segunda-feira, 26 de dezembro de 2022
Comentários à Súmula 656 do STJ
Súmula 656-STJ: É válida a
cláusula de prorrogação automática de fiança na renovação do contrato
principal. A exoneração do fiador depende da notificação prevista no art. 835
do Código Civil.
STJ. 2ª Seção. Aprovada em
09/11/2022.
Imagine a seguinte situação hipotética:
A empresa Alfa Ltda. celebrou contrato de mútuo com o banco.
Por meio desse ajuste, o banco emprestou R$ 100 mil à empresa que utilizou tais
recursos como capital de giro para seu negócio.
João figurou no contrato como fiador do empréstimo.
O que é fiança?
Fiança é um tipo de contrato por meio do qual uma
pessoa (chamada de “fiadora”) assume o compromisso junto ao credor de que ela
irá satisfazer a obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra (art.
818 do Código Civil).
Logo, João, ao assinar o contrato na condição de
fiador, forneceu ao banco uma garantia pessoal (uma caução fidejussória): “se a empresa Alfa não pagar o que deve, pode
cobrar a dívida de mim”.
Características do contrato de fiança
a)
Acessório: pressupõe a existência de um contrato principal. Em
nosso exemplo, o contrato principal é a abertura de crédito e a fiança é um
ajuste acessório a esse.
b)
Formal: afirma-se que a fiança é um contrato formal porque
exige a forma escrita (art. 819 do CC). Logo, não é válida a fiança verbal.
Contrato formal é diferente de solene. A fiança é formal (precisa de forma
escrita), mas não é solene, já que não exige escritura pública.
c)
Gratuito ou
benéfico: na grande maioria dos
casos, a fiança é gratuita, considerando que o fiador não terá nenhuma
prestação em seu favor, nada recebendo em troca da garantia prestada. Vale
ressaltar, no entanto, que é possível que o fiador seja remunerado por esse
serviço e, então, o contrato passa a ser oneroso (fiança onerosa). É o caso,
por exemplo, da fiança bancária na qual o banco aceita ser fiador de
determinada pessoa em troca de uma remuneração por conta disso.
d)
Subsidiário:
em regra, a fiança é subsidiária porque depende de inexecução do contrato
principal. Todavia, é possível (e muito comum) que haja a previsão da cláusula
de solidariedade na qual o fiador renuncia ao benefício de ordem e assume o
compromisso de poder ser diretamente acionado em caso de dívida.
e)
Unilateral: em regra, a fiança gera obrigação apenas para o
fiador (satisfazer o credor caso o devedor não cumpra a obrigação).
Normalmente, nem o credor nem o devedor possuem obrigações para com o fiador.
Exceção: na fiança remunerada, o devedor tem a obrigação de pagar uma quantia
ao fiador por ele ter oferecido esse serviço.
f)
Não admite
interpretação extensiva: as cláusulas
do contrato de fiança devem ser interpretadas restritivamente. Assim, em caso
de dúvida sobre a interpretação das cláusulas, a exegese deverá ser feita em
favor do fiador. Isso se justifica porque a fiança, em regra, é um contrato
gratuito. Logo, não seria justo que, por meio de interpretações extensivas, o
fiador assumisse obrigações que ele não expressamente aceitou no pacto escrito.
Desse modo, o fiador responde somente por aquilo que declarou no contrato de
fiança. Ex: Ricardo assinou contrato de fiança afirmando que pagaria os
alugueis caso Fabiano (locatário) ficasse em atraso. Fabiano pagou todos os
alugueis, mas, após a devolução do apartamento, o locador percebeu que ele
deixou a bancada de mármore da cozinha quebrada. Se o contrato de fiança não
mencionava a responsabilidade do fiador por avarias no imóvel, não será
possível que o locador cobre essa despesa de Ricardo.
Contrato de mútuo bancário tinha vigência determinada
O contrato bancário possuía uma cláusula de vigência
de 1 ano, ou seja, vigorava até o dia 05/05/2012.
Havia, contudo, uma cláusula prevendo expressamente a
possibilidade de prorrogação automática da fiança caso houvesse também a
prorrogação do contrato principal.
No dia 05/05/2012, a empresa não conseguiu pagar o
empréstimo e, por isso, o contrato de mútuo foi prorrogado por mais 6 meses.
Essa prorrogação foi ajustada e assinada pelo
representante legal da empresa e pelo banco. João não participou dessa prorrogação.
6 meses depois, a empresa novamente não conseguiu quitar
a dívida e o banco ajuizou execução contra a pessoa jurídica e também contra
João. Este último se defendeu alegando que:
• para a fiança continuar válida,
seria necessário que ele tivesse anuído expressamente com a prorrogação;
• a fiança não admite interpretação extensiva;
• a cláusula que prevê a prorrogação automática é
abusiva e, portanto, nula de pleno direito.
O banco poderá cobrar a dívida do fiador? O contrato
de fiança ainda está em vigor? Essa cláusula de prorrogação automática da
fiança é válida?
SIM. É lícita (e, portanto, válida) cláusula em
contrato de mútuo bancário que preveja expressamente que a fiança prestada
prorroga-se automaticamente com a prorrogação do contrato principal.
Em regra, a fiança não se estende além do período de
tempo previsto no contrato. Justamente por isso, para que a fiança seja
prorrogada, é preciso a concordância expressa do fiador. Sobre o tema, o STJ
editou, inclusive, um enunciado:
Súmula 214-STJ: O fiador na locação não responde por obrigações
resultantes de aditamento ao qual não anuiu.
No entanto, o STJ decidiu que é válido que o contrato
preveja uma cláusula dizendo que, em caso de prorrogação do contrato principal,
a fiança (pacto acessório) também será prorrogada.
Havendo expressa e clara previsão
contratual da manutenção da fiança, em caso de prorrogação do contrato
principal, o pacto acessório também é prorrogado automaticamente, seguindo a
sorte do principal.
Essa cláusula não viola o art.
819 do CC, que afirma que a fiança não pode ser interpretada extensivamente?
NÃO. Realmente, na fiança não se admite a
interpretação extensiva de suas cláusulas. No entanto, no caso acima explicado
não houve interpretação extensiva.
“Não admitir interpretação extensiva” significa que o
fiador deve responder, exatamente, por aquilo que declarou no instrumento da
fiança. Ele não pode responder por nada a mais do que aquilo que ele aceitou no
contrato de fiança.
Na situação concreta, o fiador concordou com todos os
termos do contrato, inclusive com a cláusula que previa a prorrogação
automática da fiança em caso de prorrogação do contrato principal.
Logo, a cláusula era muito clara e o fiador aceitou.
Ao aplicar essa cláusula de prorrogação automática não se está fazendo
interpretação extensiva. Ao contrário, está sendo interpretada a cláusula
literalmente.
Mas o fiador ficará “preso” para sempre a esse
contrato?
NÃO. Ele tem o direito de, no período de prorrogação
contratual, notificar o credor afirmando que não mais deseja ser fiador. A isso
se dá o nome de “notificação
resilitória”, estando prevista no art. 835 do CC:
Art. 835. O fiador poderá exonerar-se
da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier,
ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a
notificação do credor.
Observação final:
Ressalte-se que, no exemplo dado acima, a avença
principal não envolvia relação contratual de consumo, pois cuidava-se de mútuo
mediante o qual se obteve capital de giro para o exercício de atividade empresarial.
O mesmo entendimento, contudo, pode ser aplicado para os casos de contrato de
consumo porque o STJ entende que essa cláusula de prorrogação automática não
consiste em cláusula abusiva (art. 51 do CDC):
A simples e clara previsão de que em caso de prorrogação do
contrato principal há a prorrogação automática da fiança não implica violação
ao art. 51 do Código de Defesa do Consumidor, cabendo, apenas, ser reconhecido
o direito do fiador de, no período de prorrogação contratual, promover a
notificação resilitória, nos moldes do disposto no art. 835 do Código Civil.
STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1.973.462/SP, Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, julgado em 26/4/2022.
DOD Questões
Veja como o tema foi cobrado em prova:
(Procurador ALE/RJ FGV 2017) Em contrato de mútuo, avençou-se
garantia fidejussória com expressa previsão de manutenção da fiança em caso de
prorrogação do contrato principal. Diante da cobrança efetuada pela instituição
financeira (mutuante) em face do fiador, este alega a nulidade da cláusula.
De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça:
(A) o fiador não permanece responsável a partir da
prorrogação do contrato principal, tendo em vista que o artigo 819 do Código Civil
estabelece que “a fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação
extensiva”;
(B) o fiador permanece responsável tanto na hipótese em que
há cláusula contratual prevendo a prorrogação automática da fiança quanto na
hipótese em que ausente tal cláusula, em virtude do princípio segundo o qual o
acessório segue o principal;
(C) a cláusula que estabelece a prorrogação automática da
fiança é nula de pleno direito, por impor ao consumidor desvantagem exagerada,
incompatível com a boa-fé e a equidade, violando, assim, o artigo 51, IV, do
Código de Defesa do Consumidor;
(D) o fiador permanece responsável, considerando que a
previsão de prorrogação automática da fiança não se afigura, por si só,
abusiva, com a violação ao art. 51 do Código de Defesa do Consumidor;
(E) a cláusula que estabelece a prorrogação automática da
fiança é válida, porquanto decorrente da autonomia da vontade, princípio que se
encontra na base do sistema jurídico, podendo afastar inclusive o art. 51 do
Código de Defesa do Consumidor.
Letra D