Imagine a seguinte situação
hipotética:
A Ecovias é a empresa responsável
pela administração da rodovia estadual Padre Manoel da Nóbrega (SP-55), localizada no
Estado de São Paulo.
Trata-se, portanto, de uma
concessionária de serviço público (concessionária de rodovia).
João estava
dirigindo seu veículo quando parou no pedágio da rodovia Padre Manoel da
Nóbrega, por volta do km 280. Neste instante, foi abordado por homens armados que
roubaram o carro e seus bens pessoais.
Diante disso, João
ingressou com ação de indenização por danos morais e materiais contra a
concessionária e o Estado de São Paulo, em litisconsórcio passivo necessário. Afirmou
que tanto a concessionária quanto a Fazenda Pública teriam responsabilidade
objetiva, nos termos do art. 37, § 6º da CF/88:
Art. 37 (...)
§ 6º As pessoas jurídicas de
direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos
responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a
terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de
dolo ou culpa.
O pedido foi julgado procedente em primeira instância, tendo a
sentença sido mantida pelo TJ/SP.
De acordo com o TJ/SP, a Concessionária prestadora de serviço
público em delegação sujeita-se ao regime de responsabilidade civil da
Administração Pública e responde objetivamente, nos termos do art. 37, § 6º, da
CF/88, tendo em vista a teoria do risco administrativo.
No caso, a omissão da concessionária no dever de prestar a
segurança expõe os consumidores a situação de vulnerabilidade, que deve ser
analisada sob a ótica do art. 6º, I, do CDC:
Art. 6º São direitos básicos do
consumidor:
I - a proteção da vida, saúde e
segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos
e serviços considerados perigosos ou nocivos;
(...)
Acrescentou que o fato de exigir que os condutores parem no
pedágio gera risco, de forma que a concessionária tem o dever de garantir a
segurança no momento da parada, impondo-se a aplicação da teoria do fato do
serviço, prevista no art. 14 do CDC e do dever de segurança previsto no art. 22
do CDC:
Art. 22. Os órgãos públicos, por
si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra
forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados,
eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de
descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão
as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na
forma prevista neste código.
A concessionária interpôs recurso especial.
A condenação foi mantida pelo STJ? A concessionária de rodovia deve ser
responsabilizada por roubo com emprego de arma de fogo cometido contra seus
usuários em posto de pedágio?
NÃO. Vamos entender com calma.
Nesta presente situação, é
correto invocar o art. 37, § 6º da CF/88?
SIM. Isso porque se está diante
de um dano ocorrido nas instalações de uma empresa concessionária de serviço
público, o que faz incidir a responsabilidade objetiva por todos os atos e
omissões de seus empregados e prepostos, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88.
Conforme reconhecido pelo STF, “a
responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de
serviço público é objetiva relativamente a terceiros usuários e não-usuários do
serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal” (STF.
Plenário. RE 591874, julgado em 26/08/2009).
É possível também invocar o CDC?
SIM. Conforme entende o STJ:
A empresa concessionária que
administra rodovia mantém relação consumerista com os usuários, tendo
responsabilidade objetiva por eventuais falhas na prestação do serviço.
STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp
1175262/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 20/03/2018.
Falhas do serviço
Dessa forma, as concessionárias
de rodovia são responsáveis objetivamente por todos os aspectos relacionados à utilização das faixas de rodagem que podem ser consideradas
como falhas do serviço. Assim, por exemplo, respondem por:
• acidentes causados por animais
na pista (REsp 573.260/RS, DJe 09/11/2009);
• corpos estranhos na rodovia que
causaram acidente automobilístico (AgInt no AREsp 1134988/SP, DJe
20/04/2018);
• atropelamento de pedestres que
atravessavam a rodovia (REsp 1268743/RJ, DJe 07/04/2014).
E por que neste caso de João o
STJ entendeu que a concessionária não deveria responder?
Porque o STJ entendeu que houve a
exclusão do nexo de causalidade, considerando que o fato ocorreu por culpa
exclusiva de terceiro.
Trata-se de hipótese de fato de
terceiro, que configura fortuito externo, excluindo a responsabilidade civil.
Quando a conduta praticada pelo
terceiro não apresenta qualquer relação com a organização do negócio ou com a
atividade desenvolvida pela empresa, entende-se que o fato de terceiro foi a
causa única do dano e, portanto, considera-se que houve o rompimento do nexo
causal.
O fato de terceiro sempre rompe o
nexo causal?
NÃO. O fato de terceiro pode ou
não romper o nexo de causalidade.
• Se aquele fato de terceiro está
relacionado com a atividade desenvolvida pelo fornecedor (está dentro dos
limites do risco assumido pela empresa), então, neste caso, não há rompimento
do nexo de causalidade e o fornecedor do serviço deverá responder pelo dano.
Considera-se aqui que houve um fortuito interno. Ex: um objeto solto na pista
por determinado carro e que causa acidente a outro condutor que vem logo atrás.
A concessionária da rodovia terá responsabilidade.
• Por outro lado, se o fato de
terceiro é completamente estranho à atividade desenvolvida pelo fornecedor (não
tem qualquer relação com o serviço por ele prestado), aí, nesta situação, há
rompimento do nexo de causalidade e o fornecedor não responderá pelo dano. É o
que se chama de fortuito externo. Ex: uma bala perdida que atinge passageiro
que está trafegando na rodovia.
Caso concreto foi considerado
fortuito externo
A segurança que a concessionária
deve fornecer aos usuários diz respeito ao bom estado de conservação e
sinalização da rodovia. Não tem, contudo, como a concessionária garantir
segurança privada ao longo da estrada, mesmo que seja em postos de pedágio ou
de atendimento ao usuário.
O roubo com emprego de arma de
fogo é considerado um fato de terceiro equiparável a força maior, que exclui o
dever de indenizar. Trata-se de fato inevitável e irresistível e, assim, gera
uma impossibilidade absoluta de não ocorrência do dano.
É fato que a concessionária de
rodovia é responsável objetivamente por danos sofridos por seus usuários, mas a
ocorrência de roubo, com emprego de arma de fogo, é evento capaz e suficiente
para romper com a existência de nexo causal, afastando-se, assim, a responsabilidade
da empresa.
Em suma:
STJ. 3ª Turma. REsp 1.872.260-SP, Rel.
Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 04/10/2022 (Info 752).
O STJ já havia decidido no mesmo
sentido:
Concessionária de rodovia não responde por roubo e sequestro
ocorridos nas dependências de estabelecimento por ela mantido para a utilização
de usuários.
STJ. 3ª Turma REsp 1.749.941-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi,
julgado em 04/12/2018 (Info 640).
Não há como responsabilizar a concessionária de rodovia pelo
roubo com emprego de arma de fogo cometido contra seus respectivos usuários,
por se tratar de nítido fortuito externo (fato de terceiro), o qual rompe o
nexo de causalidade, nos termos do art. 14, § 3º, II, do CDC:
Art. 14 (...)
§ 3º O fornecedor de serviços só
não será responsabilizado quando provar:
(...)
II - a culpa exclusiva do
consumidor ou de terceiro.
Com efeito, o dever da
concessionária de garantir a segurança e a vida dos cidadãos que transitam pela
rodovia diz respeito a aspectos relacionados à própria utilização da estrada de
rodagem, como, por exemplo, manter sinalização adequada, evitar animais na
pista, buracos ou outros objetos que possam causar acidentes, dentre outros,
não se podendo exigir que a empresa disponibilize segurança armada na
respectiva área de abrangência, ainda que no posto de pedágio, para evitar o
cometimento de crimes.
A causa do evento danoso - roubo
com emprego de arma de fogo - não apresenta qualquer conexão com a atividade
desempenhada pela concessionária, estando fora dos riscos assumidos na
concessão da rodovia, que diz respeito apenas à manutenção e administração da
estrada, sobretudo porque a segurança pública é dever do Estado.
E a condenação que havia
sido imposta ao Estado de São Paulo?
O STJ entendeu que não havia como
permanecer a condenação isolada da Fazenda Pública Estadual. Isso porque o
único fundamento utilizado para condenar o Estado foi a sua responsabilidade
subsidiária, e não solidária. Assim, afastando-se a condenação da
concessionária (principal), também deverá ser afastada a do ente público
(subsidiária).
Cuidado com o furto
O STF já reconheceu a responsabilidade
civil da concessionária que administra a rodovia por FURTO ocorrido em seu
pátio:
A pessoa jurídica de direito privado
prestadora de serviço público possui responsabilidade civil em razão de dano
decorrente de crime de furto praticado em suas dependências, nos termos do art.
37, § 6º, da CF/88.
Caso concreto: o caminhão de uma
empresa transportadora foi parado na balança de pesagem na Rodovia Anhanguera
(SP), quando se constatou excesso de peso. Os agentes da concessionária
determinaram que o condutor estacionasse o veículo no pátio da concessionária
e, em seguida, conduziram-no até o escritório para ser autuado.
Aproximadamente 10 minutos depois, ao
retornar da autuação para o caminhão, o condutor observou que o veículo havia
sido furtado.
O STF condenou a Dersa –
Desenvolvimento Rodoviário S/A, empresa concessionária responsável pela rodovia
a indenizar a transportadora.
O Supremo reconheceu a
responsabilidade civil da prestadora de serviço público, ao considerar que
houve omissão no dever de vigilância e falha na prestação e organização do
serviço.
STF. 1ª Turma. RE 598356/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em
8/5/2018 (Info 901).