado das coisas é que definirá a duração da providência emergencial.
Pelo fato de as medidas protetivas terem essa
natureza provisória, “a manutenção de toda e qualquer medida protetiva de
urgência depende da persistência dos motivos que evidenciaram a urgência da
medida necessária à tutela do processo. São as medidas cautelares situacionais,
pois tutelam uma situação fática de perigo. Desaparecido o suporte fático
legitimador da medida, consubstanciado pelo fumus comissi delicti e pelo
periculum libertatis, deve o magistrado revogar a constrição” (LIMA,
Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 3ª ed. rev., amp.
e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2015, p. 945).
Lei
13.964/2019 reforçou a roupagem acautelatória das prisões provisórias.
Vale ressaltar que
nem mesmo a prisão preventiva pode se protrair no tempo indefinidamente. Isso
significa que, desde 2019, a manutenção da prisão preventiva precisa ser
periodicamente reavaliada acerca de sua necessidade, nos termos do art. 316,
parágrafo único, do CPP:
Art.
316 (...)
Parágrafo
único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar
a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão
fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. (Incluído pela Lei
nº 13.964, de 2019)
Indeterminado
não é o mesmo que permanente
Assim,
fixar uma providência por prazo indeterminado não se confunde com tornar essa
mesma providência permanente, eterna. É indeterminado aquilo que é impreciso,
incerto, vago. Por outro lado, é permanente, eterno, aquilo que é definitivo,
imutável. As medidas cautelares são indeterminadas, mas não são eternas.
Ao
tornar definitiva, na sentença condenatória, a medida protetiva de proibição de
aproximação da vítima, anteriormente imposta, o magistrado alterou a natureza e
a razão de ser das medidas protetivas que, por serem “de urgência”, tal como o
próprio nome diz, equivalem a uma tutela de defesa emergencial, a qual deve
perdurar até que cessada a causa que motivou a sua imposição. Não é à toa que
são chamadas de medidas acautelatórias “situacionais” e exigem, portanto, uma
ponderação casuística.
Afirmar
que a duração da medida deve estar atrelada aos motivos que a justificaram não
autoriza o seu elastecimento inadvertido e sem base fática atual e
contemporânea, com o intuito tão somente de justificar a perpetuação da
providência de urgência, como se ela pudesse ser um fim em si mesma. O proceder
do magistrado de manter de forma definitiva, no édito condenatório, a medida
protetiva em comento viola o princípio da proporcionalidade e a proibição
constitucional de aplicação de pena de caráter perpétuo.
Em
suma:
É ilegal a fixação ad
eternum de medida protetiva, devendo o magistrado avaliar periodicamente a
pertinência da manutenção da cautela imposta.
STJ. 6ª
Turma. HC 605.113-SC, Rel. Min.
Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 08/11/2022 (Info 756).
Voltando
ao caso concreto:
A
medida protetiva é uma providência emergencial, acautelatória e de defesa da
vítima, imposta assim que as ameaças chegaram ao conhecimento do Poder
Judiciário, e que se eternizou no tempo para além do prazo da própria pena
aplicada ao sentenciado, sem nenhum amparo em eventual perpetuação do suporte
fático que a legitimou no início da persecução penal.
Diante disso, o STJ concedeu
parcialmente a ordem para “tornar por prazo indeterminado a medida protetiva de
proibição de aproximação da vítima, revogando-se a definitividade estabelecida
na sentença condenatória, devendo o Juízo de primeiro grau avaliar, a cada 90
dias e mediante a prévia oitiva das partes, a necessidade da manutenção da
cautela.”
DOD Plus –
julgado correlato
É indevida a manutenção de
medidas protetivas na hipótese de conclusão do inquérito policial sem
indiciamento do acusado
No caso, foram deferidas medidas protetivas pelo prazo de seis
meses. Ao término desse prazo, as medidas foram prorrogadas por mais seis
meses. Todavia, apesar de as medidas protetivas terem sido devidamente
fundamentadas, ocorreu a conclusão do inquérito policial sem indiciamento do
investigado.
Diante disso, não faz mais sentido a manutenção dessas medidas.
As medidas de urgência, protetivas da mulher, do patrimônio e da
relação familiar, somente podem ser entendidas por seu caráter de cautelaridade
- vigentes de imediato, mas apenas enquanto necessárias ao processo e a seus
fins.
STJ. 6ª Turma.
RHC 159303/RS, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em
20/09/2022 (Info 750).