Dizer o Direito

sábado, 3 de dezembro de 2022

A concessionária de rodovia não deve ser responsabilizada por roubo com emprego de arma de fogo cometido contra seus usuários em posto de pedágio

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

A Ecovias é a empresa responsável pela administração da rodovia estadual Padre Manoel da Nóbrega (SP-55), localizada no Estado de São Paulo.

Trata-se, portanto, de uma concessionária de serviço público (concessionária de rodovia).

João estava dirigindo seu veículo quando parou no pedágio da rodovia Padre Manoel da Nóbrega, por volta do km 280. Neste instante, foi abordado por homens armados que roubaram o carro e seus bens pessoais.

Diante disso, João ingressou com ação de indenização por danos morais e materiais contra a concessionária e o Estado de São Paulo, em litisconsórcio passivo necessário. Afirmou que tanto a concessionária quanto a Fazenda Pública teriam responsabilidade objetiva, nos termos do art. 37, § 6º da CF/88:

Art. 37 (...)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

 

O pedido foi julgado procedente em primeira instância, tendo a sentença sido mantida pelo TJ/SP.

De acordo com o TJ/SP, a Concessionária prestadora de serviço público em delegação sujeita-se ao regime de responsabilidade civil da Administração Pública e responde objetivamente, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88, tendo em vista a teoria do risco administrativo.

No caso, a omissão da concessionária no dever de prestar a segurança expõe os consumidores a situação de vulnerabilidade, que deve ser analisada sob a ótica do art. 6º, I, do CDC:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

(...)

 

Acrescentou que o fato de exigir que os condutores parem no pedágio gera risco, de forma que a concessionária tem o dever de garantir a segurança no momento da parada, impondo-se a aplicação da teoria do fato do serviço, prevista no art. 14 do CDC e do dever de segurança previsto no art. 22 do CDC:

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.

 

A concessionária interpôs recurso especial.

 

A condenação foi mantida pelo STJ? A concessionária de rodovia deve ser responsabilizada por roubo com emprego de arma de fogo cometido contra seus usuários em posto de pedágio?

NÃO. Vamos entender com calma.

 

Nesta presente situação, é correto invocar o art. 37, § 6º da CF/88?

SIM. Isso porque se está diante de um dano ocorrido nas instalações de uma empresa concessionária de serviço público, o que faz incidir a responsabilidade objetiva por todos os atos e omissões de seus empregados e prepostos, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88.

Conforme reconhecido pelo STF, “a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente a terceiros usuários e não-usuários do serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal” (STF. Plenário. RE 591874, julgado em 26/08/2009).

 

É possível também invocar o CDC?

SIM. Conforme entende o STJ:

A empresa concessionária que administra rodovia mantém relação consumerista com os usuários, tendo responsabilidade objetiva por eventuais falhas na prestação do serviço.

STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp 1175262/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 20/03/2018.

 

Falhas do serviço

Dessa forma, as concessionárias de rodovia são responsáveis objetivamente por todos os aspectos relacionados à utilização das faixas de rodagem que podem ser consideradas como falhas do serviço. Assim, por exemplo, respondem por:

• acidentes causados por animais na pista (REsp 573.260/RS, DJe 09/11/2009);

• corpos estranhos na rodovia que causaram acidente automobilístico (AgInt no AREsp 1134988/SP, DJe

20/04/2018);

• atropelamento de pedestres que atravessavam a rodovia (REsp 1268743/RJ, DJe 07/04/2014).

 

E por que neste caso de João o STJ entendeu que a concessionária não deveria responder?

Porque o STJ entendeu que houve a exclusão do nexo de causalidade, considerando que o fato ocorreu por culpa exclusiva de terceiro.

Trata-se de hipótese de fato de terceiro, que configura fortuito externo, excluindo a responsabilidade civil.

Quando a conduta praticada pelo terceiro não apresenta qualquer relação com a organização do negócio ou com a atividade desenvolvida pela empresa, entende-se que o fato de terceiro foi a causa única do dano e, portanto, considera-se que houve o rompimento do nexo causal.

 

O fato de terceiro sempre rompe o nexo causal?

NÃO. O fato de terceiro pode ou não romper o nexo de causalidade.

• Se aquele fato de terceiro está relacionado com a atividade desenvolvida pelo fornecedor (está dentro dos limites do risco assumido pela empresa), então, neste caso, não há rompimento do nexo de causalidade e o fornecedor do serviço deverá responder pelo dano. Considera-se aqui que houve um fortuito interno. Ex: um objeto solto na pista por determinado carro e que causa acidente a outro condutor que vem logo atrás. A concessionária da rodovia terá responsabilidade.

• Por outro lado, se o fato de terceiro é completamente estranho à atividade desenvolvida pelo fornecedor (não tem qualquer relação com o serviço por ele prestado), aí, nesta situação, há rompimento do nexo de causalidade e o fornecedor não responderá pelo dano. É o que se chama de fortuito externo. Ex: uma bala perdida que atinge passageiro que está trafegando na rodovia.

 

Caso concreto foi considerado fortuito externo

A segurança que a concessionária deve fornecer aos usuários diz respeito ao bom estado de conservação e sinalização da rodovia. Não tem, contudo, como a concessionária garantir segurança privada ao longo da estrada, mesmo que seja em postos de pedágio ou de atendimento ao usuário.

O roubo com emprego de arma de fogo é considerado um fato de terceiro equiparável a força maior, que exclui o dever de indenizar. Trata-se de fato inevitável e irresistível e, assim, gera uma impossibilidade absoluta de não ocorrência do dano.

É fato que a concessionária de rodovia é responsável objetivamente por danos sofridos por seus usuários, mas a ocorrência de roubo, com emprego de arma de fogo, é evento capaz e suficiente para romper com a existência de nexo causal, afastando-se, assim, a responsabilidade da empresa.

 

Em suma:

A concessionária de rodovia não deve ser responsabilizada por roubo com emprego de arma de fogo cometido contra seus usuários em posto de pedágio.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.872.260-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 04/10/2022 (Info 752).

 

O STJ já havia decidido no mesmo sentido:

Concessionária de rodovia não responde por roubo e sequestro ocorridos nas dependências de estabelecimento por ela mantido para a utilização de usuários.

STJ. 3ª Turma REsp 1.749.941-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 04/12/2018 (Info 640).

 

Não há como responsabilizar a concessionária de rodovia pelo roubo com emprego de arma de fogo cometido contra seus respectivos usuários, por se tratar de nítido fortuito externo (fato de terceiro), o qual rompe o nexo de causalidade, nos termos do art. 14, § 3º, II, do CDC:

Art. 14 (...)

§ 3º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

(...)

II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

 

Com efeito, o dever da concessionária de garantir a segurança e a vida dos cidadãos que transitam pela rodovia diz respeito a aspectos relacionados à própria utilização da estrada de rodagem, como, por exemplo, manter sinalização adequada, evitar animais na pista, buracos ou outros objetos que possam causar acidentes, dentre outros, não se podendo exigir que a empresa disponibilize segurança armada na respectiva área de abrangência, ainda que no posto de pedágio, para evitar o cometimento de crimes.

A causa do evento danoso - roubo com emprego de arma de fogo - não apresenta qualquer conexão com a atividade desempenhada pela concessionária, estando fora dos riscos assumidos na concessão da rodovia, que diz respeito apenas à manutenção e administração da estrada, sobretudo porque a segurança pública é dever do Estado.

 

E a condenação que havia sido imposta ao Estado de São Paulo?

O STJ entendeu que não havia como permanecer a condenação isolada da Fazenda Pública Estadual. Isso porque o único fundamento utilizado para condenar o Estado foi a sua responsabilidade subsidiária, e não solidária. Assim, afastando-se a condenação da concessionária (principal), também deverá ser afastada a do ente público (subsidiária).

 

Cuidado com o furto

O STF já reconheceu a responsabilidade civil da concessionária que administra a rodovia por FURTO ocorrido em seu pátio:

A pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público possui responsabilidade civil em razão de dano decorrente de crime de furto praticado em suas dependências, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88.

Caso concreto: o caminhão de uma empresa transportadora foi parado na balança de pesagem na Rodovia Anhanguera (SP), quando se constatou excesso de peso. Os agentes da concessionária determinaram que o condutor estacionasse o veículo no pátio da concessionária e, em seguida, conduziram-no até o escritório para ser autuado.

Aproximadamente 10 minutos depois, ao retornar da autuação para o caminhão, o condutor observou que o veículo havia sido furtado.

O STF condenou a Dersa – Desenvolvimento Rodoviário S/A, empresa concessionária responsável pela rodovia a indenizar a transportadora.

O Supremo reconheceu a responsabilidade civil da prestadora de serviço público, ao considerar que houve omissão no dever de vigilância e falha na prestação e organização do serviço.

STF. 1ª Turma. RE 598356/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 8/5/2018 (Info 901).

 


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