Imagine a seguinte situação
hipotética:
A pessoa jurídica Alfa ingressou
com cumprimento de sentença contra a pessoa jurídica Beta cobrando R$ 200 mil.
O juiz não localizou dinheiro nas
contas bancárias da devedora. No entanto, verificou a executada tinha 2.000
cotas de um fundo de investimento. Cada cota estava avaliada, em 02/02/2020, em
R$ 100,00.
Diante disso, foram penhoradas as
2.000 cotas, o equivalente a R$ 200 mil.
A devedora apresentou impugnação
e, depois de 6 meses, o juiz rejeitou a impugnação. Não houve recurso e o juiz
determinou, no dia 02/08/2020, a liquidação (“venda”) das cotas e a entrega do
dinheiro para a credora.
Ocorre que, nesses 6 meses, o
fundo de investimentos teve uma valorização e cada cota passou para o valor de
R$ 150,00. Isso significa que:
• em 02/02, 2.000 cotas equivalia
a R$ 200 mil;
• em 02/08, 2.000 cotas passou a
equivaler a R$ 300 mil.
Vale ressaltar que o valor
atualizado da dívida executada, incluindo multa e honorários advocatícios de
10% é de R$ 250 mil.
A exequente, contudo, afirmou que
teria direito de receber R$ 300 mil considerando que, no momento da penhora, “passou
a integrar aquele negócio jurídico, assumindo a condição de investidora e se
sujeitando aos riscos inerentes, ao menos em relação às cotas representativas
do seu verdadeiro crédito, de sorte que tem direito ao valor que as mesmas
alcançaram em 02/08/2020”.
Essa tese da exequente foi
aceita pelo STJ? A penhora de cotas de fundo de investimento
confere, automaticamente, ao exequente a condição de cotista desse fundo,
substituindo a parte executada - titular desses bens e sujeitando-se aos riscos
provenientes dessa espécie de investimento?
NÃO.
O que é a penhora?
A penhora representa o primeiro
ato executivo para a satisfação do direito do credor, por meio do qual o
Estado, sub-rogando-se ao devedor, individualiza, apreende e deposita os bens
deste, a fim de preservá-los até o efetivo cumprimento da obrigação executada,
garantindo-se ao credor um direito de prelação e de sequela, de forma a ensejar
a ineficácia, em relação ao exequente, dos atos de disposição porventura
praticados pelo devedor em benefício de terceiro, mas não afetando o direito
dominial (propriedade) desse devedor sobre o bem, enquanto não efetivada a
expropriação final (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual
civil, volume 3 – 55ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022, pp. 364-368).
O que são fundos de
investimento?
O fundo de investimento “é uma
comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à
aplicação em ativos financeiros” (art. 3º da Instrução CVM n. 555/2014),
possibilitando a destinação de parcela do patrimônio a gestão por administração
especializada, a compatibilizar o interesse em segurança, rentabilidade e
liquidez, que um investidor, individualmente considerado, teria menor
probabilidade de obter (MIRAGEM, Bruno. Direito Bancário – 2ª ed. – São
Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 485).
Tais fundos dividem-se em cotas
representativas de frações ideais do seu patrimônio, as quais pertencem a cada
investidor titular do direito de resgate e possuem valor variável, diretamente
proporcional ao retorno dos investimentos em ativos feitos pelo administrador
do fundo, através dos recursos aportados pelos investidores.
As cotas de fundo de
investimento podem ser penhoradas?
SIM. As cotas de fundos de investimento são espécies de
valores mobiliários, de acordo com o art. 2º, V, da Lei nº 6.385/76:
Art. 2º São valores mobiliários
sujeitos ao regime desta Lei:
(...)
V - as cotas de fundos de
investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer
ativos;
Os valores mobiliários estão na terceira posição na ordem de
penhora prevista no CPC:
Art. 835. A penhora observará,
preferencialmente, a seguinte ordem:
(...)
III - títulos e valores
mobiliários com cotação em mercado;
A penhora não transfere
automaticamente a propriedade das cotas para o exequente
Logo,
não se transfere ao exequente a álea (risco) inerente a esse tipo de negócio
jurídico. Apenas os cotistas contratantes é que ficam sujeitos aos riscos do
investimento. Isso significa que o exequente não fica obrigado pelos ônus nem pode
se beneficiar dos bônus desse
investimento, notadamente diante do princípio da relatividade dos efeitos do
contrato.
Exequente não se prejudica
com a desvalorização nem se beneficia com a valorização das cotas
• as cotas do fundo
se desvalorizaram: surge para o exequente o direito de requerer a
complementação da penhora, na linha do que prevê o art. 850 do CPC/2015:
Art.
850. Será admitida a redução ou a ampliação da penhora, bem como sua
transferência para outros bens, se, no curso do processo, o valor de mercado
dos bens penhorados sofrer alteração significativa.
• as cotas do fundo
se valorizaram: no momento do efetivo adimplemento, deverá ocorrer a exclusão da
importância que superar o crédito exequendo (devidamente atualizado e acrescido
dos encargos legais, tais como juros de mora e honorários de advogado). Se não
houver essa exclusão, haverá excesso de execução, nos termos do art. 917, § 2º,
I e II, do CPC/2015:
Art. 917 (...)
§ 2º Há excesso de execução
quando:
I - o exequente pleiteia quantia
superior à do título;
II - ela recai sobre coisa
diversa daquela declarada no título;
Em suma:
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.885.119-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em
25/10/2022 (Info 756).