Imagine a seguinte situação
hipotética:
A empresa Alfa contratou a
transportadora UPS para transportar uma carga da Argentina até São Paulo.
Para cobrir os riscos do
transporte, a empresa Alfa celebrou contrato de seguro com a seguradora Chubb.
Assim, se houvesse alguma avaria
na carga, a Chubb indenizaria a Alfa e buscaria o ressarcimento com a transportadora.
Foi justamente o que aconteceu.
Em determinado momento do
transporte, o motorista da UPS foi abordado por um sujeito que, mediante o
emprego de arma de fogo, roubou o caminhão e a carga.
A
Sul América recusou-se a pagar sob o fundamento de que a transportadora não cumpriu
uma determinada cláusula contratual de gerenciamento de risco. Segundo o
contrato assinado entre a UPS e a Sul América, o motorista deveria um cadastro
denominado Telerisco e acatar as instruções decorrentes da consulta. Como não
houve essa consulta, a seguradora argumentou que a segurada descumpriu as
obrigações contratuais e negou o pagamento.
Abrindo
um parêntese
Telerisco
é uma plataforma de gestão de riscos adotada pela seguradora a fim de
restringir, com base em tecnologia disponível, os perigos relacionados ao
transporte rodoviário de cargas.
Por
meio dessa plataforma, a seguradora avalia se motoristas e veículos possuem
perfis condizentes com a operação de transporte que pretendem executar, a fim
de criar um perfil que auxiliará a entender os riscos envolvidos na operação
específica. Desta forma, é possível averiguar a vulnerabilidade de cada
operação e criar estratégias que consigam melhor gerenciar os riscos do
negócio.
Por
essa razão, a seguradora contratualmente que transportadora faça consulta à
plataforma Telerisco, a fim de permitir que a seguradora, que responderia por
eventuais infortúnios à carga, tivesse maior ciência dos riscos envolvidos na
operação.
Voltando
ao caso concreto:
Diante
desse cenário, a seguradora Chubb foi acionada e indenizou a Alfa pelos
prejuízos sofridos.
Em
seguida, a Chubb ingressou com ação de regresso contra a transportadora UPS,
requerendo o ressarcimento dos valores pagos à Alfa.
A
UPSC contestou a ação e pediu a denunciação da lide da empresa Sul América.
No
mérito, alegou que o roubo da carga, por ser hipótese de caso fortuito, a exime
da responsabilidade, tendo em vista que apesar de a transportadora ter adotado
todas as medidas de segurança, a eficácia não foi atingida, haja vista que o
evento do roubo não teve conexão com o contrato de transporte e não poderia ser
evitado.
O
que decidiu o STJ? A UPS deverá ressarcir a seguradora Chubb?
SIM.
O caso fortuito é uma hipótese de exclusão do dever de
indenizar, conforme previsto no art. 393 do Código Civil:
Art. 393. O devedor não responde
pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente
não se houver por eles responsabilizado.
O parágrafo único do art. 393 define em que consiste o caso
fortuito:
Art. 393 (...)
Parágrafo único. O caso fortuito
ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era
possível evitar ou impedir.
O roubo, mediante uso de arma de fogo, é fato de terceiro
equiparável a força maior, que exclui o dever de indenizar, ainda que haja
responsabilidade civil objetiva na situação em concreto. Trata-se de fato
inevitável, porém, previsível no transporte de cargas, tanto que o art. 13 da
Lei nº 11.442/2007 exige a realização de seguro pela transportadora:
Art. 13. Sem prejuízo do seguro de responsabilidade
civil contra danos a terceiros previsto em lei, toda operação de transporte
contará com o seguro contra perdas ou danos causados à carga, de acordo com o
que seja estabelecido no contrato ou conhecimento de transporte, podendo o
seguro ser contratado:
I - pelo contratante dos
serviços, eximindo o transportador da responsabilidade de fazê-lo;
II - pelo transportador, quando
não for firmado pelo contratante.
Parágrafo único. As condições do
seguro de transporte rodoviário de cargas obedecerão à legislação em vigor.
Assim, em regra, roubo de carga
exclui a responsabilidade da transportadora perante a seguradora do
proprietário da mercadoria transportada, quando adotadas todas as cautelas que
razoavelmente dela se poderia esperar.
Ocorre que, na situação concreta,
a transportadora segurada descumpriu seu dever de cautela e, com isso, agravou
o risco objeto do contrato.
Logo, deve ser aplicada a regra do art. 768 do Código Civil:
Art. 768. O segurado perderá o
direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato.
Conforme observou a Min. Nancy
Andrighi, em voto vista:
Sendo admissível cláusula de
gerenciamento de riscos e tendo a transportadora com ela anuído, um
adimplemento contratual, na hipótese, a falta de consulta ao Telerisco, agrava
o risco da operação e, por conseguinte, afasta a responsabilidade da
seguradora.
Dessa forma, ao não consultar o
“Telerisco”, a transportadora não somente descumpriu cláusula contratual, mas
tampouco adotou a cautelas que razoavelmente dela se esperava.
A adoção de medidas de prevenção
antecipada de sinistros está inserida no dever de colaboração decorrente da
boa-fé objetiva, resultando na perda do direito do segurado se ele agravar
intencionalmente o risco do objeto do contrato.
Vale ressaltar que a
jurisprudência do STJ admite a legalidade da cláusula de gerenciamento de risco
e encara o seu descumprimento como uma maneira de agravamento de riscos:
(...) 1. Nos termos da jurisprudência consolidada no âmbito
das Turmas que compõem a Segunda Seção, "a cláusula de gerenciamento de
riscos, em si, é legal e compatível com os contratos de seguro" (REsp
1.314.318/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em
28/06/2016, DJe de 06/09/2016).
2. É legítima a negativa da seguradora à cobertura na
hipótese de exclusão ou limitação expressa de cobertura, porquanto as cláusulas
do contrato de seguro devem ter interpretação restritiva.
Precedentes.
3. No caso, a Corte estadual consignou que a segurada tinha
plena ciência da cláusula de gerenciamento de risco expressa no contrato de
seguro, exigindo o monitoramento ou escolta armada para o transporte de cargas,
e que tais cautelas foram descumpridas pela segurada, agravando voluntariamente
o risco. Legítima, portanto, a negativa de cobertura.
4. Agravo interno a que se nega provimento.
STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp n. 1.076.414/SP, Rel. Min.
Raul Araújo, julgado em 28/9/2020.
Vale ressaltar que a consulta,
por si só, não garantiria que o roubo à mão armada não fosse acontecer. No
entanto, a falta dela agravou os riscos de uma atividade já naturalmente
perigosa, contrariando as cautelas razoáveis que se poderia esperar do segurado.
Em suma:
O roubo de carga em transporte rodoviário, mediante
uso de arma de fogo, exclui a responsabilidade da transportadora perante a
seguradora do proprietário da mercadoria transportada, quando adotadas todas as
cautelas que razoavelmente dela se poderia esperar, assim como a conduta direta
do segurado que agravar o risco da cobertura contratada, por ato culposo ou
doloso, acarreta a exoneração do dever da seguradora do pagamento da
indenização.
STJ. 2ª Seção.
EREsp 1.577.162-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 10/08/2022 (Info 744).