Imagine a seguinte situação
hipotética:
João, vereador, contratou seu primo
Paulo para exercer o cargo público de assessor na Câmara Municipal.
Ocorre que ele não trabalhava efetivamente.
Apenas comparecia ao trabalho para assinar o ponto, sem que exercesse suas
atribuições do cargo.
Eram aquilo que se chama na
linguagem popular de “funcionário fantasma”.
Apesar disso, Paulo recebia
remuneração todos os meses, situação que perdurou por anos.
O fato foi descoberto e o Ministério Público denunciou João e
Paulo pela prática de peculato-desvio, delito previsto no art. 312 do Código
Penal:
Art. 312. Apropriar-se o
funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou
particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito
próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de dois a doze
anos, e multa.
Vale ressaltar que, no caso em
questão, não há imputação de que João tomasse para si os vencimentos de Paulo,
ou seja, não se tratava de “rachadinha”.
Também não há notícia de que verbas
remuneratórias pagas em favor de Paulo fossem destinadas a qualquer outra pessoa
além dele.
A imputação aqui é somente a de que o
referido servidor não desempenhava, efetivamente, as funções para as quais foi
nomeado.
A imputação feita pelo Ministério
Público terá viabilidade? Houve crime?
NÃO.
Não é típico o ato do servidor que se
apropria de valores que já lhe pertenceriam, em razão do cargo por ele ocupado.
Assim, a conduta de João poderia ter
repercussões disciplinares ou mesmo no âmbito da improbidade administrativa,
mas não se ajusta ao delito de peculato, porque seus vencimentos efetivamente
lhe pertenciam.
Se o servidor merecia perceber a
remuneração, à luz da ausência da contraprestação respectiva, é questão a ser
discutida na esfera administrativo-sancionadora, mas não na instância penal,
por falta de tipicidade:
(...) 1. Segundo o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte,
a agravada obteve atestados falsos de frequência, percebendo a remuneração do
cargo de Agente Legislativo sem a devida prestação de serviços. Em razão disso,
foi denunciada pela suposta prática do crime de peculato, descrito nos art.
312, caput, c/c art. 327, § 1º, do Código Penal.
(...)
4. A servidora em questão não se apropriou de verba ou dinheiro do
Estado, porquanto a remuneração do cargo público lhe pertencia. Apenas, segundo
a acusação, não efetuou a devida contraprestação de serviços.
(...)
6. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça considera que “servidor
público que se apropria dos salários que lhe foram pagos e não presta os
serviços, não comete peculato” (Apn 475/MT, Rel. Ministra ELIANA CALMON, CORTE
ESPECIAL, julgado em 16/5/2007, DJ 6/8/2007, p. 444). No mesmo sentido: RHC
60.601/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 9/8/2016, DJe
19/8/2016.
7. O Supremo Tribunal Federal, no Inq 3.006, Rel. Ministro DIAS
TOFFOLI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/6/2014, DJe 22/9/2014, distinguiu, de um
lado, os casos em que o objeto material da conduta reside na apropriação ou no
desvio de valores pecuniários consistentes na remuneração de funcionário “fantasma”
(p.ex. Inq 1.926, Rel. Ministra ELLEN GRACIE, TRIBUNAL PLENO, julgado em
9/10/2008, DJe 21/11/2008; e Inq 2.449, Rel. Ministro AYRES BRITTO, TRIBUNAL
PLENO, julgado em 2/12/2010, DJe 18/2/2011) e, de outro lado, a situações
análogas às destes autos, nas quais o fato imputado à servidora consiste em se
apoderar de sua própria remuneração, embora sem prestar os serviços atinentes
ao cargo que ocupava na Assembleia Legislativa, o que poderia, em tese,
configurar infração disciplinar ou ato de improbidade administrativa, mas não
configura fato típico.
(...)
STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 1.244.170/RN, Rel. Min. Ribeiro
Dantas, julgado em 2/8/2018.
Em suma:
Não é típico o ato do servidor que se apropria de
valores que já lhe pertenceriam, em razão do cargo por ele ocupado.
STJ. 5ª
Turma. AgRg no AREsp 2.073.825-RS, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em
16/08/2022 (Info 746).
DOD
Questões
(FGV TJ/SC Juiz Substituto 2022) Narra
a denúncia que, no período entre janeiro de 2015 e dezembro de 2016, Jorge
desviou dinheiro público, que teve posse em razão do cargo de deputado
estadual, em proveito próprio e alheio, ao indicar Joyce, Cláudio e Marcelo
para ocuparem, respectivamente, as funções comissionadas de assessora
parlamentar e de secretários parlamentares em seu gabinete, na Assembleia Legislativa
do Estado, sem exigir a integralidade da prestação dos serviços
correspondentes. Segundo o Ministério Público, as nomeações foram fraudulentas,
pois os elementos probatórios contidos nos autos demonstram que Joyce, Cláudio
e Marcelo, embora nomeados para o exercício de funções gratificadas na
Assembleia Legislativa, no gabinete de Jorge, não prestavam os serviços
referentes às funções para as quais foram designados, limitando-se à realização
de atividades de caráter particular, em prol do parlamentar. Diante desse
quadro, é correto afirmar que Jorge desenvolveu:
A) concussão;
B) peculato-desvio;
C) corrupção passiva;
D) peculato-apropriação;
E) conduta atípica.
DOD Plus – informações complementares
Mesmo que João fosse prefeito, essa
conduta também não configuraria o crime do art. 1º, I, do DL 201/67:
O pagamento de remuneração a funcionários fantasmas não
configura apropriação ou desvio de verba pública, previstos pelo art. 1º,
inciso I, do Decreto-Lei nº 201/67.
O pagamento de salário não configura apropriação ou desvio
de verba pública, previstos pelo art. 1º, I, do Decreto-Lei nº 201/67, pois a
remuneração é devida, ainda que questionável a contratação de parentes do
Prefeito.
STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 1.162.086-SP, Rel. Min. Nefi
Cordeiro, julgado em 05/03/2020 (Info 667).
Situação diferente do caso
de parlamentares que se apropriam de parte dos salários dos comissionados
(“rachadinha”)
No caso de parlamentares que se apropriam de parte da remuneração
dos servidores comissionados de seu gabinete (prática conhecida como
“rachadinha”), o STJ já decidiu algumas vezes que configura peculato:
(...) 1. A conduta praticada pela recorrente amolda-se ao
crime de peculato-desvio, tipificado na última parte do art. 312 do Código
Penal.
2. Situação concreta em que parte dos vencimentos de
funcionários investidos em cargos comissionados no gabinete da vereadora,
alguns que nem sequer trabalhavam de fato, eram para ela repassados e
posteriormente utilizados no pagamento de outras pessoas que também prestavam
serviços em sua assessoria, porém sem estarem investidas em cargos públicos.
(...)
STJ. 6ª Turma. REsp 1.244.377/PR, Rel. Min. Sebastião Reis
Júnior, julgado em 03/04/2014.