A situação concreta, com
adaptações, foi a seguinte:
“M” praticou estupro de
vulnerável contra a própria filha, de 4 anos.
Surgiu uma dúvida quanto à
competência para julgar esse delito: seria da vara criminal “comum” ou vara especializada
em violência doméstica e familiar contra a mulher.
O Tribunal de Justiça entendeu
que a competência seria da vara criminal “comum”. Isso porque o que teria sido
determinante para a prática do crime foi a tenra idade da vítima, não tendo o
delito sido cometido em razão do gênero. Logo, não seria possível atrair a
incidência da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
O Tribunal local não
desconsiderou a presença vínculo doméstico na conduta praticada pelo réu.
Todavia, entendeu não haver motivação de gênero na referida prática e priorizou
a idade da vítima para afastar a competência da vara especializada.
O STJ concorda com esse
entendimento manifestado pelo TJ?
Até bem pouco tempo, o STJ estava dividido:
Se o fator determinante que
ensejou a prática do crime foi a tenra idade da vítima fica afastada a vara
de violência doméstica e familiar? Ex: estupro de vulnerável praticado por
pai contra a filha, de 4 anos |
|
SIM |
NÃO |
Para que a competência dos
Juizados Especiais de Violência Doméstica seja firmada, não basta que o crime
seja praticado contra mulher no âmbito doméstico ou familiar, exigindo-se que
a motivação do acusado seja de gênero, ou que a vulnerabilidade da ofendida
seja decorrente da sua condição de mulher. Se o fato de a vítima ser do
sexo feminino não foi determinante para a caracterização do crime de estupro
de vulnerável, mas sim a tenra idade da ofendida, que residia sobre o mesmo
teto do réu, que com ela manteve relações sexuais, não há que se falar em
competência do Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher. STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp
1020280/DF, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 23/08/2018. |
A idade da vítima é irrelevante
para afastar a competência da vara especializada em violência doméstica e
familiar contra a mulher e as normas protetivas da Lei Maria da Penha. O que importa é constatar que
não apenas a agressão sexual se deu em ambiente doméstico, mas também
familiar e afetivo, entre pai e filha, eliminando qualquer dúvida quanto à
incidência do subsistema da Lei Maria da Penha, inclusive no que diz respeito
ao órgão jurisdicional competente - especializado - para processar e julgar a
ação penal. É descabida a preponderância de
um fator meramente etário, para afastar a competência da vara especializada e
a incidência do subsistema da Lei Maria da Pena, desconsiderando o que, na
verdade, importa, é dizer, a violência praticada contra a mulher (de qualquer
idade), no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação
íntima de afeto. A Lei nº 11.340/2006 nada mais
objetiva do que proteger vítimas, contra quem os abusos aconteceram no
ambiente doméstico e decorreram da distorção sobre a relação familiar
decorrente do pátrio poder, em que se pressupõe intimidade e afeto, além do
fator essencial de ela ser mulher, elementos suficientes para atrair a
competência da vara especializada em violência doméstica. A prevalecer o outro entendimento,
crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica - segmento especial e
prioritariamente protegido pela Constituição (art. 227) - passariam a ter um
âmbito de proteção menos efetivo do que mulheres adultas. STJ. 6ª Turma. RHC 121.813-RJ,
Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 20/10/2020 (Info 682). |
A questão foi pacificada em
embargos de divergência. Qual das duas correntes prevaleceu? Se o
fator determinante que ensejou a prática do crime foi a tenra idade da vítima
fica afastada a vara de violência doméstica e familiar?
NÃO. Prevaleceu a segunda
corrente.
Não se pode afastar a competência
da vara especializada e a incidência do subsistema da Lei nº 11.340/2006
unicamente com base no fator etário. Em outras palavras, mesmo a vítima
possuindo tenra idade (sendo criança ou adolescente) pode ser aplicada a Lei Maria
da Penha.
A Lei nº 11.340/2006 objetiva a
proteção de vítimas mulheres contra os abusos cometidos no ambiente doméstico, independentemente
da idade. Logo, a competência para julgar o estupro de vulnerável praticado
pelo pai contra a sua filha criança ou adolescente, é, em princípio, da vara
especializada em violência doméstica.
Por que se falou “em
princípio”?
Porque, em 2017, foi publicada a Lei nº 13.431/20167, que estabeleceu
direitos e garantias para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de
violência. Esta Lei previu que, nos Tribunais de Justiça, poderiam ser criadas
varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente. Veja:
Art. 23. Os órgãos responsáveis
pela organização judiciária poderão criar juizados ou varas especializadas em
crimes contra a criança e o adolescente.
Logo, se houver sido criada, a
competência para julgar o estupro de vulnerável praticado pelo pai contra a sua
filha criança ou adolescente, será dessa vara especializada em crimes contra a
criança e o adolescente (caput do art. 23 da Lei nº 13.431/2017).
Por outro lado, se essa vara ainda não tiver sido criada, a
competência para julgar esse crime será da vara de violência doméstica e
familiar contra a mulher, conforme aliás ficou reforçado no parágrafo único do
art. 23 da Lei nº 13.431/2017:
Art. 23. (...)
Parágrafo único. Até a
implementação do disposto no caput deste artigo, o julgamento e a execução das
causas decorrentes das práticas de violência ficarão, preferencialmente, a
cargo dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e temas
afins.
A partir disso, indago: de
quem é a competência para julgar o crime de estupro praticado contra criança e
adolescente no contexto de violência doméstica e familiar?
1ª opção: juizado ou vara
especializada em crimes contra a criança e o adolescente (caput do art. 23 da
Lei nº 13.431/2017);
2ª opção: caso não exista
a vara especializada em crimes contra a criança e o adolescente, esse crime
será julgado no juizado ou vara especializada em violência doméstica,
independentemente de considerações acerca da idade, do sexo da vítima ou da
motivação da violência (parágrafo único do art. 23 da Lei nº 13.431/2017);
3ª opção: nas comarcas em
que não houver varas especializadas em violência contra crianças e adolescentes
ou juizados/varas de violência doméstica, a competência para julgar será da vara
criminal comum.
Diante disso, foi fixada a
seguinte tese:
Após o advento do art. 23 da Lei nº
13.431/2017, nas comarcas em que não houver vara especializada em crimes contra
a criança e o adolescente, compete à vara especializada em violência doméstica,
onde houver, processar e julgar os casos envolvendo estupro de vulnerável
cometido pelo pai (bem como pelo padrasto, companheiro, namorado ou similar)
contra a filha (ou criança ou adolescente) no ambiente doméstico ou familiar.
STJ. 3ª
Seção. EAREsp 2.099.532/RJ, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 26/10/2022 (Info 755).
Modulação
dos efeitos para evita anulação dos crimes julgados em “varas comuns”
Por
fim, nos termos do art. 927, § 3º, do Código de Processo Civil, tendo em vista
a alteração da jurisprudência dominante do STJ em relação às ações penais que
tenham tramitado ou que estejam atualmente em trâmite nas varas criminais
comuns, a fim de assegurar a segurança jurídica, notadamente por se tratar de
competência de natureza absoluta, a tese ora firmada terá sua aplicação
modulada nos seguintes termos:
a)
nas comarcas em que não houver juizado ou vara especializada nos moldes do art.
23 da Lei nº 13.431/2017, as ações penais que tratam de crimes praticados com
violência contra a criança e o adolescente, distribuídas até a data de
publicação do acórdão deste julgamento (inclusive), tramitarão nas varas às
quais foram distribuídas originalmente ou após determinação definitiva do
Tribunal local ou superior, sejam elas juizados/varas de violência doméstica,
sejam varas criminais comuns;
b)
nas comarcas em que não houver juizado ou vara especializada nos moldes do art.
23 da Lei nº 13.431/2017, as ações penais que tratam de crimes praticados com
violência contra a criança e o adolescente, distribuídas após a data de
publicação do acórdão deste julgamento, deverão ser obrigatoriamente
processadas nos juizados/varas de violência doméstica e, somente na ausência
destas, nas varas criminais comuns.