Dizer o Direito

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Transportadora que descumpriu sua obrigação de consultar a plataforma de Telerisco agravou o risco da operação e não terá direito à cobertura securitária mesmo em caso de roubo armado da carga

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

A empresa Alfa contratou a transportadora UPS para transportar uma carga da Argentina até São Paulo.

Para cobrir os riscos do transporte, a empresa Alfa celebrou contrato de seguro com a seguradora Chubb.

Assim, se houvesse alguma avaria na carga, a Chubb indenizaria a Alfa e buscaria o ressarcimento com a transportadora. Foi justamente o que aconteceu.

Em determinado momento do transporte, o motorista da UPS foi abordado por um sujeito que, mediante o emprego de arma de fogo, roubou o caminhão e a carga.

A transportadora tinha um contrato seu com a Sul América Seguros e, portanto, acionou a sua seguradora para pagar a indenização.

A Sul América recusou-se a pagar sob o fundamento de que a transportadora não cumpriu uma determinada cláusula contratual de gerenciamento de risco. Segundo o contrato assinado entre a UPS e a Sul América, o motorista deveria um cadastro denominado Telerisco e acatar as instruções decorrentes da consulta. Como não houve essa consulta, a seguradora argumentou que a segurada descumpriu as obrigações contratuais e negou o pagamento.

 

Abrindo um parêntese

Telerisco é uma plataforma de gestão de riscos adotada pela seguradora a fim de restringir, com base em tecnologia disponível, os perigos relacionados ao transporte rodoviário de cargas.

Por meio dessa plataforma, a seguradora avalia se motoristas e veículos possuem perfis condizentes com a operação de transporte que pretendem executar, a fim de criar um perfil que auxiliará a entender os riscos envolvidos na operação específica. Desta forma, é possível averiguar a vulnerabilidade de cada operação e criar estratégias que consigam melhor gerenciar os riscos do negócio.

Por essa razão, a seguradora contratualmente que transportadora faça consulta à plataforma Telerisco, a fim de permitir que a seguradora, que responderia por eventuais infortúnios à carga, tivesse maior ciência dos riscos envolvidos na operação.

 

Voltando ao caso concreto:

Diante desse cenário, a seguradora Chubb foi acionada e indenizou a Alfa pelos prejuízos sofridos.

Em seguida, a Chubb ingressou com ação de regresso contra a transportadora UPS, requerendo o ressarcimento dos valores pagos à Alfa.

A UPSC contestou a ação e pediu a denunciação da lide da empresa Sul América.

No mérito, alegou que o roubo da carga, por ser hipótese de caso fortuito, a exime da responsabilidade, tendo em vista que apesar de a transportadora ter adotado todas as medidas de segurança, a eficácia não foi atingida, haja vista que o evento do roubo não teve conexão com o contrato de transporte e não poderia ser evitado.

 

O que decidiu o STJ? A UPS deverá ressarcir a seguradora Chubb?

SIM.

O caso fortuito é uma hipótese de exclusão do dever de indenizar, conforme previsto no art. 393 do Código Civil:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

 

O parágrafo único do art. 393 define em que consiste o caso fortuito:

Art. 393 (...)

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

 

O roubo, mediante uso de arma de fogo, é fato de terceiro equiparável a força maior, que exclui o dever de indenizar, ainda que haja responsabilidade civil objetiva na situação em concreto. Trata-se de fato inevitável, porém, previsível no transporte de cargas, tanto que o art. 13 da Lei nº 11.442/2007 exige a realização de seguro pela transportadora:

Art. 13.  Sem prejuízo do seguro de responsabilidade civil contra danos a terceiros previsto em lei, toda operação de transporte contará com o seguro contra perdas ou danos causados à carga, de acordo com o que seja estabelecido no contrato ou conhecimento de transporte, podendo o seguro ser contratado:

I - pelo contratante dos serviços, eximindo o transportador da responsabilidade de fazê-lo;

II - pelo transportador, quando não for firmado pelo contratante.

Parágrafo único. As condições do seguro de transporte rodoviário de cargas obedecerão à legislação em vigor.

 

Assim, em regra, roubo de carga exclui a responsabilidade da transportadora perante a seguradora do proprietário da mercadoria transportada, quando adotadas todas as cautelas que razoavelmente dela se poderia esperar.

Ocorre que, na situação concreta, a transportadora segurada descumpriu seu dever de cautela e, com isso, agravou o risco objeto do contrato.

Logo, deve ser aplicada a regra do art. 768 do Código Civil:

Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato.

 

Conforme observou a Min. Nancy Andrighi, em voto vista:

Sendo admissível cláusula de gerenciamento de riscos e tendo a transportadora com ela anuído, um adimplemento contratual, na hipótese, a falta de consulta ao Telerisco, agrava o risco da operação e, por conseguinte, afasta a responsabilidade da seguradora.

Dessa forma, ao não consultar o “Telerisco”, a transportadora não somente descumpriu cláusula contratual, mas tampouco adotou a cautelas que razoavelmente dela se esperava.

A adoção de medidas de prevenção antecipada de sinistros está inserida no dever de colaboração decorrente da boa-fé objetiva, resultando na perda do direito do segurado se ele agravar intencionalmente o risco do objeto do contrato.

Vale ressaltar que a jurisprudência do STJ admite a legalidade da cláusula de gerenciamento de risco e encara o seu descumprimento como uma maneira de agravamento de riscos:

(...) 1. Nos termos da jurisprudência consolidada no âmbito das Turmas que compõem a Segunda Seção, "a cláusula de gerenciamento de riscos, em si, é legal e compatível com os contratos de seguro" (REsp 1.314.318/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/06/2016, DJe de 06/09/2016).

2. É legítima a negativa da seguradora à cobertura na hipótese de exclusão ou limitação expressa de cobertura, porquanto as cláusulas do contrato de seguro devem ter interpretação restritiva.

Precedentes.

3. No caso, a Corte estadual consignou que a segurada tinha plena ciência da cláusula de gerenciamento de risco expressa no contrato de seguro, exigindo o monitoramento ou escolta armada para o transporte de cargas, e que tais cautelas foram descumpridas pela segurada, agravando voluntariamente o risco. Legítima, portanto, a negativa de cobertura.

4. Agravo interno a que se nega provimento.

STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp n. 1.076.414/SP, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 28/9/2020.

 

Vale ressaltar que a consulta, por si só, não garantiria que o roubo à mão armada não fosse acontecer. No entanto, a falta dela agravou os riscos de uma atividade já naturalmente perigosa, contrariando as cautelas razoáveis que se poderia esperar do segurado.

 

Em suma:

O roubo de carga em transporte rodoviário, mediante uso de arma de fogo, exclui a responsabilidade da transportadora perante a seguradora do proprietário da mercadoria transportada, quando adotadas todas as cautelas que razoavelmente dela se poderia esperar, assim como a conduta direta do segurado que agravar o risco da cobertura contratada, por ato culposo ou doloso, acarreta a exoneração do dever da seguradora do pagamento da indenização.

STJ. 2ª Seção. EREsp 1.577.162-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 10/08/2022 (Info 744).



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